"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 7 de agosto de 2011

Ética flexível


Não poderia haver momento mais propício para a discussão da questão ética quanto este que vivemos, a exigir a ação da cidadania, quando o país se vê envolvido em denúncias de corrupção de vários matizes, com agentes públicos os mais diversos arrostando a indignação generalizada da sociedade com atitudes de menosprezo por esse sentimento latente.
“O GLOBO” recentemente criou uma seção para denúncias de transgressões do dia a dia com o título genérico de “Ilegal, e daí?”, para refletir o descaso com que o assunto é tratado por autoridades e cidadãos.
Também Carlos Alberto Sardenberg, na Rádio CBN, criou uma vinheta chamada “Nada de mais”, onde registra casos acontecidos em diversos setores das atividades em que os malfeitos são tratados com a naturalidade que os transforma em fatos normais da vida.
Se, no caso do “GLOBO”, as reportagens refletem mais abusos de poder e usurpação de direitos de terceiros no dia a dia da cidade, a vinheta da CBN se refere majoritariamente a casos políticos, como a Comissão de Ética do Senado, que considerou normal a ameaça de agressão do senador Roberto Requião a um jornalista, de quem expropriou um gravador para rasurar a fita com suas ameaças.
Não bastassem os escândalos diários envolvendo o Ministério dos Transportes, uma novela interminável em que a cada momento surgem novos enredos e vilões, lidamos nos últimos dias com outra questão ética muito própria da nossa cultura patrimonialista: empresas de deputados e senadores que têm negócios com o governo, apesar da proibição expressa da Constituição.
De acordo com o artigo 54 da Constituição, deputados e senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público e ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada.
Anteriormente, o país já havia discutido, sem que se tenha chegado a uma conclusão, a questão da consultoria que Antonio Palocci, quando era deputado federal, prestou a diversas empresas, cujos nomes ele nunca revelou.
Havia a desconfiança de que ele prestara consultoria à Petrobras, o que foi negado, mas, como ele não divulgou a lista de seus clientes, nunca saberemos.
Agora, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, vai investigar as denúncias de fraude em licitações da Petrobras que teriam beneficiado uma empresa do, logo quem, presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), em um contrato de R$ 300 milhões para contratação de serviços ligados à produção de petróleo e gás no pré-sal da Bacia de Campos.
Mesmo que não houvesse fraude, o simples contrato já seria ilegal. Em outra ponta, descobriu-se que uma empresa do deputado Paulo Maluf recebe cerca de R$ 1,3 milhão por ano do governo federal pelo aluguel do prédio onde funciona a sede da Procuradoria da Fazenda Nacional, em São Paulo, desde o fim de 2006, quando o contrato foi celebrado com “dispensa de licitação”.
Dentro desse clima, a Academia Brasileira de Letras começou ontem um ciclo de conferências, coordenado pela escritora Ana Maria Machado, sob o título de “Ética e cidadania em tempos de transição”.
O historiador da USP Boris Fausto, depois de uma breve abordagem genérica sobre a questão ética na vida social e suas raízes históricas na nossa sociedade patrimonialista, analisou mais detidamente o aspecto político do fenômeno, tratando-o com uma ironia proposital a começar pelo título: “A flexibilização da ética, razões específicas do processo brasileiro como lideranças políticas vindas da ditadura militar e o presidencialismo de coalizão”.
Boris Fausto recusou-se a considerar que os políticos atuais sejam piores que seus antecessores históricos. Preferiu atribuir a decadência que estamos vivenciando na questão ética a circunstâncias históricas do desenvolvimento do país, como o crescimento avassalador do capitalismo de Estado, fazendo surgir uma nova classe dirigente — identificada originalmente pelo sociólogo Francisco Oliveira — que mistura o poder sindicalista emergente, dominando os fundos de pensão das estatais, e as megaempresas multinacionais.
E a consequente possibilidade de ganhar muito dinheiro também com a prevalência, a exemplo do que ocorre no mundo globalizado, do sistema financeiro.
Boris Fausto chamou a atenção para a naturalização dos desvios éticos, que são explicados ou com desculpas do tipo “sempre foi assim” ou com versões muitas vezes fantasiosas, mas que acabam resolvendo a questão, por mais absurdas que possam parecer.
Nesse ponto, ele chamou a atenção para a gravidade do exemplo dado pelo ex-presidente Lula na crise do mensalão, que tentou desculpar os desvios detectados como se fossem atos corriqueiros dos políticos brasileiros, como o uso do caixa dois em campanhas políticas.
Por ironia, também no mundo a desfaçatez aumentou nestes tempos pós-modernos, quando não há mais lugar a arrependimentos públicos como os antigos haraquiris de autoridades japonesas apanhadas em desvios éticos.
O historiador Boris Fausto encerrou sua palestra elencando uma série de medidas que podem ser adotadas para melhorar o panorama político, como uma reforma política que altere o sistema eleitoral e iniba a infidelidade partidária.
E, sobretudo, uma reforma no sistema judiciário que torne nosso sistema menos sujeito a recursos protelatórios e mais eficiente na punição dos culpados, sem o quê, fica difícil coibir as transgressões.
Fontes: O Globo, 27/07/2o11

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