O Brasil vive um momento de muito desencanto e apreensão com o futuro. Diante de problemas sociais e econômicos que parecem não ter fim, você às vezes deve se perguntar: será que tanta luta pela democracia valeu a pena? E até quando teremos democracia do jeito que as coisas vão? Não é hora de desanimar, mas de encontrar alternativas para fazer da democracia aquilo que acreditamos que ela deve ser: um caminho para resolver de fato os problemas do Brasil, melhorando as condições de vida do povo.
Uma dessas alternativas – fundamental, pois vai condicionar todas as outras – está diretamente nas mãos do povo. Dia 7 de setembro de 1993 (ou até antes se, como desejamos, o Congresso resolver assim) haverá um plebiscito para decidir se o sistema de governo do Brasil continua presidencialista, ou muda para o parlamentarismo.
Apresentamos aqui as razões que nos levam a defender o parlamentarismo, e que tipo de parlamentarismo consideramos melhor para o Brasil. Para nós, este livreto terá cumprido sua missão se der a você mais elementos para refletir sobre o assunta e para ajudar outros brasileiros a fazerem sua escolha conscientemente.
Nota do editor: esta versão digital mantém o texto original do documento de agosto de 1991, com a única exceção da tabela da página 20, cujos dados sobre número de eleitores, deputados e candidatos de São Paulo e partidos registrados foram atualizados para 2008.
Sumário
I - QUE É PARLAMENTARISMO
Presidencialismo x parlamentarismo
Mandatos rígidos x mandatos flexíveis
Qual é a função do Presidente da República no parlamentarismo?
Que acontece se o Parlamento rejeitar o Primeiro-ministro indicado pelo Presidente?
Qual é a função do Senado no parlamentarismo? Ele também pode ser dissolvido?
Só os membros do Parlamento podem ser ministros no parlamentarismo?
II - POR QUE PARLAMENTARISMO
Sessenta anos de autoritarismo e crises, é o sistema de governo que não funciona ou o Brasil simplesmente não tem dado sorte com seus Presidentes?
Se o presidencialismo funciona bem nos Estados Unidos, por que não pode funcionar no Brasil?
O que é mais democrático: um Presidente eleito diretamente pelo povo ou um Primeiro-ministro escolhido por via indireta?
A Itália, parlamentarista, muda de governo a cada seis meses. O Brasil não corre o
risco de ficar do mesmo jeito?
Não adianta mudar o sistema de governo se os homens continuam os mesmos. O
parlamentarismo vai acabar com o fisiologismo dos políticos?
Parlamento é um lugar onde se fala muito e resolve pouco. O presidencialismo não
é mais ágil para tomar decisões?
O parlamentarismo requer partidos fortes e burocracia eficiente. Como pode
funcionar no Brasil se não temos uma coisa nem outra?
III - QUAL PARLAMENTARISMO
Modelo inglês x modelo português
Dissolução da Câmara
Parlamentarismo nos estados
Reforma do sistema eleitoral
I - QUE É PARLAMENTARISMO
Parlamentarismo é o sistema de governo em que a chefia do poder
Executivo deve ter o apoio da maioria do Parlamento e é substituída se
perder esse apoio.
Parlamento é a assembléia de representantes do povo que exerce o poder
Legislativo. Pode ser chamado Parlamento mesmo, como na Inglaterra, ou
Assembléia, como na maioria dos países da Europa, ou Congresso, como no
Brasil e Estados Unidos.
Tanto o parlamentarismo como o presidencialismo se baseiam na divisão
dos poderes do estado entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
• O Executivo tem o controle direto da "máquina" do estado, incluindo as
forças armadas, a polícia e toda a rede de ministérios, repartições,
empresas e serviços públicos.
• O Legislativo faz as leis, autoriza a cobrança de impostos e os gastos
públicos e fiscaliza o Executivo.
• O Judiciário arbitra de acordo com a lei os conflitos em geral, incluindo
os conflitos entre os outros dois poderes.
A divisão dos poderes é uma garantia da liberdade dos cidadãos. Quando
todo o poder do estado se concentra nas mãos de um indivíduo ou grupo,
acaba se transformando em tirania, mesmo se esse indivíduo ou grupo foi
eleito pela maioria da sociedade.
Com o poder dividido em ramos independentes, cada um controla o outro e em conjunto eles possibilitam o
controle do estado pela sociedade.
