Artigo de Benedicto Moreira, em 07/03/2009.
Sabe-se que a maioria absoluta da população brasileira desconhece o que é o federalismo. De outra face, os poucos brasileiros que são versados no assunto e defendem a tese federalista, o fazem sob a premissa da necessidade de materializar nosso instinto de nacionalidade por meio do federalismo e do cooperativismo, acautelando-se no concernente ao potencial perigo do sentimento separatista já existente. Não devemos esquecer que o presidencialismo está enraizado na cultura popular brasileira desde Deodoro e Floriano, até os dias atuais, pois, no imaginário popular se sobrepõe a figura de um presidente forte que sintetize, em si, as aspirações e as soluções dos anseios populares.
Nas palavras do emérito professor da Universidade de Brasília, Vamireh Chacon, autor de vários livros sobre a vivência política brasileira, e que, recentemente, proferiu uma palestra sobre o federalismo, no plenário de intelectuais da excelente Revista “Problemas Brasileiros”, seguida de debates com outros pensadores pátrios de escol, disse:“...desde a Constituição de 1824, com D. Pedro I, assentou-se a idéia do defensor perpétuo e tutor do povo pelo regime presidencialista, já que a população não entende o parlamentarismo e é vagamente simpática à monarquia, mas desconhecendo o ponto fraco político/institucional do monarca constitucional.”
Na palestra supra aludida, fez uma doutoral exposição sobre o possível federalismo brasileiro e suas conseqüências benéficas, se cotejadas com o estatismo unitário de mais de três séculos. O federalismo brasileiro é recente, vem de 1891, ano da primeira Constituição republicana. Os governadores, então denominados presidentes de províncias, eram nomeados pelos ministros dos partidos vencedores na eleição. Só havia dois partidos, o Conservador e o Liberal; na realidade ambos eram conservadores e ambos liberais, mas a diferença é que um era liberal conservador e o outro conservador liberal. Parecia um jogo de palavras, mas não era, e sim uma questão substantiva e adjetiva.
Os conservadores eram substantivamente conservadores e adjetivamente liberais e o oposto acontecia no partido rival. Isso, reprise-se, era de uma importância muito grande, porque estava feita uma divisão muito mais profunda do que hoje em dia. Concretamente, o Partido Conservador no Brasil se opunha a todas as reformas, sem exceção. Por isso eram conservadores. Mas foi esse partido que se realizaram as principais reformas no Império, porque quando elas se tornavam inevitáveis o Partido Conservador as endossava, tomando a bandeira das mãos liberais. Essa era a dialética do Império brasileiro.O abolicionismo, que é o caso mais expressivo, desde o início foi reivindicação dos liberais, dentro e fora do Parlamento.
Mas todas as reformas, a Lei do Ventre Livre, a dos Sexagenários e a Lei Áurea e, antes disso, a proibição do tráfico de 1850, tudo foi feito pelos conservadores.O Brasil podia fazer isso porque era um Estado unitário, desde o período colonial ou, para ser bem exato, desde a criação da capital do vice-reinado do Brasil em 1549, em Salvador/Bahia. O Brasil surgiu de cima para baixo e não é pelo fato de estar na América. Os Estados Unidos obviamente surgiram de baixo para cima e ainda hoje é um país que não tem nome, porque são 13 colônias que nunca tiveram um governo geral. Elas dependiam diretamente de Londres e resolveram simplesmente se federar, em uma federação prototípica. Mas não é a primeira, porque a federação pioneira do mundo é a Suíça, desde a Idade Média e, no Renascimento, houve a Holanda. Daí que o nome oficial é e nunca foi Holanda, mas Províncias Unidas dos Países Baixos.
Pátria e Linguagem
O Brasil, portanto, foi unitário durante 340 anos, de 1549 a 1889. Isso forma a mentalidade por um lado e a deforma por outro. Somos federalistas – em termos - há 120 anos, de 1889 a 2009. Por que isso? Porque estamos falando português na sala de aula, nas conferências, na televisão, nos comícios e dentro da casa. Como disse muito bem Fernando Pessoa, “a pátria é a língua.”As aproximações tão íntimas entre o Reino Unido e os Estados Unidos historicamente e entre nós e o povo ibérico, através de Portugal, são conseqüências da língua. É ela que nos une e nos faz diferentes de nossos vizinhos. Herdamos uma tradição cultural unitária. Em Portugal tudo dependeu sempre de Lisboa, nunca existiu uma província chamada Alentejo ou Minho. São regiões geográficas e culturais, não administrativas. A comunicação é direta entre o município e a capital, não há mediação institucional organizativa de nenhum tipo. Isso Portugal transmitiu a todo o império, tudo era com Lisboa. Havia vice-reinados que reproduziram o modelo institucional originário, inclusive no Brasil. Todas as nossas demandas, solicitações e polêmicas eram feitas com o governo-geral, desde Tomé de Souza, a partir de 1549. Tudo dependia de Salvador/Bahia, posteriormente do Rio de Janeiro e ultimamente de Brasília. No Brasil só conseguimos pensar duas coisas: o Município em que se vive e a Capital Federal. O Estado é uma coisa que está pelo meio, que ninguém sabe direito o que é, mesmo os Estados mais ricos, como São Paulo e Minas Gerais.
