"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Proclamação da República e o presidencialismo brasileiro


No imaginário brasileiro, o chefe do Executivo é o depositário de todas as esperanças, responsável por todos os erros e frustrações, fonte de todas as iniciativas de sucesso. A propaganda presidencialista foi muito forte no estado de São Paulo, especialmente na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de onde saíram presidentes da República, a exemplo de Prudente de Moraes e Campos Salles.

Houve baixíssima participação política durante o Império, e entende-se a proclamação da República e a implantação do presidencialismo como arranjo de classes dominantes. Insiste-se na ambiguidade para com a experiência norte-americana; apologética em Rui Barbosa, demasiadamente cética em Eduardo Prado. Este último era um crítico da influência norte-americana no Brasil.

O presidencialismo é o sistema de governo que adotamos no Brasil com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. A queda do Império teria ocorrido basicamente por causa da perda de apoio da dinastia Bragança, o que ocorreu a partir dos episódios da Questão Social — abolição da escravidão —, da Questão Religiosa — uma querela entre o Imperador e a Igreja, entre outros, sobre a validade dos decretos papais no Brasil —, e da Questão Militar — uma disputa entre o Imperador e alguns oficiais do Exército sobre a punição de militares que se pronunciaram publicamente sobre um projeto de lei que tratava do montepio nas Forças Armadas.

A crise do Segundo Reinado se alastrou de 1870 a 1880; tem-se “(...) o início do movimento republicano e os atritos do governo imperial com o Exército e a Igreja (...) além disso, o encaminhamento do problema da escravidão provocou desgastes nas relações entre o Estado e suas bases sociais de apoio”. Militares, clérigos, fazendeiros e bacharéis derrubaram um regime que durou 77 anos. O Brasil era a única Monarquia na América.

Baixíssima participação popular marcou o movimento, circunstância narrada de modo irônico por Machado de Assis, testemunha ocular dos fatos, na expressiva cena da tabuleta da Confeitaria do Custódio, cume da sátira política machadiana em Esaú e Jacó.

Resumidamente, Machado de Assis nos conta a estória do dono de uma confeitaria, Custódio, para a qual fizera uma tabuleta, com os dizeres Confeitaria do Império. Porém, a partir de 15 de novembro de 1889, o mais prudente seria Confeitaria da República. Para evitar que a turba se pegasse em frente ao estabelecimento, o mais adequado mesmo foi a indicação Confeitaria do Custódio.

Forte foi também a influência do pensamento positivista, que mais tarde ficará gravado em nossa bandeira republicana, com fragmento de premissa de Augusto Comte, “ordem e progresso”. O positivismo cativou os militares. Um de seus maiores seguidores, Benjamim Constant, era professor da Escola Militar; mais tarde foi ministro da Guerra, e posteriormente foi ministro da Instrução Pública. Muito influente, foi o grande propagandista do positivismo no meio militar.

A questão abolicionista se arrastava desde a Proclamação da Independência, sempre marcada por intensa pressão inglesa. Internamente foi o núcleo de debate a propósito da modernização do Brasil, além, naturalmente, da pregação humanista, que marcou a trajetória de Joaquim Nabuco, para quem a escravidão era uma ilegalidade flagrante, eleita como eixo de um projeto de reforma social. Estávamos entre os últimos a abolir a escravidão no continente americano. Joaquim Nabuco associa seu nome a essa luta.

No Império (1822-1889) a cidadania era restrita, exclusiva e excludente. E, de cima para baixo, os protagonistas daquela pantomima de democracia desconheciam as razões pelas quais muitas vezes eram candidatos, ou eleitos. A propaganda republicana questionava nosso atraso institucional; nessa estratégia, militares e ascendente camada urbana se aproximaram; o impulso modernizador foi fortíssimo componente de uma revolução burguesa brasileira.

Primeira das intervenções militares na política brasileira, a Proclamação da República decorreu de movimento que contou também com o apoio de uma pequena burguesia urbana, canalizada por uma obsessão do Exército, que fez nosso primeiro presidente, o alagoano Manoel Deodoro da Fonseca


O presidencialismo é ligado ao movimento republicano, do qual é uma das mais emblemáticas expressões. É vinculado à pregação dos republicanos históricos, em São Paulo, a exemplo de Rangel Pestana, Américo de Campos, Francisco Glicério e Bernardino de Campos. A propaganda republicana foi muito forte na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde estudaram Silva Jardim, Rui Barbosa, Prudente de Moraes, Campos Salles, bem como a um grupo de gaúchos ligados ao positivismo que em São Paulo foram estudar, a exemplo de Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, Silveira Martins e Assis Brasil.

Foi intensa a ligação do bacharelismo liberal brasileiro com a onda republicana, em momentos que oscilavam entre a euforia e o desencanto, este último sintetizado na frase “não era essa a República dos meus sonhos”, de Saldanha Marinho, que era bacharel em Direito pela Faculdade de Recife.