Note que nesse esquema o Legislativo e o Judiciário são poderes
desarmados. Eles não têm meios de impor diretamente sua vontade. Por
isso, só se pode dizer que são poderes na medida em que têm algum
controle das ações do Executivo.
As diferenças entre o presidencialismo e o parlamentarismo têm a ver com
a divisão do poder entre o Executivo e o Legislativo.
Compare as características básicas dos dois sistemas.
EXECUTIVO
O Presidente da República tem funções de chefe de estado com poderes limitados.
O Presidente é eleito por voto direto e escolhe ministros da sua confiança.
O Primeiro-ministro é:
a) indicado pelo Presidente dentro do partido que tiver maioria no Parlamento; ou
b) eleito pelo Parlamento. Ele escolhe os demais ministros.
O Gabinete e seu plano de governo devem ser aprovados pela maioria absoluta do Parlamento.
O Presidente tem mandato fixo. Só pode ser destituído legalmente através de um impeachment.
O Primeiro-ministro e seu Gabinete não têm mandato fixo. Podem ser obrigados a se demitir por uma moção de desconfiança votada pela maioria absoluta do parlamento.
Os ministros individualmente podem ser demitidos a qualquer momento pelo Primeiro-ministro.
Os ministros podem ser demitidos a qualquer momento pelo Presidente.
LEGISLATIVO
Deputados e senadores só perdem o mandato se forem condenados por crime ou ofensa ao decoro parlamentar e cassados por decisão da maioria absoluta dos seus pares.
O Presidente pode dissolver o Parlamento se este não compuser uma maioria estável para apoiar o Gabinete. Eleições para um novo Parlamento são convocadas imediatamente.
Mandatos Rígidos x Mandatos Flexíveis
• No presidencialismo, os mandatos são rígidos. Tanto o Presidente como os deputados e senadores podem ser destituídos legalmente, mas só em casos excepcionais. Só quando cometem crime no exercício da função e são julgados culpados, o Presidente por dois terços do Legislativo, os deputados ou senadores pela maioria absoluta dos seus pares.
• No parlamentarismo, os mandatos são flexíveis. Os mandatos dos deputados têm a duraço máxima prevista na Constituição, que no caso do Brasil é de quatro anos. O do Primeiro-ministro termina junto com o dos deputados. Mas ambos podem ser encurtados em caso de dissolução da Câmara ou moção de desconfiança contra o Gabinete.
E isso não é necessariamente um caso excepcional, como um crime e castigo, mas a solução normal de um impasse político entre o Executivo e o Legislativo.
Qual é a função do Presidente da República no parlamentarismo?
O parlamentarismo separa as funções de chefe de governo (o Primeiro-ministro) e chefe de estado (o Presidente da República). No presidencialismo, ambas as funções são exercidas pelo Presidente.
Nas monarquias parlamentaristas de hoje o Rei (ou Rainha) não tem de fato nenhum poder. Diz-se que ele "reina mas não governa". Como chefe de estado, suas funções são somente cerimoniais. Ele é um símbolo da unidade e da continuidade da Nação e a representa em solenidades (por exemplo, recebendo Chefes de Estado estrangeiros).
Nas repúblicas parlamentaristas, o Presidente pode ou não ter algum poder. Quando ele é eleito indiretamente, como na Alemanha. em geral também só tem funções cerimoniais. Quando é eleito por voto direto, como em Portugal, tem uma liderança política que lhe dá mais influência sobre o governo.
Que acontece se o Parlamento rejeitar o Primeiro-ministro indicado pelo Presidente?
Nesse caso, o próprio Parlamento deve eleger um Primeiro-ministro por maioria absoluta, isto é, metade mais um dos membros. Mas se nenhum candidato a Primeiro-ministro conseguir maioria absoluta, o Presidente pode dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.
Qual é a função do Senado no parlamentarismo? Ele também pode ser dissolvido?
Nos Parlamentos bicamerais, que possuem uma Câmara dos Deputados e um Senado, só a Câmara vota para confirmar, eleger ou destituir o Gabinete. O Senado tem funções secundárias. Ele se limita, em geral, a revisar as leis vindas da Câmara, aprovando-as, emendando-as ou rejeitando-as.
Por isso, só a Câmara pode ser dissolvida, e o Senado não, já que a possibilidade de dissolução é a contrapartida do direito de escolher ou destituir o Gabinete.
Só membros do Parlamento podem ser ministros no parlamentarismo?
