"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 21 de dezembro de 2013

Olhar constitucional sobre a participação administrativa


Desde junho de 2013, o Brasil vivenciou uma série de protestos e manifestações populares em grandes capitais e em outras cidades de diversos estados, cuja complexidade e simbolismo ainda serão objeto de muita reflexão em termos sociais, políticos, jurídicos e históricos.

Inicialmente organizadas por meio de redes sociais e ligadas à insatisfação pelo aumento de tarifas de transporte público e pela falta de qualidade dos serviços públicos, as manifestações ganharam corpo e pautas políticas e ideológicas variadas (insatisfação quanto à corrupção, ao voto secreto em votações legislativas e à tentativa de limitação de poderes do Ministério Público e do Judiciário; melhora da educação e da remuneração de professores, etc.). Também ganharam maior apoio popular e mais atenção da mídia nacional e internacional, sobretudo em razão dos excessos cometidos por parte das autoridades policiais e em razão do repúdio a reiterados atos de vandalismo, que não refletiam uma legítima manifestação cidadã.

Dentre as diversas questões que daí se podem extrair, é natural que a discussão acerca da liberdade de reunião e de manifestação ganhasse relevo, passando-se a se avaliar os modos de exercício e de condicionamento desse importante direito constitucional.

Além disso, a reflexão acerca desses eventos acaba por trazer à discussão os desafios ligados à ideia de democracia e às formas de sua concretização, revisitando o debate entre as vantagens e desvantagens de instrumentos políticos e administrativos de democracia indireta ou representativa, de democracia semidireta e/ou de democracia participativa. Dito de outro modo, retoma-se a pergunta sobre a ampliação e a modulação do cânone democrático.

A Constituição de 1988, que não se olvidou da famosa concepção de Lincoln, foi bastante enfática (em relação a suas antecessoras) ao assegurar, no Parágrafo único do seu artigo 1º, de forma explícita, a ampliação do cânone democrático, admitindo a sintonia entre as ideias de democracia participativa e de democracia representativa.

A doutrina em geral não se descuidou desse importante aspecto. Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer, por exemplo, destacam que essa abertura tem permitido novas experiências, resultados e potencialidades, que abrem espaço para se pensar em formas de combinação por complementariedade entre democracia participativa e representativa (e não meramente a sua coexistência).

Maria Benevides aponta que a novidade radical estaria no termo “diretamente” do artigo 1º, parágrafo único, CF/1988, a permitir a combinação de formas de democracia direta com a democracia representativa. No plano da participação política, por exemplo, admitiu-se a abertura para mecanismos institucionais de participação mais direta na atividade legislativa e em políticas governamentais (como referendo, plebiscito e iniciativa popular – no sentido comumente denominado de democracia semidireta), que foram aprovados para vigorarem nos distintos níveis do condomínio federativo (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Apesar de a abrangência dessa discussão muitas vezes enfatizar a participação no campo político-legislativo, a retomada do foco sobre o ponto de partida das manifestações (a insatisfação dos usuários de serviços públicos e a questão do aumento das tarifas de transporte) chama a atenção para uma maior reflexão acerca das possibilidades de práticas democráticas (participativas e representativas) e de soberania popular na seara da Administração Pública. Isso nos faz indagar sobre as bases teóricas e constitucionais e os desafios práticos de uma participação administrativa ou, segundo certos autores, de uma participação popular na administração pública.

A doutrina costuma apontar como instrumentos mais comuns de participação administrativa os seguintes: os conselhos (órgãos colegiados, ora com função deliberativa, ora com função consultiva), comissões e comitês participativos; as audiências públicas; as consultas públicas; o orçamento participativo. Haveria, também, a ouvidoria pública, o referendo e/ou plebiscito administrativo, a eleição popular para cargos de direção e as organizações sociais.

A escolha desse enfoque envolve um questionamento em sentido teórico-constitucional, ao qual aqui apenas faço menção. Trata-se de indagar sobre as novas formas de legitimação estatal, que não se limitam à transposição dos instrumentos clássicos de legitimação do sistema representativo.

Essa pergunta, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, busca iluminar, na atualidade, um elo entre o direito constitucional e o direito administrativo, por meio de uma compreensão do princípio democrático em sentido dinâmico e de abertura ao futuro, com vistas a um direito administrativo cooperativo.

Em termos empíricos, que também não podem ser aqui amplamente investigados, fica a questão de se saber o porquê do suposto baixo nível de fomento e utilização efetiva, pelas Administrações em geral, de instrumentos de participação popular antes, durante e após as manifestações.

