"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 24 de agosto de 2014

Instituto do foro privilegiado não atende à evolução do Direito


O foro especial tem a seu favor, além de alguns argumentos legais, a sua longa permanência na história do Direito brasileiro. Vale lembrar que a sua instituição teve por fito evitar que certas autoridades fossem processadas criminalmente nos juízos locais, então havidos como influenciáveis por questões políticas ou de alcance paroquial.

Esse cenário político era uma herança dos mandonismos que provinham da época imperial, que sobreviviam nas décadas iniciais do período republicano, quando as disputas partidárias continham poucas notas que as elevassem acima da rasteirice dos interesses dos chefões municipais, que eram os articuladores políticos.

A Justiça, nesse tempo, vivia à sombra das oligarquias e dos chefetes provincianos, não se assemelhando ao atual e moderno Poder Judiciário do país, formado por magistradas e magistrados de alto preparo intelectual e profissional, atuando com independência superior; nada há que temer, portanto, quanto ao relevante aspecto da imparcialidade dos julgadores, de sorte que o argumento perdeu a base sociológica que eventualmente apresentasse.

Ademais, existem fortes razões de ordem prática que conspiram contra o chamado foro especial. A primeira está no fato de os juízes de primeiro grau serem muito mais vocacionados que os magistrados integrantes dos tribunais para o processamento das ações penais, sobretudo na condução inicial do processo e na fase de produção de provas. É que os tribunais foram e são formatados e mais habilitados para revisarem anteriores julgamentos e para manterem a integridade da Constituição e a inteireza das regras legais.

A segunda é que os tribunais não dispõem de estrutura para processarem e julgarem, originariamente, nas questões penais, 81 senadores, 513 deputados federais, 27 governadores, 5.570 prefeitos, além de centenas de deputados estaduais, além dos ministros do Judiciário e do Executivo.

Acrescente-se a isso que o julgamento em mais de uma instância, possibilitado pelo duplo grau de jurisdição, aquieta um pouco o espírito do condenado que nunca se conforma com uma única sentença que o condene definitivamente.

Percebe-se, assim, já ter sido superado o contexto que explicava o foro especial, sendo uma exigência do modelo republicano — que rejeita privilégios — que todas as pessoas submetidas a processo criminal respondam perante o juízo ordinariamente competente.

Não alimento dúvida que o foro especial não reúne mais elementos de racionalidade que lhe possam subsidiar permanência. Caminhamos, com certeza, para a sua extinção e isso é um sinal que o sistema jurídico se atualiza e se torna contemporâneo de sua própria época. Ao contrário será optar pelo conservadorismo e pelo imobilismo institucional, quando se vê que o instituto do foro especial não atende às expectativas da sociedade e à evolução do Direito
Cesar Asfor Rocha

Fim do foro privilegiado não acabará com impunidade de figurões
Editorial do jornal O Globo publicado (19/8).

A Justiça brasileira é lenta. Ao se criar o Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda 45, em 2004, à Constituição, no governo Lula, tinha-se como meta aperfeiçoar o sistema judiciário, objetivo que passa necessariamente por tribunais mais ágeis. Desde então, quase sempre por ações do CNJ, em geral a produtividade das cortes melhorou, mas ainda assim há muito o que fazer neste particular. O tempo de tramitação de processos está longe do ideal, seja pelo acúmulo de ações nas varas ou pelas possibilidades protelatórias que se escondem em ritos ou chicanas que protelam desfechos. A morosidade é uma negação do ato de fazer justiça. Nesse vácuo apostam autoridades processadas por ilícitos, quase sempre envolvidas em corrupção.

Pela Constituição, réus com cargos públicos (ou que por eles tenham passado) são julgados em instâncias especiais, o chamado foro privilegiado — o Supremo Tribunal Federal, o STJ ou Tribunais de Justiça. Por um lado, esse cuidado visa a proteger o acusado de perseguições políticas por meio da Justiça, maquinadas no Judiciário, ou mesmo pelo Ministério Público; por outro, procura evitar que a proverbial vagarosidade dos tribunais comuns sirva para acobertar crimes de colarinho branco ou inviabilizar ações criminais tipificadas no Código Penal. À vista disso, é emblemático que fim do foro especial seja uma bandeira permanente em várias frentes dos três Poderes, mas mais objetivamente no Congresso, por meio de projetos de lei.

À primeira vista, o fim do foro especial no julgamento de políticos em cargos eletivos e autoridades em geral tem uma capa moralizadora. O principal argumento em defesa dessa ideia é que o STF nem sempre é ágil ao cuidar desses processos — o que não é totalmente falso, mas ainda assim é menos arriscado do que transferi-los para os ainda mais lerdos, e mais suscetíveis a pressões, tribunais comuns. Também se diz que deixar tais processos por conta de uma corte superior visaria a proteger poderosos — argumento que não resiste às próprias iniciativas de réus que, processados no Supremo, procuram transferir a ação para a Justiça comum.

Exemplo notório dessa esperteza deu-se no julgamento do mensalão: a primeira manobra da defesa dos acusados foi tentar desmembrar o processo, para deixar por conta da primeira instância judicial o julgamento dos réus sem foro privilegiado. Uma chicana que, se obtivesse êxito, inviabilizaria a acusação e, na prática, livraria todos os mensaleiros do ajuste de contas com a Justiça. Um exemplo dessas ações ardilosas é a manobra do ex-deputado mineiro Eduardo Azeredo, o principal implicado no mensalão tucano, que, processado, renunciou ao mandato (logo, ao foro privilegiado) para ser julgado em corte de primeira instância. Acabar com a impunidade de figurões não passa por ideias falsamente moralizadoras, como o fim do foro especial. Deve-se, na verdade, aperfeiçoar os ritos judiciais — para o quê, inclusive, há instrumentos legais disponíveis, como metas de produtividade, cobradas pelo CNJ aos tribunais. E é preciso, sobretudo, haver vontade política de melhorar e agilizar o funcionamento da Justiça.

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