Em alguns países, como a Inglaterra, é assim. Em outros, como Portugal, os ministros não precisam necessariamente ser membros do Parlamento.
Mesmo nesses casos, porém, a tendência é que o Primeiro-ministro e a maioria dos ministros saiam do Parlamento, já que é o Parlamento que os escolhe.
II - POR QUE PARLAMENTARISMO
Porque o parlamentarismo é a alternativa para dar ao Brasil o que ele não
teve até hoje nem vai ter com o presidencialismo: uma sucessão de
governos fortes para resolver os problemas do pais, e ao mesmo tempo
democráticos para garantir a participação de todo o povo nos frutos do
desenvolvimento.
O parlamentarismo em geral é um sistema de governo mais:
• democrático, porque aumenta as oportunidades de participação do povo nas decisões e obriga tanto o governo como o parlamento a serem mais sensíveis às aspirações populares;
• transparente, porque estimula a discussão pública das decisões do governo e inibe o fisiologismo político;
• estável, porque fortalece os partidos e facilita a soluço das divergências entre o governo e o parlamento sem golpes de estado nem arranhões na Constituição;
• eficiente, porque reforça o espírito de equipe entre os membros do governo e leva à profissionalização dos servidores públicos.
Todos esses argumentos são importantes. Mas eles não bastariam para justificar a mudança do sistema de governo se o presidencialismo afinal estivesse funcionando razoavelmente bem no Brasil.
Na verdade o argumento decisivo para encarar essa mudança é que o presidencialismo simplesmente não tem dado certo entre nós. Sessenta anos de autoritarismo e crises
Nos últimos sessenta anos tivemos seis Constituições, todas presidencialistas.
E com elas:
• governos fortes, com grande capacidade de intervenção na economia, mas an ti-democráticos, que excluíram o povo da política e agravaram as injustiças sociais (o Estado Novo de Vargas de 1937 a 1945, os governos militares de 1964 a 1979);
• um período de governos democráticos mas em geral fracos, instáveis, incapazes de levar adiante as mudanças que prometeram ao povo (de 1946 a 1964);
• na fase de decadência do regime militar (de 1979 a 1984), o pior dos dois mundos: um governo autoritário e fraco, impotente diante da crise econômica que continuou por toda a década dos 80 até hoje.
E o que é mais preocupante: ao contrário do que esperávamos, a volta da democracia e das eleiçes diretas para Presidente não mudou muito esse quadro.
Em poucos meses acabou a ilusão de que o Presidente sozinho, com a força do mandato popular, conseguiria derrubar a inflação e colocar o país nos eixos.
Mas nem o Presidente se dispõe a dividir o poder com o Congresso, nem o Congresso quer realmente dividir com o Presidente a responsabilidade pelas medidas duras necessárias para tirar o país da crise.
É o sistema de governo que não funciona ou o Brasil simplesmente não tem dado sorte com seus Presidentes?
Nesses sessenta anos, só tivemos um Presidente – Juscelino – que conseguiu completar seu mandato combinando democracia e desenvolvimento.
Juscelino foi um político muito hábil. Teve apoio de dois partidos importantes no Congresso (os antigos PSD e PTB). E governou com o capital estrangeiro soprando a favor do desenvolvimento do Brasil. Mesmo
assim, saiu da Presidência desgastado, com a inflação em alta e acusado de desmandos pelo sucessor.
Pode ser que tenhamos outro Presidente que reúna tantas condições favoráveis: habilidade pessoal, base partidária ampla, capital estrangeiro abundante para alavancar o desenvolvimento. E claro que todo candidato a Presidente garante e até acredita sinceramente que com ele a coisa vai funcionar. Mas não dá para um país inteiro apostar tudo numa loteria que só dá o bilhete premiado uma vez a cada sessenta anos.
Se o presidencialismo funciona bem nos Estados Unidos, por que não pode funcionar no Brasil?
Porque as condições econômicas e sociais são muito diferentes. Além disso, os próprios sistemas de governo têm diferenças marcantes.
• Como chefe de uma superpotência mundial, o Presidente dos Estados Unidos tem um poder muito grande em matéria de política externa, principalmente nos momentos de crise. Mas na política interna, sempre
dividiu amplamente o poder com o Congresso, a Suprema Corte e os governos dos estados e municípios.
No Brasil o Congresso, o Supremo Tribunal e os estados nunca tiveram tanto peso.
