O artigo procura avaliar os significados da “Era Lula” do ponto de vista da história econômica e social brasileira. Não se trata de uma reflexão neutra ou isenta, ainda que se pretenda crítica.
Por “avanços da Era Lula”, temos em mente um conjunto de transformações, internas e externas – muitas vezes não diretamente associadas aos atos do presidente e de seu governo, outras vezes relacionadas à sua capacidade de antecipação do processo em curso – que permitiram ao país mirar de frente suas contradições ainda que, em geral, sem superá-las. Os dilemas repostos pela Era Lula, segundo nossa concepção, se prolongam no governo Dilma e, provavelmente, nos subsequentes, independentemente das coalizões de forças políticas e sociais que venham a assumir o poder. Tudo indica, pois, que a Era Lula veio para ficar, promovendo uma inflexão nas tensões vividas por esta sociedade capitalista específica chamada Brasil, as quais podem levar inclusive a retrocessos, dependendo de como se encaminhem alguns de seus problemas estruturais.
O artigo pretende mostrar como na primeira década do século XX uma inflexão, não de todo consumada, vislumbra-se no que tange ao padrão de desenvolvimento do país. Ao invés de partir de uma análise restrita da política econômica – do tipo o quê começou com quem, discutindo a continuidade/descontinuidade em relação ao governo anterior – assume-se um enfoque multidimensional e de longo prazo.
Como e por que este período se distingue dos anteriores? Eis a questão. O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (2006, p. 28), ao escrever sua autobiografia, reconhecera, sem esconder uma ponta de angústia, não saber se o seu governo “marcava um início ou se seria um interregno”. Sob outro prisma, o cientista político André Singer (2012, p. 9) se pergunta se “a inesperada trajetória do lulismo incidirá sobre contradições centrais do capitalismo brasileiro, abrindo caminho para colocá-las em patamar superior?”.
A resposta a tal questão remete a uma incógnita. Mas, o próprio fato de que ela possa ser formulada nestes termos já denota um avanço em relação ao período anterior. Uma inflexão sugere movimento em direção a determinados fins, mesmo que não plenamente conscientes, enquanto a transição é marcada pela ausência de uma orientação definida.
O texto está articulado da seguinte forma. A primeira parte discute, de maneira sintética, os dilemas do capitalismo brasileiro antes da Era Lula e como eles foram, se não equacionados, ao menos reprocessados, durante a primeira década do século XX. Em seguida, mostramos o desempenho do país a partir das seguintes dimensões: dinâmica econômica; inserção externa; mercado de trabalho, pobreza e desigualdade, que compõem, respectivamente, as partes 2, 3 e 4 do artigo, às quais se seguem as considerações finais.
1 – Industrialização, crise e abertura: impasses do capitalismo no Brasil
Entre 1930 e 1980, a economia brasileira afirmou-se como uma das mais dinâmicas do mundo, expandindo-se a taxa média de 6% ao ano. Durante este longo período, uma vasta região agrícola deu lugar à indústria mais diversificada do mundo em desenvolvimento, fazendo com que os níveis de urbanização se aproximassem dos verificados nos países desenvolvidos. Processou-se, assim, por meio de mecanismos e instituições muito peculiares, uma “autêntica mutação industrial” (Castro e Pires de Souza, 2004, pp. 75-78), consolidando uma economia dinâmica e minimamente integrada na indústria, agricultura e serviços e avançando rumo aos setores intensivos em capital.
A variedade do capitalismo no Brasil estruturou-se a partir da combinação entre ação poderosa e seletiva do Estado; atração de empresas transnacionais para os setores dinâmicos; existência de um empresariado nacional, atuando como monopolista nos setores tradicionais ou como subsidiário do capital externo nos demais; amplo contingente de trabalhadores assalariados precários, sem direitos ou informais, recentemente urbanizados, que pressionavam ou interagiam com a nascente classe operária que se configurava em termos nacionais; abertura de fronteiras internas no território nacional, permitindo a elevação da rentabilidade do capital com subsídios públicos; ausência de reformas agrária e urbana em meio à expansão explosiva das metrópoles; existência de uma classe média com altos níveis de renda e de escolaridade; e dependência financeira e tecnológica das economias dos países desenvolvidos, minando uma transformação do capitalismo no sentido de conferir maior autonomia aos centros internos de decisão.