O federalismo e o presidencialismo cativavam os bacharéis; no entanto, não havia — efetivamente — programa educacional definido que não transcendesse ao cientificismo do ideal positivista o que, do ponto de vista de um projeto de cultura, fazia do republicanismo uma utopia que mais valia pelo antimonarquismo. O bacharelismo vai significar um modo de profissionalização da política, protagonizando uma “culturologia do Estado”. O bacharel liberal via-se na República, como sugere a seguinte passagem de Rui Barbosa:

“Impor a República pela sua forma, em lugar de recomendá-la pelo valor das suas utilidades, seria entronizar na política a superstição. As formas, que não correspondem ao espírito, à ação viva, à existência interior, são máscaras de impostura. A república é a democracia e a liberdade na lei. Logo que a forma viola a justiça, oprime o indivíduo, ou falseia o voto da nação, a república está em contradição consigo mesma. O culto, que lhe reclamam, seria então o dos falsos deuses. E idolatria senhores, não quer dizer outra coisa: religião da mentira, idiotice do religionário. Só as más repúblicas a podem ter. A república verdadeira não quer fanatismos: contenta-se com a devoção refletida, e o entusiasmo inteligente de servidores austeros, francos, intementes no remédio e na censura. Dessa espécie sou eu republicano. Quero a república justa, a república livre, a república popular. Não sacrifico a substância à forma: faço questão de harmonizar uma com a outra”.

Uma série de manifestos republicanos antecedeu o golpe de 1889. Colhe-se desses textos síntese doutrinária marcada por ética absoluta — qualificada por uma intransigente defesa da honra —, por certo despotismo esclarecido — do qual o presidencialismo pode ser herdeiro direto —, por crítica radical à Monarquia e às instituições monárquicas, por um federalismo também radical — seu mais expressivo elemento, do ponto de vista da ciência política —, pela pregação de imaginária fraternidade americana, além de comprovada e intensa inspiração liberal, que remonta à obra de Thomas Paine.

O golpe na Monarquia foi dado pelos militares que, “(...) liderados por Deodoro e Benjamin Constant, sentiam os tempos maduros para a purificação do corpo político”. O Imperador deixou o Brasil; sua ausência deprimiu seus amigos mais próximos; a proclamação de Deodoro, que vale como um discurso de posse, assinalou uma nova formulação que a República pretende fixar — a cidadania —, bem como a expectativa de que os novos tempos seriam conduzidos por autoridade ungida pela vontade popular, o que é a marca ideológica mais recorrente no presidencialismo brasileiro:

“Concidadãos- O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão d sentimentos com nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e consequentemente a extinção do sistema monárquico representativo. Como resultado imediato desta revolução nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um governo provisório, cuja principal missão é garantir, com a ordem pública, a liberdade e o direito dos cidadãos (...) O governo provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem. 

No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido para a defesa da integridade da Pátria e da ordem pública, o governo provisório, por todos os meios a seu alcance, permite e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros: a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as limitações exigidas pelo bem da Pátria, e pela legítima defesa do governo proclamado pelo povo, pelo exército, pela armada nacional (...) O governo provisório reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente constituídas”.

A atração pelos Estados Unidos logo se revelou. É nítida na ação e na influência de Rui Barbosa. O advogado discutia a opção constitucional de realizarmos eleições diretas para presidente, ao contrário do que ocorria nos Estados Unidos. A opção revelava algum excepcionalismo, ainda que decorrente de nossas características peculiares. Copiamos, mas adaptamos. É o que se alcança na pregação de Rui nos jornais da época:

“(...) A convenção americana de 1787, na constituição com que dotou os Estados Unidos, e os membros do Governo Provisório em 1890, no plano constitucional de que é resultado a constituição brasileira de 1891, punham timbre em zelar a pureza do corpo legislativo, e assegurar realmente à nação a escolha de seu primeiro magistrado, excluindo os membros da legislatura dos comícios destinados a Elegê-los. No sistema da constituição americana o eleitorado presidencial compõe-se de tantas unidades, em cada estado, quantos a soma dos seus representantes junto à soma dos seus senadores nas câmaras federais (...) 

Compreendemos, louvamos e queremos que se acompanhe a América do Norte nos seus princípios, nas suas virtudes, nas suas instituições. Mas ir exumar à patologia das suas moléstias extintas uma enfermidade cuja cura os americanos celebram com desvanecimento, para a converter em modelo de adaptação constitucional, injetar-se um vírus perigoso com o capricho de quem se inoculasse uma vacina preservadora, pode ser grande coisa: mas o senso comum, ou, pelo menos, o nosso, não lhe alcança a transcendência”.

Contra o filoamericanismo que tomava conta dos organizadores da República, e do presidencialismo, insurgia-se Eduardo Prado, aristocrata saudosista, que protestava contra suposta fraternidade americana:

“Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-saxônica, de que nos achamos separados, na só pela grande distância, como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo. O fato de o Brasil e de os Estados Unidos se acharem no mesmo continente é um acidente geográfico ao qual seria pueril atribuir uma exagerada importância. Onde é que se foi descobrir na história que todas as nações de um mesmo continente devem ter o mesmo governo? E onde é que a história nos mostrou que essas nações têm por força de ser irmãs? (...) A fraternidade americana é uma mentira (...)”.

Manteve-se, no entanto, comportamento apologético para com o modelo norte-americano, de onde copiamos nosso sistema de governo presidencialista. As instituições monárquicas foram abominadas. 

A organização da República fez-se concomitantemente com a secularização do Estado; o modelo presidencialista foi discutido e desenhado nesse contexto, que marcou nossa primeira constituinte republicana.

Na redação finalmente aprovada da Constituição de 24 de fevereiro de 1891 o presidencialismo foi tratado em seção própria, reservada ao Poder Executivo. É uma característica que nos marca desde então. Como chefe eletivo da Nação, indicou-se o presidente da República da então denominada República dos Estados Unidos do Brasil.

 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

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