E o Estado Novo e a ditadura militar concentraram ainda mais o poder no Executivo federal.
• Até hoje a vida política dos Estados Unidos foi dominada por dois partidos – o Republicano e o Democrata – suficientemente diferentes para dar opção ao eleitorado, mas bastante parecidos para facilitar a alternância no poder e amortecer os conflitos entre o Presidente e o Congresso.
No Brasil, desde a época de Vargas, os partidos têm sido muito mais fragmentados e os
conflitos políticos e ideológicos mais intensos.
Com isso criamos uma figura de Presidente todo-poderoso, porque montado na concentração de recursos do Executivo federal. E ao mesmo tempo débil, incapaz de administrar democraticamente todas as demandas e pressões que convergem sobre ele.
A propósito, note que os Estados Unidos foram o berço do presidencialismo e o único país desenvolvido a adotar esse sistema de governo até hoje.Dos Estados Unidos o sistema se disseminou na América Latina, inclusive no Brasil. Fora daí, poucos países – a maioria na África – adotam o presidencialismo.
O parlamentarismo é o sistema de governo mais comum no resto do mundo, especialmente o mundo desenvolvido, incluindo toda Europa, Japão, Austrália e Canadá.
Um Presidente eleito diretamente pelo povo não é mais democrático do que um Primeiro-ministro escolhido por via indireta?
O efeito mais constante do presidencialismo no Brasil tem sido manter o povo marginalizado da política.
Dos 27 Presidentes que tivemos até hoje, só cinco foram eleitos democraticamente: Dutra em 1946, Vargas em 1950, Juscelino em 1955, Jânio em 1960 e Collor. (Além do Estado Novo e da ditadura militar,
lembre-se que em toda a Primeira República, de 1889 a 1930, a maioria do povo não tinha direito de voto e as eleições eram decididas na base da fraude e dos "currais eleitorais".)
Destes cinco, só dois, Dutra e Juscelino, conseguiram completar o mandato.
• Vargas se suicidou em 1954 para não ser deposto pelos militares.
• Seu vice, Café Filho, foi impedido pelo Congresso em 1955, acusado de conspirar contra a posse de Juscelino.
• Jânio renunciou depois de sete meses de governo.
• Seu vice, João Goulart, foi deposto pelos militares em abril de 1964.
Não é um retrospecto muito animador em matéria de democracia... Mesmo em plena normalidade democrática, o presidencialismo tende a limitar a participação política do povo.
Como os mandatos são rígidos, tanto o Presidente como os deputados podem muito bem deixar para se lembrar de quem os elegeu só na véspera das próximas eleições.
No parlamentarismo, ao contrário, o Primeiro-ministro e os deputados sabem que a qualquer momento eles próprios e os partidos a que pertencem podem tomar a precisar do apoio do eleitorado.
• Se o governo não vai bem, o povo pode recorrer aos seus representantes na Câmara para que votem uma moção de desconfiança contra o Gabinete.
• Se a Câmara se recusa a apoiar medidas que o Primeiro-ministro considera essenciais, este pode colocar seu cargo e os dos demais ministros à disposição, obrigando a Câmara a apoiá-lo ou assumir a responsabilidade de indicar outro Gabinete.
Em ambos os casos, a Câmara pode ser dissolvida se não conseguir compor uma maioria para apoiar ou substituir o Gabinete. E a decisão final volta para o eleitorado.
Mesmo se isto não ocorre freqüentemente, o simples fato de saber que o Gabinete pode ser substituído e a Câmara dissolvida torna o eleitor muito mais consciente da sua influência e mais disposto a exercê-la. E obriga tanto o Gabinete como o Parlamento a ficarem mais atentos às opiniões e necessidades do eleitorado.
A Itália, parlamentarista, muda de governo a cada seis meses. O Brasil não corre o risco de ficar do mesmo jeito?
De fato a Itália é um caso extremo de instabilidade política dentro do parlamentarismo. Mas note que nos últimos quarenta anos essa instabilidade nunca chegou ao ponto de ameaçar a continuidade da democracia.
Nem impediu a Itália de ser um dos países de maior desenvolvimento econômico da Europa. Mudam os governos, mas os empresários e trabalhadores continuam investindo e produzindo crescentemente.