Entretanto, no início dos anos 1980, a economia brasileira sofreria um duro golpe. A combinação de taxas de juros internacionais e preços do petróleo elevados, queda dos preços das demais commodities e recessão nos países desenvolvidos atingiu fortemente o país.
O governo reagiu aos problemas, desvalorizando a moeda brasileira e elevando as taxas de juros como forma de conter os altos níveis de inflação. A recessão permitiria a geração de superávits comerciais e o cumprimento parcial dos compromissos externos. Paralelamente, o déficit público explodiu, basicamente por meio da conversão da dívida externa em dívida interna assumida pelo Estado. Descontrole inflacionário e estagnação do PIB per capita seriam as marcas dos anos 1980.
O dinâmico capitalismo brasileiro estancou, afetando os níveis de investimento. Ainda assim, os segmentos oligopolizados da indústria lograram manter as suas taxas de lucro. As várias frações do capital, que se desenvolveram no período anterior, passaram a se proteger por meio da remuneração no circuito financeiro, comandado por um Estado deficitário, no qual dívida pública elevada e juros altos se somavam às vantagens fiscais concedidas pelo poder público (Belluzo e Almeida, 2002).
Apenas a partir de julho de 1994, com a implementação do Plano Real, a economia brasileira conseguiu não apenas reduzir os níveis de inflação, mas também torná-los estáveis. Juntamente com o plano de estabilização, foram introduzidas reformas estruturais na economia brasileira. Os mentores do plano acreditavam estar inaugurando um novo modelo de crescimento, pautado na obtenção dos ganhos de produtividade por meio das privatizações, da abertura comercial e da atração de investimentos externos (Franco, 1999).
O Plano Real tinha como principal instrumento a âncora cambial, que estabelecia uma banda de variação do real com relação ao dólar. O objetivo era, em uma economia aberta, valorizar o real, reduzindo, assim, o custo das importações, a fim de controlar a inflação e acelerar a modernização da economia brasileira.
Se, em um primeiro momento, a abertura econômica e financeira permitia ao país se aproveitar da liquidez internacional, durante os períodos de incerteza na economia internacional – como nas crises mexicana, de 1994, asiática, de 1997, e russa, de 1998 –, esta opção cobraria um preço bastante alto, especialmente com relação às contas públicas, penalizando especialmente o governo federal.
O período de 1994-1998 pode ser, portanto, caracterizado como de “ultra-abertura”, gerando uma exagerada pressão competitiva sobre as empresas brasileiras. Estas, contudo, em virtude do quadro macroeconômico (juros altos, câmbio valorizado, elevação da carga tributária e redução das tarifas de importação), não responderam via introdução de novas tecnologias. Ao contrário, preferiam reduzir suas linhas de produtos, importar bens de capital e realizar ajustes defensivos por meio de processos de outsourcing (Kupfer, 2005).
Como resultado, os níveis de informalidade e desemprego explodiram nos anos 1990, no Brasil, especialmente a partir de 1995, chegando ao seu ápice em 1999, ano em que o país sofre um ataque especulativo e é forçado a desvalorizar o real. O desemprego aberto chega a quase 10% pela taxa nacional da Pnad/IBGE e a informalidade supera a casa de 50% do total de ocupados.
Apenas após a desvalorização do câmbio, em 1999, a política econômica brasileira se alteraria, passando a girar em torno de um novo tripé: câmbio flutuante, superávits primários e metas de inflação. Isto significa que toda a vez que o câmbio se desvalorizava, os juros subiam para conter a inflação e deveriam ser acompanhados por uma elevação dos superávits primários. Ao contrário, uma valorização cambial permitia uma queda dos juros e, em tese, um maior afrouxamento da política fiscal.
