Ingo Wolfgang Sarlet
O Brasil, já de alguns anos para cá, especialmente desde a
visibilidade que o combate à corrupção, a fraude e o desvio de recursos, obteve
com os processos do “Mensalão”, mas ainda mais com os escândalos e processos da
operação “Lava Jato”, ainda em curso e longe de ter esgotado o seu alcance,
está vivenciando um processo de transformação sem precedentes no que diz
respeito ao necessário combate da criminalidade do assim chamado “colarinho
branco”, abarcando tanto ações de agentes públicos quanto de atores privados.
A despeito dos eventuais e pontuais excessos, inclusive e
especialmente midiáticos, não se questiona o quanto a redução da impunidade que
reinava nesse domínio (o que não significa que a criminalidade convencional
esteja imune a tal fenômeno) deverá, em sendo consequentemente levada adiante,
resgatar e fortalecer não apenas a nossa tão combalida moralidade pública e
privada na esfera econômica, mas reduzir drasticamente o desvio de bilhões e
bilhões em recursos públicos que deveriam ser destinados não ao financiamento
paralelo de campanhas de quem quer que seja e muito menos para encher os bolsos
de alguns tubarões da política e da economia, mas sim, para investimentos na
educação (inclusive para uma cidadania responsável, não clientelista), na saúde,
segurança, moradia e outras áreas onde tanto se fazem necessárias políticas de
Estado e não apenas de governo.
Mais do que isso, não apenas é o caso de se saudar e
incentivar tais esforços em andamento, como se trata de gradualmente ampliar
tais estratégias para dar conta de outros bolsões de corrupção e desvio de
recursos, alguns dos quais já em andamento (veja-se o caso dos fundos de
pensão). Com isso, aliás, se estará resgatando também a confiança tanto interna
quanto externa nas nossas instituições públicas e privadas, na nossa política,
na economia e mesmo na credibilidade de nosso povo (e aqui incluídos todos os
segmentos sociais), em sua imensa maioria trabalhador e honesto.
Note-se que outro efeito perverso ao longo dos anos,
vinculado ao da credibilidade e da confiança nas instituições, é o da nefasta
tendência de se criminalizar ou pelo menos enxovalhar as instituições estatais
(mas não só!) que são em si imprescindíveis para qualquer Estado Democrático de
Direito que assim mereça ser designado, quais sejam, a representação
democrática em todos os níveis da Federação, o Poder Executivo como o principal
realizador das políticas de estado, o Poder Judiciário e as funções essenciais
à Justiça, sem prejuízo de outros alvos dos discursos maniqueístas, não
faltando mesmo aqueles que, possivelmente por falta de memória, manifestam
inclusive um saudosismo autoritário.
Nesse mesmo contexto, assim como se tem percebido no combate
ao terrorismo, por ora ainda não tão relevante para o Brasil (mas também nós
não estamos imunizados, como se verificou com a detenção recente de vários
suspeitos de envolvimento em atos de terror em nosso território) em diversos
países, também a em si – e reitere-se isso! – benfazeja luta contra a
corrupção, a improbidade e a criminalidade econômica, ademais do crime
organizado de um modo geral, não pode ser levada a efeito com desconsideração
pela idoneidade jurídico-constitucional dos meios, pena de estimular uma
espécie de “maquiavelismo jurídico” às avessas, caracterizado não pela busca e
manutenção do poder a qualquer preço (como na versão original do Príncipe de
Maquiavel), mas pela possível utilização de métodos e instrumentos no mínimo
polêmicos quanto a sua legalidade e constitucionalidade para alcançar fins em
si mais do que legítimos, inclusive do ponto de vista constitucional.
Não se poderá olvidar, nessa quadra, que o Estado de Direito
é, antes de tudo, um Estado Constitucional que tem na dignidade da pessoa
humana e na promoção e proteção dos direitos fundamentais o seu esteio e o seu
fim por excelência. Além disso, o Estado de Direito é um Estado avesso ao
arbítrio e, por via de consequência, amigo da justa medida, ou, dito de outro
modo, da temperança, da razoabilidade e da proporcionalidade.
Já por tal razão a manutenção de um necessário equilíbrio e
a regulação de todo e qualquer extremismo se tornam tão difíceis e complexos em
meio a tantos ataques diretos e tantos riscos, dentre os quais a criminalidade
organizada, como é o caso do tráfico, a criminalidade econômica e o terrorismo,
que justamente desafiam as instituições do Estado de Direito e testam
constantemente e de modo cada vez mais intenso os seus limites.
Não é à toa que há anos toneladas de papel e rios de tinta
são gastos discutindo a respeito da difícil equação entre Segurança e
Liberdade, bem como de uma transição do Estado de Direito para um assim chamado
Estado da Prevenção, especialmente de modo a não desnaturar e mesmo perverter
as premissas que balizam a Democracia e o Estado de Direito.