Agora faça as contas: quantos ministros da Fazenda ou Economia o Brasil leve nos últimos seis anos? Nada menos que seis! Em média um por ano. Só que entre nós a troca de ministros não tem servido para recompor a base política do governo nem restabelecer a confiança da sociedade. Na verdade um dos pontos fortes do parlamentarismo em comparação com o presidencialismo é a estabilidade política.
No presidencialismo, como os mandatos são rígidos, as posições políticas também tendem a se enrijecer. Legalmente, nem o Presidente, nem os parlamentares estão arriscados a ser destituídos por causa de um impasse político. Logo não há incentivo ao entendimento. Resultado: os conflitos, levados às últimas conseqüências ameaçam descambar para o vale-tudo, extrapolando as regras do jogo democrático.
No parlamentarismo, a substituição do Gabinete ou a dissolução da Câmara são remédios legais para os conflitos. E a sua simples possibilidade toma as posições políticas mais flexíveis, facilitando o entendimento.
Não adianta mudar o sistema de governo se os homens continuam os mesmos. O parlamentarismo vai acabar com o fisiologismo dos políticos?
A qualidade dos políticos depende, em última análise, da consciência do povo que os elege. E um reflexo da cultura política da média dos cidadãos. Por isso não vai melhorar de uma hora para outra com a mudança de sistema de governo.
Mas as distorções do presidencialismo agravam, e muito, o mau desempenho dos nossos políticos.
Nossa tradição presidencialista esvaziou as funções próprias do Legislativo – a elaboração das leis e a fiscalização do Executivo. Por isso grande parte dos parlamentares virou uma espécie de despachantes de luxo: em vez de atuar no Congresso, vivem nos ministérios servindo de intermediários das demandas das suas bases eleitorais. Para muitos esse ainda é o papel mais importante, apesar de a Constituição de 1988 ter reforçado os poderes do Congresso.
O Presidente da República, por seu lado, quando se vê em minoria no Congresso, não pensa em negociar às claras com os partidos sobre o que cada um acredita que é melhor para o país. Geralmente acha mais fácil apelar para o é-dando-que-se-recebe – a distribuição de empregos, verbas e outros favores aos parlamentares, seus parentes e amigos.
Desse modo,consegue eventualmente aprovar os projetos do governo. Mas solapa a disciplina partidária, ajuda a desmoralizar a atividade política e acaba agravando a instabilidade da sua própria base parlamentar. E assim se fecha o circulo vicioso: fisiologismo, instabilidade, mais fisiologismo...
O parlamentarismo, ao contrário:
• Estimula a disciplina partidária, já que é através dos partidos que se
compõe a maioria para aprovar o Gabinete.
• Penaliza a falta de consistência da maioria parlamentar com a queda do Gabinete, a dissolução da Câmara ou ambos.
• Com isso, reforça o senso de responsabilidade política dos parlamentares e põe freio ao fisiologismo.
Parlamento é um lugar onde se fala muito e resolve pouco. O sistema presidencialista não é mais ágil para tomar decisões?
É preciso deixar claro que não é a Câmara que governa no parlamentarismo, nem os ministros são necessariamente deputados ou senadores. A Câmara se limita a dar ou retirar apoio ao Gabinete e ao seu
programa. Não há confusão de papéis: o Parlamento debate e aprova ou desaprova a composição do governo e as linhas mestras da sua aço, e vota as leis necessárias. A execução do programa cabe ao Gabinete.
As vantagens do parlamentarismo nesse terreno são marcantes:
• No presidencialismo, não existe meio legal de cobrar do Presidente o cumprimento de suas promessas de campanha. Por isso mesmo elas costumam ser descumpridas sem maiores explicações.
No parlamentarismo,o programa de governo pode ser negociado ponto por ponto entre os
partidos que se coligam para formar a maioria da Câmara, E o descumprimento de um desses pontos pode levar o Gabinete a perder o apoio da maioria e ser substituído.
• No presidencialismo, o Presidente não é obrigado a ouvir ninguém antes de tomar decisões. E está sujeito a tomar decisões apressadas, discutidas entre um número reduzido de ministros e assessores sem avaliar
devidamente sua repercussão na sociedade.
Ou, pior ainda, decisões influenciadas por um "círculo íntimo" de amigos e parentes.
No parlamentarismo, os ministros comparecem regularmente ao Parlamento para debater o andamento do seu programa de governo. A discussão é pública, aberta, dando oportunidade a que todos os setores interessados se manifestem.