Ao longo do período 1994-2002, o Brasil cresceu a taxas inferiores a 3% e de forma bastante instável, consolidando a trajetória estilo stop and go. Cada miniciclo de crescimento era abortado pelos déficits externos, que exigiam juros altos para o seu financiamento, geralmente a base de capitais de curto prazo, dada a insuficiência do montante de investimentos externos diretos.
Além de um Estado enfraquecido, economia incapacitada para o crescimento, altas taxas de desemprego e informalidade e explosão da dívida pública, como consequência dos juros altos, o Brasil caracterizou-se por uma modernização seletiva, já que o mercado nacional se mostrava errático e, no externo, as empresas brasileiras – à exceção de algumas ilhas de excelência –apresentavam-se pouco competitivas em virtude do regime macroeconômico.
Desta forma, o capitalismo brasileiro passou por um processo de regressão, como se pudesse se descuidar da necessidade de acumulação de capital. Atraía-se capital externo, ganhava-se na aplicação dos títulos do governo, importavam-se padrões de consumo e tecnológicos, mas eles se mantinham restritos a uma diminuta elite. Segundo a terminologia braudeliana, o capitalismo implantava-se como lugar privilegiado, no andar superior e diminuto da vida econômica, a partir da interação entre Estado e agentes privados monopolistas, mas sem vitaminar a economia de mercado circundante, antes a desorganizando.
Na prática, instaurava-se um regime macroeconômico que estimulava a desnacionalização do parque produtivo e a valorização do capital na órbita financeira, criando um ambiente bastante vulnerável a crises externas, que se faziam sentir especialmente sobre as variáveis do mercado de trabalho.
2 – Nova dinâmica econômica e inconsistência do padrão de desenvolvimento
Como explicar a sensível mudança entre o cenário acima descrito e os relatos governistas do final da primeira década do século XXI, na antevéspera da eleição da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, os quais apontavam com todas as pompas da retórica para a conformação de um “modelo social-desenvolvimentista” no Brasil?
O contraponto entre as análises de Furtado e Rangel dos anos 1980 nos permite lançar algumas hipóteses sobre a transformação processada, não capturada na sua totalidade pelos analistas do governo, e muito menos pelos ideólogos mercadistas, que viram a sua ilusão soterrada já ao final do segundo governo FHC.
Enquanto Furtado (1984, pp. 10-11) denunciava o Brasil como caso exemplar de “mau desenvolvimento”, associando o supérfluo privado ao gigantismo do supérfluo público, pois o Estado, nos estertores da ditadura militar, procurava, via tecnocracia, compatibilizar a ideologia da potência emergente com a gestão das empresas transnacionais controladoras da tecnologia, Rangel (1985/2005, pp. 699-700, 705) prognosticava que o capitalismo brasileiro, apesar da crise, ainda “teria muito chão a palmilhar”. Apesar das desigualdades regionais e sociais e do mimetismo cultural das elites, havia-se logrado produzir endogenamente ciclos econômicos, conferindo “nova dignidade ao capitalismo brasileiro”.
Os anos 2000 ecoam este diálogo interditado, ao revelarem o potencial adormecido de expansão do mercado interno, o qual parece insuficiente, entretanto, para uma alteração decisiva do padrão de desenvolvimento.
Descontado o palavrório de alguns intelectuais porta-vozes do oficialismo e a cobertura pouco criteriosa da mídia internacional, e sem cair na ladainha da oposição de que tudo se deve ao cenário favorável da economia global – o que soa, no mínimo, discutível depois da crise de 2008 –, uma combinação complexa de elementos internos e externos auxilia a explicação do desempenho favorável da economia brasileira no pós-2004. Depois de quase um quarto de século convivendo com um quadro de semiestagnação econômica, a economia brasileira voltaria a crescer entre 2004 e 2008. Nesse período, o PIB expandiu-se a uma média de 4,5% ao ano.