Embora não faltem os que, num caso para garantir a paz e a
estabilidade em face do terror, noutro caso para combater crime organizado e
corrupção, busquem justificar meios convencionalmente tidos como manifestamente
ilegítimos do ponto de vista da constitucionalidade e da legalidade, entendendo
que situações extremas somente podem ser enfrentadas com medidas extremas e
excepcionais, também não faltam (ainda!) os que se preocupam em travar tal
combate (em si necessário e urgente) de modo a manter o mínimo equilíbrio e
otimizar – por mais difícil que seja - tanto a liberdade quanto a segurança.
É precisamente nesse contexto mais alargado que se insere
cada vez mais a realidade brasileira, palco de crescente sectarismo em diversos
planos, ademais de posturas maniqueístas que ora endeusam determinados atores,
por mais que de fato estejam cumprindo de modo respeitável e eficaz os seus
respectivos papeis e sequer queiram ostentar tais “títulos”, ora demonizam
outros e mesmo os próprios deuses e heróis quando eventualmente em algum ponto
não mais parecem estar alinhados com a fúria sectária que avança (em parte por
razões compreensíveis, considerado o acúmulo de mazelas no nosso país) no corpo
social em geral e frequentemente nas opiniões publicadas.
O pior é que nesse ambiente aqueles que buscam manter o
equilíbrio e manter uma pauta prudencial e proporcional acabam por ser objeto
de ataque das duas frentes, os sequiosos pela punição e repressão a
praticamente qualquer custo, bem como os que seguem presos a uma lógica
formalista e uma leitura garantista (pois o garantismo oferece várias
possibilidades de leitura) unilateral e praticamente impeditiva de qualquer
meio eficaz para alcançar a punição, ainda que com o respeito ao devido
processo constitucional, mas normalmente apenas dos atores mais privilegiados
da nossa sociedade, ou seja, os detentores do poder econômico e político,
valendo-se do discurso do caráter absoluto de determinados direitos e
garantias, que, por mais valiosos e irrenunciáveis que sejam (e o são!) não são
também absolutamente isentos a algum tipo de limite.
Tal cenário e sem que aqui se vá (ainda) discutir aspectos
específicos de situações já em andamento ou propostas de reforma constitucional
e legislativa sendo apresentadas (como o caso das assim chamadas dez medidas
para o combate da corrupção), foi também objeto de referência enfática por
ocasião dos discursos proferidos por ocasião da posse na Presidência do STF dos
ilustres Ministros Cármen Lúcia e Dias Toffoli.
Ainda que os locais de fala tenham sido evidentemente
distintos, assim como parte do conteúdo das narrativas, o que chamou a atenção
foi o fato de que em boa parte, ressalvadas as ênfases, um elo substancial
comum foi justamente o de que o combate da corrupção e da criminalidade
econômica e organizada há de se fazer de modo rigoroso, mas respeitando os
direitos e garantias individuais, o que foi especialmente lembrado na fala do
Decano Celso de Mello.
O presidente do Conselho Federal da OAB, Cláudio Lamachia,
por sua vez, destacou que não se pode tolerar justiça sumária típica de um
estado de exceção apenas em função do clamor público, mas sim, que a justiça
deve ser feita com serenidade, cumprindo-se os postulados constitucionais,
enfatizando que o cenário exige temperança e equilíbrio.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao sustentar
a necessidade de medidas efetivas para conter e reprimir a corrupção, referiu
que o envio do projeto de iniciativa popular legislativa designado de dez
medidas contra a corrupção, representa uma proposta que deverá passar pelo
contraditório democrático e, portanto, acabará sendo lapidada e poderá mesmo
atrair propostas alternativas.
Por derradeiro, a Presidente empossada do STF, Ministra
Cármen Lúcia, iniciou bem o seu discurso ao saudar em primeiro lugar, antes das
autoridades presentes, o povo, a cidadania brasileira, destinatária das ações
dos poderes públicos e cuja fome de justiça e dignidade deve ser saciada,
salientando que carecemos mais do que reformas, de transformações e que a
travessia rumo a um cenário mais calmo exige coragem e prudência.
A depender da fala das autoridades referidas, de alto cunho
simbólico, mas também carregadas de um tom compromissário e propositivo,
resulta claro que a manutenção e fortalecimento das estruturas e instrumentos
do Estado Democrático de Direito não são compatíveis com um ambiente de
extremismos, intolerância e que flerta com estados de exceção, submetendo-se a
uma lógica do tudo ou nada. Ademais disso, o Estado de Direito, e isso há de
ser repisado, jamais poderá ser um Estado onde mesmo o mais nobre dos fins
possa justificar qualquer meio.
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