• No presidencialismo, o Presidente pode ser ágil para decidir, mas não para concretizar as decisões. Quanto mais ele concentra poder, menos consegue controlar a burocracia, que é grande e complicada demais.
E os ministros, que deveriam ajudá-lo nisso, não têm espírito de equipe.
Como cada um responde individualmente ao Presidente, cada um trata de conseguir o máximo de recursos e de poder para o seu setor, sem se preocupar com a coerência das ações do governo.
O parlamentarismo, ao contrário, é um sistema de governo colegiado. Se o governo como um todo for mal, todos os ministros caem juntos. Por isso o Gabinete se reúne regularmente para debater e decidir em conjunto as ações do governo.
O parlamentarismo requer partidos fortes e burocracia eficiente. Como pode funcionar no Brasil se não temos uma coisa nem outra?
Não vamos tapar o sol com a peneira: a inconsistência dos partidos e a ineficiência da burocracia pública tendem a dificultar, sim, o funcionamento do parlamentarismo no Brasil. Assim como agravam os problemas do presidencialismo.
Mas como fortalecer os partidos e profissionalizar a burocracia sem mexer no sistema de governo?
Na nossa tradição presidencialista, o Presidente (assim como os governadores e prefeitos, nas suas esferas de poder) tende a se considerar e a ser considerado o dono, tanto do governo como dos partidos que o
apoiam.
Assim como os ministros dependem da confiança pessoal do Presidente. os "cargos de confiança" se multiplicam aos milhares por todos os escalões da burocracia.
Resultado:
• Incha-se a máquina do governo com apadrinhados políticos, abrindo as portas à incompetência, ociosidade e corrupço e desmoralizando os servidores de carreira.
• Anula-se a independência dos partidos diante do governo, transformando dirigentes e militantes partidários em pseudo-funcionários públicos fiéis ao comando dos caciques que os indicaram.
O parlamentarismo não vai mudar essa situaço num passe de mágica. Mas cria estímulos e penalidades políticas para que ela comece a mudar. No parlamentarismo;
• O governo não tem dono. Não se baseia no poder pessoal do Primeiro-ministro, mas na confiança da maioria da Câmara no Gabinete. Confiança que pode ser retirada a qualquer momento.
Isso tende a valorizar politicamente uma burocracia estável, competente, que permita ao governo
apresentar bons resultados rapidamente. E aumenta na mesma medida o custo político do empreguismo e da ineficiência.
• O insucesso do governo recai diretamente sobre os partidos que o apóiam, já que eles têm o poder de substituir a qualquer momento o Gabinete. Não há como ser governista na hora de gozar os favores da
"máquina" e posar de oposicionista ou "independente" na hora da eleiço.
Assim o parlamentarismo estimula os partidos a serem de fato independentes para controlar o governo nas questões de interesse geral da sociedade. em vez de serem controlados por ele no varejo da troca de
favores.
III - QUAL PARLAMENTARISMO
Não basta estar convencido da superioridade do parlamentarismo e dos problemas do presidencialismo brasileiro. Precisamos discutir qual o tipo de parlamentarismo mais adequado à realidade brasileira.
Na nossa opinião, há quatro condições fundamentais para o sucesso do parlamentarismo no
Brasil:
• Manutenção de eleições diretas para Presidente.
• Possibilidade efetiva de dissolução da Câmara.
• Adoção do sistema parlamentar de governo também nos estados.
• Reforma do sistema eleitoral com a introdução do sistema misto,
proporcional e distrital.
Modelo Inglês x Modelo Português
Desde a campanha das "diretas-já" em 1984, que apressou o fim da ditadura militar, as eleições diretas para Presidente ficaram indissociavelmente ligadas à ideia de democracia para o povo brasileiro.
Nosso modelo de parlamentarismo deve respeitar isso. Ele tem que manter as eleições diretas para Presidente, e dar ao Presidente funções compatíveis com a liderança política derivada do mandato popular.
Em outras palavras, o parlamentarismo não pode fazer do Presidente uma "rainha da Inglaterra", sem nenhuma influência efetiva no governo.
O modelo que mais se aproxima das nossas necessidades, neste ponto, é o português.
Nesse modelo de parlamentarismo, a Constituição dá ao Presidente, além de funções cerimoniais, as funções de árbitro do governo e de comandante supremo das Forças Armadas .
• Como árbitro do governo, cabe ao Presidente a iniciativa de propor à Câmara o nome do Primeiro-ministro.