De maneira quase surpreendente, ao menos para os analistas focados no curto prazo e desprovidos de conhecimento histórico, o capitalismo brasileiro se mostraria novamente dinâmico. Dois fatores interligados explicam a retomada do crescimento no país.
Em primeiro lugar, o boom internacional permitiu uma melhora expressiva das contas externas pós-2002.
Canais de transmissão da crise
Em segundo lugar, a redução dos juros internos juntamente com a expansão do crédito e do gasto público – em infraestrutura e para os programas sociais, inclusive previdência social atrelada ao salário mínimo crescente – permitiram uma expansão do mercado interno, que estimulou as expectativas de retorno dos investidores privados. Paralelamente, as empresas passaram a sofrer uma pressão competitiva menor, possibilitando um movimento no sentido da substituição de certas importações, ainda que a taxa de câmbio tenha voltado a se apreciar de maneira expressiva de 2006 em diante.
Ou seja, a melhoria das contas externas atuou como fator exógeno positivo, que permitiu a adoção de novos estímulos internos. A interação entre estas duas forças permitiu o reforço da acumulação de capital, repercutindo sobre os níveis de emprego e da massa salarial.
Paralelamente, as contas do Estado também foram favorecidas por conta dos juros menores e da maior arrecadação. O equilíbrio fiscal foi alcançado sem a necessidade de realizar cortes em gastos essenciais, e a manutenção do superávit primário impediu que os déficits nominais se elevassem. Como consequência, durante o ciclo recente de crescimento, verificou-se uma queda quase contínua da relação dívida pública/PIB.
Por outro lado, a fragilidade da infraestrutura e a necessidade de criar condições para a continuidade da expansão econômica levaram o governo federal a retomar e planejar gastos em grandes obras (via Programa de Aceleração do Crescimento – PAC) e também estimular os investimentos privados, principalmente, por meio do seu banco de fomento, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que passou a contar com uma carteira de investimentos superior à do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e à do Banco Mundial somadas.
Os gráficos abaixo permitem discorrer sobre alguns elementos da nova dinâmica econômica. A partir de 2005, a taxa de investimento se expande de forma expressiva (gráfico 1), apesar de se encontrar bem abaixo dos patamares das nações em desenvolvimento de crescimento rápido. A expansão do mercado interno não se deve, portanto, aos programas sociais e ao aumento do salário mínimo. Esses fatores antes respondem positivamente à dinâmica de acumulação returbinada. No triênio 2006-2008, por exemplo, os investimentos chegam a crescer quase 2,5 vezes à frente do PIB.
No quinquênio 2004-2008, ao contrário do mito da desindustrialização, que surgiria depois, o crescimento entre os setores se deu de maneira razoavelmente equilibrada, com a existência de encadeamentos não desprezíveis. A indústria – agrupando extrativista mineral, de transformação, da construção civil e de serviços de utilidade pública – expandiu-se a uma taxa média de 4,3%, superando inclusive a agropecuária (3,7%), ficando atrás apenas do setor de serviços (4,8%)
Foi nesse momento otimista que a crise internacional de origem financeira encontrou o Brasil. Os canais de transmissão, porém, não seriam os mesmos vividos na Europa e nos Estados Unidos. O problema afetaria o país por meio de variáveis macroeconômicas tradicionais, como a queda nas exportações e na entrada de investimento direto estrangeiro, aumento da renda líquida enviada ao exterior, aperto nas linhas de crédito internacionais e, naturalmente, deterioração das expectativas do setor produtivo privado.
Ficava evidente, portanto, que se a “financeirização” havia corroído todo o sistema econômico nos países desenvolvidos, esta se aninhara no país especialmente no âmbito da rolagem da dívida pública – circuito desenvolvido nos anos 1980 e 1990. Neste sentido, o caso brasileiro funciona quase como uma imagem invertida daqueles países, na medida em que a redução dos juros escorchantes aciona uma “financeirização” para as camadas de baixo da população. Se é verdade que o governo Lula não enfrentou a acumulação estritamente financeira, esta cedeu espaço – ainda que mantivesse uma posição de destaque – para que se alavancassem novas frentes de acumulação capitalistas, vinculadas diretamente com o desenvolvimento do setor produtivo e tendo, como consequência, a ampliação do nível de empregos.
