Setores da sociedade civil, sindicatos, associações, grupos e partidos políticos, tradicionalmente ligados a setores de esquerda, propõem com um “plebiscito” totalmente informal, entre 1º e 7 de setembro, em locais de votação organizados por qualquer um que queira se juntar a esse movimento, aprovar a convocação de uma assembleia "constituinte soberana e exclusiva" que, sob o objetivo de viabilizar uma reforma política profunda, venha a revogar a atual Constituição da República, de 1988, e elaborar uma nova Constituição para o Brasil (ler aqui).
Embora reconheçamos por óbvio que nenhuma ordem constitucional seja eterna e imutável, o compromisso republicano nos exige denunciar os erros da atual proposta de "constituinte soberana e exclusiva" em seus próprios argumentos.
Sendo assim, esse movimento parte da ingenuidade, histórica e hermenêutica, de defender algo como uma "situação ideal de deliberação", supostamente sem disputas, sem conflito, sem influências externas e à base de um consenso já pressupostamente alcançado, isso que chamam de "constituinte soberana e exclusiva".
O que mais impressiona é que seus idealizadores se dizem porta-vozes do povo e de uma maioria popular que, todavia, contraditoriamente não alcança sequer o quórum de 3/5 exigido para reformar a Constituição.
É certo que, sem mobilização política suficiente para aprovar no Congresso, mudanças constitucionais e legais muitas vezes apelam para a judicialização das questões políticas.
E agora, se não conseguem aprovar as reformas pelos meios da Constituição, seja no Congresso, seja mesmo pela via controversa do Judiciário, passam a defender reformas, e mudanças, ainda que "contra a Constituição". Na verdade, frontalmente contra a Constituição e contra o Estado Democrático de Direito. Ou seja, não acreditam na democracia. Querem estabelecer uma nova, a partir de um grau zero de sentido. Zera tudo, acabam-se direitos e começa tudo de novo.
Por isso, não demonstram ter compromisso republicano mais vigoroso. Assim procedendo, não respeitam as regras do jogo democrático: mostram ter com essas regras uma relação meramente estratégica, instrumental; seriam regras a serem respeitadas somente quando lhes interessam, no mero limite dos seus próprios interesses.
Para tanto, cria-se um conflito artificial entre a Constituição e o que eles querem chamar de "verdadeira democracia popular". Claro: somente alguns sabem o que essa verdadeira democracia popular...
Daí propõem:
a) uma constituinte: a Constituição atual valeria muito pouco. Querem não apenas fazer uma "reforma política", mudando a Constituição, por meio das regras previstas para tanto, mas mudar de Constituição. Incorporam o discurso da direita acerca do suposto caráter ilegítimo e ingovernável da Constituição, desconsiderando a ampla participação política quando da sua elaboração, as disputas políticas e hermenêuticas, bem como a dinâmica social complexa que nesses 25 anos, cheios de idas e vindas, se seguiu à sua promulgação;
b) soberana: sem limites procedimentais e materiais, a não ser com os pontos de vista ideológicos que sustentam como indiscutíveis. Como se alguma coisa em política não fosse controversa, objeto de disputa e exigisse a construção no mínimo de compromissos entre as forças políticas e sociais. Afinal, alguém pode afirmar que haja consenso sobre o conteúdo da tal reforma política entre as várias forças políticas e sociais? E em política alguém pode mesmo falar num consenso prévio sobre qualquer assunto?
c) Além disso, querem que as decisões sejam por maioria absoluta, 50 + 1 dos membros e não por 3/5, para facilitar as mudanças, como se a exigência de reforma constitucional nos termos do artigo 60 não tivesse justamente o sentido da garantia de que as deliberações sejam tomadas à base de compromissos a serem alcançados por meio de debates públicos e de negociações entre os diversos pontos de vista ideológicos em disputa;
d) constituinte exclusiva: exclusivamente eleita para elaborar uma nova constituição. Uma constituinte supostamente isenta em face da própria política e do político. Como se uma assembleia exclusiva não estivesse sujeita às mesmas condições históricas e sociais, bem como à pressão política dos grupos econômicos e dos diversos interesses e valores existentes na sociedade.
Ora, não existe algo tal como uma situação ideal de deliberação. Não há esse grau zero histórico e hermenêutico. No fundo, esse esquerdismo é politicamente liberal. Acredita-se na possibilidade de instauração de algo como uma posição original rawlsoniana, em que interesses e valores serão colocados entre parênteses e os constituintes irão somente por tais restrições levados a decidir no igual interesse de todos os seus representados.
Esse esquerdismo é utópico no nosso sentir. E por tudo isso corre o risco de ser tão autoritário quanto a direita que criticam. Engels já chamava atenção em O socialismo jurídico para o fato de que não se faz uma revolução apenas mudando leis e constituições. Revoluções são feitas politicamente, por meio de transformações sociais e econômicas. E como bem já alertava Lenin: todo "esquerdismo" no fundo é liberal e pequeno burguês, nem revolucionário, nem socialista: O "esquerdismo é a doença infantil do comunismo"!!