Isto lhe permite desempenhar um papel importante nas negociações para a formação do Gabinete,
especialmente quando não existe um partido ou coligação de partidos com maioria firme na Câmara.
Como comandante supremo das Forças Armadas, cabe ao Presidente tomar as medidas necessárias para a defesa do país contra agressões externas, e decretar estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal
nos casos previstos pela Constituição.
Dissolução da Câmara
Lembre-se: não queremos parlamentarismo para ter um Executivo mais fraco e um Congresso mais forte, e sim para ter um governo mais democrático, estável, transparente e eficiente.
Para isso é fundamental que a Câmara seja efetivamente co-responsável pelo governo. A co-responsabilidade é uma rua de mão dupla. Assim como a Câmara adquire o poder de substituir o governo se este for mal, o Presidente deve ter o poder de dissolver a Câmara se ela falhar no seu papel de compor uma maioria para dar sustentação ao governo.
Nosso modelo de parlamentarismo não pode cercar a dissolução da Câmara de tantas condições que a tomem praticamente impossível.
Parlamentarismo nos estados
O fato de o Brasil ser uma federação – uma união de estados com ampla autonomia política e administrativa – não é nenhum empecilho para a implantaço do parlamentarismo.
A Alemanha e Austrália, por exemplo, são estados federativos em que o parlamentarismo funciona muito bem. Mas é fundamental que a implantaço do parlamentarismo não prejudique o equilíbrio da federaço brasileira. Por isso defendemos que a mudança de sistema de governo aconteça ao mesmo tempo na esfera da União e dos estados.
Manter o presidencialismo nos estados significaria manter todos os vícios do presidencialismo nesse nível, cortando pela base as chances de melhora dos costumes políticos e de fortaleci mento dos partidos.
Os governadores seriam tentados a usar o poder pessoal típico do presidencialismo para controlar os representantes dos respectivos estados no Congresso Nacional.
Isto seria desastroso para a capacidade do Congresso e do Executivo federal de tomarem decisões levando em conta o interesse nacional do Brasil, que nem sempre é igual a soma dos interesses regionais.
Reforma do sistema eleitoral
Um dos maiores obstáculos à implantação do parlamentarismo no Brasil é o desprestígio dos políticos em geral e do Legislativo em particular. A maioria dos brasileiros não está nada satisfeita com seus representantes no Congresso.
Aliás, sequer pode dizer que tem um representante, pois os candidatos em quem votou não se elegeram. Na verdade a maioria nem lembra em quem votou para deputado nas últimas eleições!
Essa situação tem várias razões: os vícios do presidencialismo, os maus costumes tradicionais dos políticos, a falta de consistência dos partidos, o despreparo do próprio eleitor para dar um voto consciente.
Mas o método pelo qual elegemos n ossos deputados não ajuda nada. Na verdade é um dos piores do mundo.
Compare a seguir o sistema de voto proporcional adotado no Brasil com os outros dois sistemas correntes no mundo: o distrital e o misto.
SISTEMAS ELEITORAIS / PROPORCIONAL DISTRITAL MISTO
Cada estado é um grande distrito eleitoral. Todos os candidatos a deputado podem ser votados no estado inteiro. O estado é dividido em distritos com aproximadamente o mesmo número de eleitores.
Cada distrito elege um deputado.
• Os 29 milhões de eleitores de São Paulo seriam divididos em 70 distritos,
cada um com 414 mil eleitores. Metade dos deputados é eleita pelo sistema
proporcional.
A outra metade pelo sistema distrital.
• Os 29 milhões de eleitores de São Paulo seriam divididos em 35 distritos, cada um com 828 mil eleitores. Os outros 35 deputados seriam eleitos pelo sistema proporcional.
Cada partido inscreve um número de candidatos igual a até uma vez e meia o número de deputados do estado.
• Em São Paulo, se os 27 partidos registrados inscrevessem chapa completa, haveria mais de
2.800 candidatos a deputado. Cada partido inscreve um candidato por distrito.
• Para o mesmo número de partidos registrados, concorreriam 27 candidatos por distrito.
Cada partido inscreve um candidato por distrito e uma lista de candidatos igual à metade do número de deputados do estado.
• Em São Paulo, concorreriam 27 candidatos em cada distrito e 27 listas partidárias, cada uma com 30 candidatos pelo sistema proporcional. O eleitor pode votar na legenda do partido ou num
candidato individuaI. O eleitor vota num candidato individual.