O rol de medidas adotadas durante a crise teve efeito positivo imediato, como revela a rápida recuperação de 2010. A ação se deu em múltiplas frentes: ampliação da liquidez em moeda estrangeira e nacional, associada ao papel de destaque assumido pelos bancos públicos e pelo BNDES, ao acréscimo dos gastos do Estado e às desonerações tributárias, sem interrupção, antes pelo contrário, dos programas de transferência de renda e do aumento do salário mínimo (Barbosa e Pereira de Souza, 2010, pp. 84-95).
Apesar da redução da vulnerabilidade externa e da ativação do mercado de trabalho, ao ponto inclusive de reduzir os níveis de pobreza e de desigualdade, como veremos adiante, não se haviam sentado as bases para um novo padrão de desenvolvimento. Aos poucos, e especialmente com a nova desaceleração das economias desenvolvidas em 2011-2012, perceberia-se que o país necessitava não apenas de alterar o tripé da política econômica, mas também de ativar um novo rol de políticas desenvolvimentistas de longo prazo.
3 – Redução da vulnerabilidade e perfil da inserção externa
Antes de tecermos algumas considerações sobre o perfil de inserção externa da economia brasileira durante os anos 2000, faz-se necessário apresentar o significado desse conceito.
Por perfil da inserção externa, entendemos o tipo de entrosamento da economia brasileira com o novo contexto global, nas suas várias frentes, comercial, financeira, produtiva e tecnológica. Não se trata de tarefa simples, pois uma dupla questão está em jogo: o que mudou na estrutura de funcionamento da economia global e como o Brasil enfrentou ou se acomodou a este conjunto de transformações.
De maneira um tanto surpreendente, apesar da abertura dos anos 1990, e das mudanças do capitalismo nos anos 2000 – ascensão chinesa, trazendo consigo uma nova divisão internacional do trabalho, com níveis de expansão econômica superiores na periferia aos das áreas centrais –, o perfil de inserção externa da economia brasileira não se alterou de maneira radical, ainda que alguns novos elementos mereçam destaque.
Em primeiro lugar, houve uma expressiva redução da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Isto pode ser apurado a partir de um conjunto de indicadores: relação dívida externa/exportações cadente, expansão do volume de reservas internacionais e melhoria do saldo de transações correntes – o qual chegou a ser positivo até 2008, voltando a uma posição deficitária daí em diante para se situar em 2,3% do PIB no ano de 2010.
Entretanto, o perfil de inserção externa se mantém caracterizado pelo baixo coeficiente de abertura (exportações + importações/PIB) na comparação internacional e pela elevada capacidade de atração de empresas transnacionais, concentradas nos setores dinâmicos de serviços e indústria (80% dos fluxos em 2010), e voltadas para o mercado interno e para a utilização do Brasil como plataforma de exportações.
A dependência tecnológica se faz sentir pela presença destas empresas no mercado interno e pelo elevado déficit comercial de bens industriais – especialmente intermediários e bens de capital – de alto valor agregado. No caso dos investimentos das transnacionais, os fluxos quintuplicaram entre 2003 e 2010, ano em que chegaram a US$ 48,5 bilhões, representando 40% do total por estas investido na América Latina e 8% do destinado para o mundo em desenvolvimento (Cepal, 2011, pp. 24, 65-66).
Inverteu-se, assim, a premissa equivocada dos anos 1990: é o crescimento econômico – ao menos em mercados com o potencial do brasileiro – que puxa os investimentos externos diretos, e não o contrário.
Paralelamente, em virtude dos níveis de crescimento apresentados e do diferencial de juros, o Brasil tornou-se destino privilegiado para aplicações estrangeiras em carteira nos mercados de ações e de títulos da dívida pública.
