Por ocasião do centenário do nascimento de D. Pedro II, em 2 de dezembro de 1925, toda a imprensa publicou reportagens, artigos e estudos históricos sobre o nosso grande Imperador. Finalizando esta coletânea, transcrevemos o artigo do famoso jornalista e polemista Carlos de Laet, publicado na “Revista da Semana” de 28/11/1925:Ninguém, nos tempos que correm, pode imaginar, de longe sequer, o mágico efeito que, durante largos anos, produziam no povo brasileiro estas palavras, muito embora freqüentemente repetidas:
— Aí vem o Imperador!
Não sei se pela extensa duração da autoridade longamente exercida por esse homem, ou se, talvez, pelo conjunto de raras qualidades físicas e morais, que nele se realizaram, certo é que enorme foi o seu influxo sobre a mentalidade popular. Festa a que não comparecesse o Imperador considerava-se de segunda ordem, e sua presença, que aliás ele não regateava, era sempre um incentivo para maior freqüência em qualquer solenidade.
Singelo em seus modos e declarado inimigo de toda pragmática fútil e ociosa, o Imperador dominava as reuniões em que aparecia, e naturalmente se constituía o centro de todas as atenções.Raro era o dia em que não o viam aplicado a visitas demoradas e profícuas às oficinas dos arsenais e das indústrias particulares, aos colégios e sociedades científicas, aos quartéis, às fortalezas, aos navios, às obras públicas em construção, a toda parte, enfim, onde houvesse que examinar, fiscalizar e animar qualquer dos ramos da atividade nacional.
Entre as minhas recordações da meninice estão as repetidas aparições do Imperador no Colégio Pedro II. Todos nos alvoroçávamos e, entre desejosos e timoratos, aguardávamos que pela nossa aula entrasse aquele vulto que, com sua elevada estatura, formosa barba semi-alvejante e gesto de autoridade soberana, nos incutia indefinível sentimento de atração e respeito.
Invariavelmente determinava o augusto visitante fossem chamados o melhor e o pior estudante da turma. Felicitava o primeiro, quando este de ordinário se saía bem; e ao outro incumbia-se ele próprio de interrogar, insinuando-lhe as respostas e fazendo-lhe acreditar que o pobre vadio sabia alguma coisa.Em suas relações com os mestres do Colégio, que eram então meus professores, notava eu o caprichoso apuro com que o Imperador falava em francês com o Sr. Halbout, em inglês com o Dr. Mota, em italiano com o Dr. De Simoni, em alemão com os Drs. Schiefler, Goldschmidt e Tautphoeus.
O homem que falava todas as línguas, argüía alunos em todas as matérias, e diante do qual se curvavam todas as autoridades escolares, assumia a nossos olhos as proporções grandiosas de um ente sobrenatural.No Exército e na Armada, onde só muito mais tarde começou a grassar o mal positivista, a dedicação ao Chefe do Estado não padecia contraste sério. À bandeira e ao hino nacional unia-se a personalidade do Imperador, fornecendo a trindade representativa da Pátria. Foi ao grito de “viva o Imperador!” que os batalhões brasileiros compraram com seu sangue as grandes vitórias que de Rosas libertaram a Argentina, e de López o Paraguai.
Na Europa entre os cientistas do Instituto de França, no Egito perlustrando antigos monumentos e aconselhando a formação dos museus que depois se desenvolveram, nos Estados Unidos assombrando por sua vasta cultura intelectual e lhaneza de trato os compatriotas de Washington – em toda parte por onde passava, ia deixando o Imperador o traço nítido e imorredouro da sua poderosa individualidade.Quando, cansada de pensar e de trabalhar pelo Brasil, desfaleceu encanecida aquela nobre cabeça, e, em nome da liberdade, se entendeu que ao longo patriarcado liberal, que foi o Segundo Império, urgia sucederem as autocracias quadrienais que constituem os governos no regime presidencial, nem mesmo assim jamais esmoreceram o respeito e veneração para com a pessoa do Imperador.
A revolução, que se lhe apresentou para intimar-lhe saísse do País, não o fez de espada nua e atitude ameaçadora, mas de cabeça descoberta e falando em nome da pacificação nacional. Era preciso exilá-lo, e não o fizeram à luz do sol, como quem executa uma sentença, e sim nas trevas da noite, como quem aproveita desoras para encobrir um crime.No dia 15 de novembro, quando ainda o povo brasileiro ignorava o que da sua soberania tinham feito as classes armadas, vi passar em rápido trânsito, na Rua do Passeio, a carruagem que ao Paço da Cidade transportava o Imperador e a Imperatriz: ela, visivelmente impressionada, a olhar por uma das portinholas do carro; ele, sereno como sempre, fitando os transeuntes e a força militar ali estacionada para se opor à passagem dos revoltosos da Escola Militar... Tirei respeitosamente o chapéu, e respondeu-me o Soberano com amistoso aceno de mão. Foi a última vez que vi o Imperador.
Depois ele nos voltou em 1922, trazido ao Brasil pelo ato cavalheiresco do Sr. Epitácio Pessoa. Tiraram-no de bordo, lentamente o fizeram descer ao troar dos canhões e entre descargas de fuzilaria, até que finalmente aqueles restos tocassem o chão sagrado da Pátria. Estava morto o Imperador, mas ainda sua grande figura, trinta e três anos depois da catástrofe, dominava senhorilmente a imaginação popular. Parecia que o ambiente ainda se eletrizava com a aproximação desses despojos, envolvidos na saudade, mas sobre os quais pairava a indestrutível auréola de meio século de glória.Agora ele vai de novo atravessar a cidade e volver a Petrópolis, terra onde muito viveu e que muito amou. Mortos estão quase todos os que o depuseram; mortos igualmente muitos dos que com ele colaboraram no serviço da Pátria. Pouco Importa! Há um sopro de verdade que perpassa as gerações, e que se chama tradição. Esta ainda fala ao coração popular:
— Aí vem o Imperador!
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