O eleitor vota num candidato individual pelo sistema distrital e na legenda de um partido pelo
sistema proporcional. Cada partido elege um número de deputados proporcional à soma dos
votos os candidatos e da legenda do partido sobre a votaço total do estado.
• Se um partido tiver 30% dos votos do estado, elege 21 dos 70 deputados paulistas.
Em cada distrito é eleito o candidato mais votado.
• Se um partido tiver 30% dos votos do estado mas só conseguir maioria em 5 dos 70 distritos paulistas, só Cada partido elege um número de deputados proporcional à soma dos votos s seus candidatos pelo sistema distrital, mais os votos da legenda pelo sistema proporcional, sobre
a votação total do estado.
• Se um partido tiver 30% dos votos do estado mas só conseguir maioria em 5 dos 70 distritos paulistas, elege os 5 deputados pelos distritos mais 17 deputados pela lista partidária. Elege 5 deputados.
As vagas conseguidas por cada partido são preenchidas pelos candidatos mais votados individualmente na chapa do partido. As vagas conseguidas por cada partido são preenchidas primeiro pelos candidatos eleitos pelo sistema distrital, e as restantes conforme a ordem de inscrição dos candidatos na chapa do partido pelo sistema proporcional.
Nossa versão do sistema proporcional tem defeitos gritantes:
• Dilui a ligação pessoal entre representante e representados. O candidato com votação espalhada por todo o estado (ou município, nas grandes cidades) não sabe, afinal de contas, quem o elegeu.
Para o eleitor, por seu lado, é difícil fazer uma escolha consciente entre milhares de candidatos.
Então no fim ele nem sabe para quem foi seu voto se o candidato em quem votou não se elegeu.
• Ao mesmo tempo, enfraquece os vínculos partidários. Como a colocação dos candidatos na chapa depende da votação individual, a regra na campanha eleitoral é cada um por si e todos contra todos.
Principalmente contra outros candidatos do mesmo partido e que disputem a mesma faixa
do eleitorado.
• Diminui a representação do eleitorado das grandes cidades. É mais fácil se eleger deputado com um reduto forte no interior do que com o voto das regiões metropolitanas, que se dispersa por um número muito maior de candidatos.
O sistema distrital puro adotado nos Estados Unidos, Inglaterra e França, entre outros países, resolve em parte esses problemas. O eleitorado do estado é dividido em distritos mais ou menos do mesmo tamanho, e cada distrito elege um deputado.
Assim o eleitor pode saber exatamente quem é o representante do seu distrito. Não há concorrência entre candidatos do mesmo partido, já que cada partido só lança um candidato por distrito.
A representação das regiões metropolitanas e do interior é necessariamente equilibrada.
Mas esse sistema também tem inconvenientes graves.
• Tende a dar um peso excessivo aos interesses locais. Cada representante se preocupa em resolver os problemas do seu distrito, sem urna visão global do que é melhor para o país.
• Dificulta a representação dos pequenos partidos e das minorias em geral. Um partido pode ter 30% ou mais dos votos do estado mas não conseguir maioria em nenhum distrito, e assim não eleger nenhum deputado.
O sistema misto adotado na Alemanha combina as vantagens e evita os inconvenientes dos sistemas proporcional e distrital. Metade dos representantes é eleita pelo sistema distrital. A outra metade, por um
sistema proporcional diferente do brasileiro: as vagas de cada partido são preenchidas de acordo com a ordem de inscrição dos candidatos na lista partidária.
As vantagens desse sistema são claras:
• Permite a ligação pessoal do eleitor com o representante do seu distrito.
• Ao mesmo tempo, valoriza a opção partidária do eleitor e reforça a fidelidade partidária dos representantes. Na eleição proporcional, o eleitor vota no partido e não num candidato individual.
• Assegura a representação dos pequenos partidos e das minorias em geral. Mesmo que um partido não ganhe em nenhum distrito. seu número de deputados eleitos pela lista partidária é ajustado para ser exatamente proporcional à votação total do partido no estado (ou município, nas eleições de vereador).
Por tudo isso, consideramos a reforma do sistema eleitoral, com a introdução de um sistema misto semelhante ao alemão, um complemento fundamental da implantação do parlamentarismo no Brasil.
Parlamentarismo por: Fernando Henrique Cardoso e José Serra 1ª edição São Paulo, agosto de 1991
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