Alguns fatos novos merecem destaque: a crescente transnacionalização das empresas brasileiras e a maior diversificação dos fluxos de comércio, em virtude da “nova geografia comercial”. Vale ressaltar que entre 2003 e 2010, as exportações brasileiras se multiplicaram por 3,3 e as importações, por 3,8, mantendo o país um saldo comercial durante todo o período.
O gráfico 3 aponta para uma redução da participação de Estados Unidos e União Europeia nas vendas externas brasileiras: as duas áreas somadas, que respondiam por metade das nossas exportações em 2001, contavam, em 2010, com menos de um terço. Paralelamente, a América Latina afirma-se como principal destino das exportações brasileiras, com 23% do total. Sem sombra de dúvida, o grande destaque vem da China, que passa a figurar como destino de 15,6% das vendas externas brasileiras, um percentual quase cinco vezes superior ao verificado em 2001.
Não se trata de mudança pouco expressiva, já que, em 2010, África e América Latina respondiam por um percentual semelhante ao total das exportações brasileiras aos Estados Unidos e União Europeia somadas. Em vez de sugerir que esta mudança foi fruto da política externa de Lula, talvez seja o caso de sugerir que esta se acoplou à mudança dos fluxos de comércio.
Adicionalmente, se a política externa soube se aproveitar da nova divisão internacional do trabalho, ela não se circunscreveu aos benefícios potencialmente econômicos, lançando uma arrojada estratégia geopolítica que, se recuperou a identidade Sul, não o fez em detrimento do Norte. Foi restaurado, desta forma, o papel da política externa como instrumento da estratégia de desenvolvimento, tal como havia sido empreendido no passado, mas agora em um novo contexto e com diversa orientação, pois o protagonismo do país se exerce não mais de maneira defensiva, mas tenta projetar uma espécie de “revisionismo soft” (Soares de Lima, 2010, 159-160, 174-176).
Ainda assim, em termos especificamente econômicos, o que tem prevalecido é uma contínua pressão competitiva chinesa sobre a indústria de transformação brasileira no mercado interno, a qual se mostra diferenciada nos vários setores e já desloca inclusive as exportações brasileiras de produtos manufaturados, especialmente nos países da América do Sul. Os crescentes déficits comerciais em bens industriais do Brasil com a China, mas também com os Estados Unidos e a União Europeia, mais do que compensam os superávits obtidos com a América do Sul e a África.
Neste sentido, uma reorganização ofensiva da estrutura produtiva brasileira pode e deve estar alicerçada no seu mercado interno e no mercado regional, ao mesmo tempo em que procure enfrentar o desafio competitivo dos países do Norte desenvolvido e da China. O perfil de exportações centrado em commodities para a China e em bens industrializados para o restante da periferia não se mostra sustentável no longo prazo.
Trata-se de um desafio não da política externa, mas das políticas de desenvolvimento, industriais, tecnológicas, de financiamento e de expansão da infraestrutura, que dinamizem as cadeias produtivas nacionais, inclusive regionalizando-as, de modo a superar a pressão competitiva nos setores de maior valor agregado. A integração regional aparece como um fator decisivo para o enfrentamento deste desafio.
Simultaneamente, novas interações entre empresas transnacionais e nacionais (privadas e estatais) devem ser soldadas no intuito de elevar o grau de adensamento produtivo no mercado interno.
Finalmente, a dependência de capitais financeiros de curto prazo deve ser atenuada, para o que as ações no plano nacional devem se associar a uma posição assertiva nos fóruns multilaterais, especialmente o G-20.
Em suma, a simples expansão a partir do mercado interno não pode ser mais a âncora exclusiva para a crescente diversificação da economia brasileira. Um padrão de desenvolvimento consistente – e que não se mostre refém de oscilações conjunturais – depende de uma inserção mais dinâmica do país nos mercados internacionais, mas também de uma negociação das condições de atuação das empresas transnacionais no mercado interno.
Um jogo de mão dupla, portanto, no qual a política externa aparece acoplada a uma estratégia de desenvolvimento e, inclusive, a uma reconfiguração da estrutura de poder global, algo que passou a ser desenhado na Era Lula, mas cujos resultados ainda não podem ser apurados, até porque são vários os atores e interesses envolvidos.
