"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O Partido Imperial


Poder Moderador é aquela instância suprema que paira acima das disputas de partidos, grupos, seitas, idéias e indivíduos. Tivemos um na pessoa do Imperador. Pedro II não era liberal nem conservador, nem progressista nem reacionário. Era o molde pelo qual se recortava a sociedade, tanto nos seus limites externos quanto nas suas diferenciações internas. Era o ponto arquimédico da coincidentia oppositorum , a medida de todas as coisas, o primeiro motor imóvel do microcosmo nacional.

Destronado, foi substituído por uma oligarquia que tentou copiar sua imobilidade olímpica mas fracassou pela impotência de controlar seus conflitos internos.
Getúlio Vargas, que a derrubou, soube assumir o lugar de Pedro II, apenas variando o método. Onde o Imperador se mantivera como eixo da roda por meio de um distanciamento aristocrático que raiava a indiferença, Getúlio se conservava no centro pela sua habilidade de ir simultaneamente em todas as direções, de se meter em tudo sem se comprometer com nada, chegando a criar ao mesmo tempo um partido trabalhista e um conservador, e fazendo enfim, como notou José Ortega y Gasset, “política de esquerda com a mão direita e política de direita com a mão esquerda”.

Esgotadas as possibilidades desse leque de arranjos, a mesma entidade que derruba o ditador -- a força armada -- assume as funções de poder moderador. De início, mantém-se num discreto segundo plano, mas impondo de longe o padrão e a medida, aparando excessos e desequilíbrios de um lado e de outro, demarcando sutilmente -- às vezes não tão sutilmente -- a fronteira entre o proibido e o permitido. A classe política se agita, berra, esbraveja, mas sabe que, sem o “nihil obstat” dos generais, nada se fará. Daí a intensa necessidade de persuadi-los, de conquistá-los, ou então de usurpar a base mesma do seu poder: a liderança da tropa. 

Ao fim de duas décadas de sedução, de envolvimento, de infiltração, as dissensões que minam o corpo da sociedade vazam para dentro dos quartéis. Tropas rebelam-se, oficiais alinham-se com este ou aquele partido, o poder moderador naufraga.

O fracasso da vigilância discreta deságua no movimento de março de 1964, quando a elite militar assume diretamente o comando do processo. Mas assume-o querendo conservar, ao mesmo tempo, suas prerrogativas morais de casta nobre superior às contingências da “mera política”. Para a “política” criam-se dois partidos, mas, como o poder moderador já não controla somente o Estado e sim também o governo, a “política” se esgota em dar ou tirar legitimação simbólica às decisões da autoridade suprema. Numa curiosa inversão da ordem monárquica, é a classe política que reina mas não governa.

Como isso não podia durar, não durou. De 1988 a 2002, as Forças Armadas retiram-se para uma posição cada vez mais recolhida, mais humilhante, lutando para conservar seu sentimento de honra sob as cusparadas da mídia, o corte drástico de recursos, o desmantelamento da indústria bélica e a perda das cadeiras militares no ministério. 

A ascensão da classe política faz-se sob a forma de uma proliferação cancerosa de entidades partidárias das quais só uma tem programa a longo prazo, estratégia abrangente, vasta militância organizada e apoio externo -- numa gama que vai desde a grande mídia internacional até um feixe de organizações terroristas e narcoterroristas. 

Será de estranhar que essa entidade, subindo ao poder, não queira se comportar como um partido entre outros, ocupante ocasional e cíclico do executivo, mas tenda a elevar-se ao estatuto de novo poder moderador, remoldando o cenário político à sua imagem e semelhança e reduzindo os demais partidos à condição de forças auxiliares ou de oposições consentidas, cingidas à discussão de picuinhas sem o menor alcance estratégico?

O Brasil jamais viveu - parece que não sabe viver - sem um poder moderador. 


Destronado o Imperador, esvaziada a oligarquia, caído o ditador, subjugadas as Forças Armadas, quem poderia ocupar o posto, senão aquele partido que aprendeu em Gramsci a só operar dentro do sistema para engoli-lo e tornar-se ele próprio o sistema?

Olavo de Carvalho

O Globo, 13 de março de 2004

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