Em última instância, o que existe é o Município, o Municipalismo. O brasileiro tem, portanto, essa reação instintiva: em primeiro lugar municipalista e em segundo lugar regionalista. O máximo que houve em termos de federalismo no Brasil foi estadualismo, assumido conscientemente por Campos Salles. Já no início da República, com a decepção diante da Constituição, que recebia muitas críticas, figurava essa de que o federalismo de Rui Barbosa, demasiado inspirado nos Estados Unidos, não correspondia à nossa realidade. Campos Salles não empregou o termo “estadualismo”, mas usou, explicitamente, inclusive em discursos presidenciais, “política dos governadores”. Isso continua havendo. Se não há federalismo, há estadualismo, embora os governadores nem sempre contem com respaldo interno.
Os Estados Unidos têm uma tradição municipalista acoplada a uma tradição federalista desde o berço. Alguns municípios, como acontece em alguns cantões da Suíça, parece que são os últimos lugares do mundo onde ainda hoje há eleição direta, o town meeting, em que não há voto secreto. Levanta-se a mão e elege-se o Prefeito e a Câmara Municipal. Todas as colônias eram assim. À medida que a população foi crescendo, evidentemente isso se tornou impossível. Como seria fazer isso em São Paulo ou até mesmo numa cidade de 100 mil habitantes? Alguns otimistas imaginam uma democracia eletrônica no futuro, informatizada. Seríamos consultados via internet e poderíamos até legislar. A hipótese é tecnologicamente possível já hoje, mas do ponto de vista de consciência cidadã parece que ainda estamos um pouco longe disso, mesmo nos Estados Unidos e na Suíça.O Brasil se antecipou a muitas mudanças no mundo.
Dizia-se sempre que as câmaras municipais eram submissas ao poder central de Portugal. Isso não é verdade, elas foram insubmissas desde o começo. Isso é importante frisar, desde o começo, sim. Quanto ao voto, o sufrágio universal é recente, tem pouco mais de cem anos. As mulheres ainda hoje são excluídas desse direito em vários países, inclusive ricos. Afirmar que isso só é assim porque acontece no Brasil não corresponde à verdade. Os portugueses, eu não diria naturalizados porque não existia ainda o Estado brasileiro, mas aculturados aqui, se rebelavam contra a metrópole. O exemplo mais chocante é o do Maranhão, em 1684.
Os irmãos Beckman - de nome alemão mas ambos lisboetas - de pai e mãe portugueses (o avô era alemão), sublevaram a cidade de São Luis do Maranhão e proclamaram a independência do Brasil. Os maranhenses resolveram aceitar a proposta dos Beckman e o resultado foi que um terminou decapitado e o outro morreu no exílio, em Angola. Não foram de forma alguma submissos. Em Olinda, Bernardo Vieira de Melo também proclamou a independência, em 1710. Eles entendiam por Brasil uma coisa muito vaga. O brasileiro não sabia o que era ser brasileiro, mas se sentia diferente do português.Quais são os entes federados no Brasil? Antigamente eram só os Estados, hoje não. Está no artigo 1º da Constituição: os entes federados são os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Os Municípios também se transformaram em entes federados, o que não eram anteriormente.
O legislador constitucional foi sábio em incluí-los. Como conseqüência disso, em primeiro lugar, há a questão de impostos. No mundo inteiro o federalismo termina em uma discussão de orçamento. Sabemos da antipatia com que as capitais são vistas no mundo, como a maioria dos franceses detesta Paris, os britânicos Londres e os alemães, quase todos, Berlim. Na Espanha existem até diferenças lingüísticas entre a capital Madri, e Barcelona, Santiago de Compostela e Bilbao. Nos Estados Unidos também não se admira muito Washington. Então a destinação das verbas é extremamente prolixa e existem as guerras fiscais, proibidas explicitamente pelo artigo 152 da Constituição. Aliás, é um dos artigos aos quais pouca importância se dá. É hora de o STF (Supremo Tribunal Federal) se pronunciar contra essas disputas fiscais, que representam, inegavelmente, concorrência desleal.