4 – Mercado de trabalho, pobreza e desigualdade
A combinação entre expansão das exportações e do mercado interno, acompanhada da reativação dos investimentos públicos e privados – estes especialmente a partir de 2006 – permitiu a elevação da capacidade de geração de empregos a níveis bastante superiores aos dos anos 1990, quando o mercado de trabalho sofre uma regressão, expulsando segmentos que haviam se incorporado à classe trabalhadora e à classe média assalariada.
Os dados para os anos 2000 desmontam os diagnósticos predominantes na década anterior, os quais apontavam para uma limitação da capacidade de geração de empregos oriunda dos altos custos do trabalho. Flexibilizar ou aceitar os altos níveis de desemprego e de informalidade, este era o mantra dos economistas mercadistas.
Como se pode depreender da tabela 1, entre 2001 e 2011 – que inclui os períodos 2001-2003 e 2009 de baixo crescimento econômico –, o país ampliou em 15,5 milhões o total de postos de trabalho. Noventa e oito por cento destes foram empregos assalariados regulares, ou seja, com carteira assinada no setor privado ou de empregados do setor público. O desemprego aberto caiu de 9,3% para 6,8% durante o período, segundo a taxa calculada pela Pnad/IBGE e que abarca o conjunto do país.
Calculando a média anual do período, para uma expansão de 1,6% da População Economicamente Ativa (PEA), o nível de ocupação obteve um incremento de 1,9%, puxado pela dinâmica do emprego assalariado regular, cuja taxa de crescimento se situou em 4,5%. Este comportamento positivo do mercado de trabalho refletiu a nova dinâmica econômica instaurada no período, cujo ápice se encontra no triênio 2006-2008, quando o nível de ocupação cresce 2,2% e o emprego registrado, 5,7% ao ano.
Tal expansão do emprego, com crescente formalização, ocorreu sem alteração do marco regulatório das relações de trabalho e da estrutura sindical e em um contexto de expressiva elevação do valor real do salário mínimo, superior a 60% no período analisado, levando, assim, a um estreitamento do leque salarial e à elevação do piso de remuneração do trabalhador assalariado.
Contudo, as características que conformaram um mercado de trabalho bastante heterogêneo e amplificador das desigualdades, ao longo da história de desenvolvimento do capitalismo no país, não foram transformadas de maneira substantiva.
A título de ilustração, cabe ressaltar que, em 2011, 50% dos trabalhadores ocupados (conta própria, assalariados irregulares, empregados domésticos e não remunerados ou inseridos na economia de subsistência) – contra 59% em 2001 – estavam inseridos de maneira precária ou em atividades não propriamente capitalistas, na maioria das vezes com baixos níveis de renda e sem acesso aos direitos trabalhistas.
Em síntese, o mercado de trabalho durante o período de dinâmica econômica vigorosa passou a incluir, ao invés de excluir, elevando o total de postos de trabalho formais e a renda na sua base. Isto não impediu que segmentos expressivos da força de trabalho continuassem a viver em condições de precariedade em termos de renda, direitos e condições de trabalho. Mas, a tendência não foi no sentido da precarização como nos anos 1990. Muito provavelmente se verificaram processos de ascensão social, via maior complexidade da estrutura de classe, a qual segue marcada por segmentos que compõem um vasto subproletariado, o que permite desmentir a tese tão propalada pelos mercadistas de que o país estaria vivendo no limite do pleno emprego.
Os dois gráficos abaixo revelam como a recuperação do mercado de trabalho se fez refletir em termos de redução da pobreza e da desigualdade. As transferências de renda – não apenas Bolsa Família, mas também aposentadoria rural e Benefício de Prestação Continuada – cumpriram um papel de destaque para a redução da pobreza, enquanto a queda da desigualdade se deveu basicamente à expansão da renda do trabalho para aqueles situados na base da estrutura salarial.