O que parece que os nossos bravos defensores da tese de uma assembleia constituinte exclusiva e soberana, com o “povo na rua” etc., não se dão conta é o risco do retrocesso na atual correlação de forças.
Ou seja, é verdade que o quórum de 3/5, previsto pelo artigo 60 da Constituição, bem como as demais limitações formais, circunstanciais e materiais, não impede esses retrocessos. Em nossa opinião, há quem discorde: a chamada emenda da reeleição foi um deles, quando considerada retrospectivamente e no contexto brasileiro. A reeleição não poderia ter sido aprovada. Mas com certeza baixar o quórum para maioria absoluta, além de toda essa proposta de procedimento facilitado e sem nenhum limite material, só incrementa esse grave risco.
A questão é: por que a constituição deles seria mais efetiva ou a democracia deles seria mais democrática? Uma coisa que um marxista como o Franz Neumann chamava atenção é que o Direito, e o Direito Constitucional em especial, enquanto expressão normativa dos compromissos políticos e sociais, pode ser atuado, apesar de tudo, não apenas como um mero instrumento de dominação de classe, mas como garantia contra retrocessos; todavia, se dele soubermos não abrir mão em meio a uma situação de impasse político.
Parece que os defensores da tese não compreenderam bem a história. Basta uma olhada para trás. É ingenuidade pensar que, hoje, uma assembleia constituinte possa trazer mais avanços do que os que constam na atual Constituição. Qualquer um sabe que os atuais direitos, uma vez zerados (afinal, a constituinte seria exclusiva e soberana), deles nada restaria. Até o direito dos índios seriam liquidados. Até mesmo o direito dos professores públicos, suas condições de trabalho, seriam reduzidos a pó. Ou a constituinte seria composta apenas por “agentes do povo”? Os empresários não se elegeriam... Os meios de comunicação não arrasariam com as teses dessa nova esquerda que, paradoxalmente, quer fazer uma nova constituição (portanto, acredita no direito), mas não acredita no direito atual... Suprema ironia. Ou seja, direito sim; desde que seja um outro, feito a partir do grau zero.
Já dissemos alhures (ler aqui), a partir de um Manifesto, que a tese de uma constituinte exclusiva era um haraquiri institucional. O Brasil seria a única democracia do mundo que se autodissolveria, convocando uma assembleia constituinte que partiria do zero. As lutas sociais, os mártires, as batalhas pela democracia de pouco vale(ra)m até hoje. É isso que se depreende dos documentos firmados pelos signatários da tese da constituinte exclusiva. Antes deles, o caos. Depois deles, o paraíso.
Numa palavra: o movimento que defende uma assembleia constituinte exclusiva e soberana é ingênuo. Defende, equivocadamente, uma idealística situação deliberativa, onde reinaria o consenso em torno de ideias revolucionárias, que construirão um novo país, sem privilégios, sem os políticos de hoje, sem essa imprensa burguesa, sem os meios de comunicação, sem as forças de reação, sem os latifundiários etc., etc., etc.
O Brasil gastou nos últimos anos verdadeiras fortunas na formação de seus mestres e doutores, dentro e fora do país. Escreveram-se centenas de teses sobre poder constituinte, sobre democracia, sobre regras do jogo... Para quê? Para nada. Afinal, a democracia do Brasil está um caos, a Constituição é ruim... Solução: zeremos tudo! Fora com a literatura que prega a democracia; fora com as aulas de direito constitucional. Vem aí a assembleia constituinte exclusiva e soberana.
Da proposta percebe-se, por fim, o receio quanto ao futuro. Vem bem a calhar a filosofia da esperança de Ernst Bloch. Durante os anos de 1987 e 1988, o Brasil fez sua escolha por meio de uma constituinte democrática que produziu uma Constituição democrática. Nossas escolhas foram-se atualizando; já sabemos o que queremos e o que não queremos. O desafio agora é a materialização destas escolhas. Retornar ao ponto de onde já partimos há mais de 25 anos significa dizer que construímos história — a nossa, nem pior, nem melhor do que a de ninguém: diferente, apenas — e parece que nada aprendemos com esta construção. Seria mais um momento de lamentação, do sempre desespero idealista do que poderíamos ter sido. Também queremos deixar claro que toda constituição pode ser reformada, ou mesmo abandonada. Não há mal algum nisso e a manifestação democrática constituinte será bem recebida. O detalhe é que, diante do acúmulo histórico que já se conquistou, não nos parece razoável que vivamos um novo momento constituinte quando sequer concluímos o instante positivo escolhido em 1988.
Gilberto Bercovici, Lenio Luiz Streck, Marcelo Cattoni e Martonio Barreto Lima
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