Mas uma vez que o federalismo tende a ser no mundo inteiro, não só no Brasil, cooperativo, distanciando-se cada vez mais do federalismo clássico, temos de descobrir formas compensatórias para os outros Estados.Novos EstadosNão existe outra solução senão ser federalista, por um motivo muito simples. Tanto quanto ou mais ainda do que a maioria dos países grandes do mundo, há vários “Brasis”. O Brasil é produto de nosso instinto, não de nossos interesses, nem de nossa inteligência. Para a convivência mais ou menos pacífica desses Brasis não existe alternativa senão o federalismo. Pode-se até discutir se os Estados devem ser subdivididos. Em princípio, do ponto de vista econômico, a médio prazo, sim. Mas, a curto prazo, com certeza não, porque tudo se transformará imediatamente em uma quantidade descabida de empregos públicos estaduais, além dos poderes estaduais, tudo representando uma soma considerável de gastos adicionais. No entanto, é praticamente impossível evitar que surjam alguns novos Estados.
Como vamos conciliar isso é mais uma vez a quadratura do círculo, mas vamos descobrir uma fórmula à medida que as circunstâncias surjam. Um exemplo mais recente é Tocantins, um Estado que está conseguindo avançar sem Goiás. No fundo, a intenção era manter a arrecadação estadual, que era 90% obtida no antigo território ao sul do Tocantins atual, transferindo o problema da região mais ao norte para o governo federal. Isso do ponto de vista do governo federal não é bom, porque são novas despesas, recursos a fundo perdido ou de rentabilidade longínqua ou duvidosa.
Por tudo isso, a forma mais coerente é o federalismo. Todo defensor do federalismo acredita que é quase impossível encontrar adeptos do Estado unitário no Brasil que o defendam com coerência.
O Estado unitário é pesado por definição. Vejam o caso da França nos dias atuais. Não há possibilidade de o país retomar o dinamismo econômico da maneira que está organizado. Desde a Revolução Francesa esse é um Estado unitário, antes não era. A Alemanha nunca foi, a não ser durante um período de tempo muito curto, entre 1933 e 1945. O país tem a tradição do Sacro Império Romano-Germânico que, por mais críticas que recebesse, tinha sete grandes eleitores, os principados que realmente mandavam. Durante mil anos a Alemanha teve imperadores eletivos. Havia um parlamento, que funcionou inicialmente em Frankfurt. Napoleão Bonaparte acabou com isso tudo. Depois da batalha de Austerlitz, liquidou o Sacro Império e entregou os grandes eleitorados, com exceção de três apenas - Baviera, Áustria e Prússia -, a seus parentes.
A experiência não deu certo, como se viu em Waterloo, e aí começou tudo de novo.Segurança públicaA questão mais delicada e muito mais polêmica em tudo isso é a intervenção federal para segurança pública. Na Constituição Federal está escrito que a defesa da lei e da ordem é uma das exigências fundamentais. Na prática, o Rio de Janeiro e alguns outros Estados estão pedindo verbalmente ao Presidente da República a presença das Forças Armadas para garantir a segurança. Isso é rigorosamente ilegal e inconstitucional. A intervenção somente pode ocorrer por solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo impossibilitado, ou por requisição do STF. Quer dizer, ou o governador do Rio de Janeiro pede isso por escrito e não apenas verbalmente, ou a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro ou de qualquer outro Estado do Brasil o faz (em), ou ainda o STF decreta. A criação dessa força de segurança nacional, de maneira como está colocada, é indefinível, ninguém sabe ao certo o que é isso. Estão recorrendo ao artifício de compô-la com forças estaduais. Mas não há nenhuma lei que institua essa força.
Talvez tenhamos de constituir um outro corpo. Existem experiências, como na Argentina a Gendarmería, a Guardia Civil na Espanha e até mesmo a National Guard dos Estados Unidos. É preciso ver o que se pode fazer quanto a isso, porque do ponto de vista de exército, marinha e força área estamos proibidos, pela Constituição, de banalizar sua utilização. Compreende-se que as realidades políticas muitas vezes atropelam as exigências jurídicas, mas não podemos continuar insistindo em agir de maneira conflitante com os ditames constitucionais.
Apesar das diferenças do ponto de vista econômico, cultural e político que expressam a diversidade interna, bem como a Carta Magna que, por enquanto, inviabiliza o federalismo concentrando o poder, com centralismo jurídico, seria oportuno discutir, para o Brasil, a forma organizacional do federalismo cooperativo. No momento em que tanto se alude à Reforma Política, seria este o momento adequado para colocar o tema “federalismo” entre os passíveis de discussão, entre tantos outros que, rotineiramente, vêm à baila entre os representantes políticos brasileiros. A discussão difundiria e esclareceria a tese federalista, ainda tão desconhecida da população pátria.
Com a palavra os doutos na matéria.Publicado originalmente em Frum Federalista
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