De qualquer forma, o Brasil continua figurando como um dos campeões da desigualdade em termos internacionais. Deve-se levar em conta, também, que este indicador refere-se à média do país, o que significa muito pouco num contexto de fortes desigualdades espaciais. Os dados indicam, inclusive, que a desigualdade se reduziu mais rapidamente nas regiões de maior renda per capita (Barbosa, org., 2012).
Cabe ressaltar que o incremento dos níveis de emprego e renda, de acesso ao crédito e de consumo por parte dos segmentos que compõem a base da pirâmide social brasileira não veio acompanhado por uma universalização dos direitos básicos de cidadania e das políticas sociais com qualidade. Adicionalmente, as condições de habitabilidade urbana – onde vive mais de 80% da população brasileira – seguem marcadas pela extrema precariedade.
Considerações Finais
Este artigo procurou mostrar a inflexão processada durante a Era Lula, levando em consideração a nova dinâmica econômica, o perfil de inserção externa e os impactos sobre o mercado de trabalho, que possibilitaram uma importante queda da pobreza e, em menor medida, da desigualdade.
A manutenção, em linhas gerais, das coordenadas da política macroeconômica herdadas do governo anterior não impediu o lançamento de novas ações de cunho desenvolvimentista. Estas envolvem a recuperação do gasto público e do investimento privado, para o que se mostrou vital o maior fôlego conferido às empresas e aos bancos estatais, com destaque para o BNDES, além dos programas de transferência de renda e de elevação do poder de compra do salário mínimo.
As ações desenvolvimentistas também se aproveitaram de um novo posicionamento econômico e geopolítico do país na nova divisão internacional do trabalho. Esta interação virtuosa fez com que a Era Lula projetasse o país numa nova direção, deixando para trás o quadro de semiestagnação com abertura indiscriminada e papel acanhado do Estado, traços característicos do período anterior.
Não obstante, os avanços acima sumarizados podem se converter em retrocessos no médio prazo. A nova dinâmica econômica, junto com a redução da vulnerabilidade externa não são condições suficientes para a emergência de um novo padrão de desenvolvimento. Para tanto, necessita-se de uma reorganização da estrutura produtiva no sentido do aumento da produtividade, com uma nova institucionalidade para as relações entre setores público e privado na área de infraestrutura, e uma aposta para além da retórica no potencial da integração regional sul-americana. Paralelamente, uma nova legislação social e trabalhista revela-se imprescindível para ampliar o acesso a direitos e dinamizar as relações capital-trabalho, no sentido de uma maior participação dos salários na renda nacional.
Por mais que este texto tenha se dedicado aos vários aspectos econômicos que compõem um padrão de desenvolvimento – que seja capaz de alavancar a acumulação de capital e de promover uma redução expressiva da desigualdade –, o nó da questão reside na política. A ampla coalizão de classes que sanciona a atual estrutura de poder, a qual se subordina às artimanhas de uma grande aliança de forças políticas nos marcos do presidencialismo de coalizão, parece incapaz de atuar sobre as contradições reprocessadas durante a Era Lula, colocando-as num novo patamar.
Esta variável política estratégica condiciona todas as demais. Caso não sejam promovidas fraturas nesta estrutura de poder, mantendo-se o governo como árbitro ora dos interesses difusos das classes dominantes, ora das pressões dos movimentos sociais, num vaivém eterno em que o horizonte estratégico é comprometido, os avanços logrados podem se transformar em retrocessos, no sentido de se ter perdido uma oportunidade histórica para se conjugarem, no Brasil, desenvolvimento econômico, alavancado pelo mercado interno, mas competitivo internacionalmente, inclusive nos setores de maior valor agregado, e redução continuada da desigualdade para além dos níveis de renda.
O fato de que esta utopia desenvolvimentista possa ser hoje formulada, algo impossível nos anos 1990, é a principal prova de que a Era Lula redefiniu as potencialidades de desenvolvimento nacional, para o qual as transformações econômicas e geopolíticas globais podem, em vez de obstaculizar, atuar como estímulo.
ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA
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