Entretanto, aqui cabe analisar, em sentido prático-constitucional e em cotejo com o pano de fundo das manifestações e protestos mencionados, como nossa Constituição permite o exercício da legitimação democrática da administração, inclusive via participação administrativa, pois há diversas disposições que, sob esse enfoque, em maior ou menor grau, estariam relacionadas à democracia participativa.

Nesse sentido, vale destacar dois casos interessantes, atualmente sob análise do STF, que merecem acompanhamento.

O primeiro diz respeito ao âmbito normativo do artigo 37, ­parágrafo 3º, da Constituição, que, embora normalmente não fique em evidência, é um  dos diversos exemplos de dispositivos constitucionais relativos ao tema da participação administrativa, especialmente quanto à questão das formas de participação dos usuários na administração em geral.

A despeito de sua redação original ter se limitado a um foco muito restritivo (As reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei.),é inegável que a redação conferida pela EC 19/98 operou significativa mudança, pois ampliou o foco do dispositivo e de sua regulamentação legal para permitir a experimentação de formas de participação do usuário na administração em geral (dando a entender que aqui se trata de serviços públicos em sentido amplo).

Ocorre que o artigo 27 da EC 19/98 determinou que o Congresso Nacional elaborasse em 120 dias da promulgação daquela Emenda uma “lei de defesa do usuário de serviços públicos”.

Contudo, passados praticamente 15 anos, até hoje não houve a referida regulamentação legal (a abarcar toda a matéria do parágrafo 3 do artigo 37), embora se possa dizer que há regulamentações parciais (explícitas ou implícitas), em legislação esparsa, como ocorre com a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que regulamentou especificamente o inciso II do parágrafo 3º do artigo 37, CF/88.

Esse estado de descumprimento do artigo 27 da EC 19/98 ensejou o ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão pelo Conselho Federal da OAB, que teve pedido liminar deferido pelo relator do caso, Ministro Dias Toffoli, em 1º de julho de 2013, para determinar o seguinte:

“defiro em parte a medida cautelar pleiteada na presente ação, ad referendum do Plenário, para reconhecer o estado de mora do Congresso Nacional, a fim de que os requeridos, no prazo de 120 (cento e vinte) dias, adotem as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo artigo 27 da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998” (ADO 24 MC/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 1º.08.2013).

Após destacar a relevância do tema de fundo (prestação de serviços públicos no País e os instrumentos de defesa dos seus usuários) e a importância da mudança operada pela EC 19/98, que exigiu deliberação pelo Congresso Nacional em 120 dias, o Ministro Dias Toffoli asseverou que, passados exatos 15 anos, seria evidente a existência de lapso temporal suficiente a caracterizar, mesmo em juízo sumário, a omissão inconstitucional.

Salientou ainda que, mesmo não sendo caso de total ausência de proposição legislativa (por estar a tramitar o PL 6.953/2002 na Câmara dos Deputados, pendente de apreciação em CCJ), estaria configurada, no caso, a omissão em termos de inercia deliberandi. É que, por não haver deliberação em um prazo razoável, seria injustificável a conduta manifestamente negligente ou desidiosa das Casas Legislativas, sobretudo se a decisão política a respeito da necessidade de edição de lei já fora tomada pelo próprio Parlamento nos termos do artigo 27 da EC 19/98. Esse posicionamento estaria, inclusive, em harmonia com o entendimento fixado pelo STF no julgamento de outro semelhante caso de omissão (ADI 3682/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 06.09.2007), em que o tema  fora debatido com maior profundidade.

É interessante ressaltar ainda que a “voz das ruas” ecoou de forma explícita nas razões dadas pelo Ministro Dias Toffoli em sua decisão, ainda que na qualidade de simples argumento de reforço:

“É inevitável observar que o caso em tela coincide com a atual pauta social por melhorias dos serviços públicos. Os movimentos sociais que hoje irradiam várias partes do país e o respectivo anseio da população por qualidade na prestação dos serviços disponibilizados à sociedade brasileira são uma demonstração inequívoca da urgência na regulamentação do artigo 27 da EC nº 19/98.”

Ele acentuou ainda que essa regulamentação fomenta a cidadania ativa e efetiva, além de estabelecer formas mais diretas de relacionamento entre Estado e sociedade.

O caso em questão é interessante não somente do ponto de vista meritório (participação administrativa e democracia participativa), mas também da perspectiva técnica e política (omissão inconstitucional, formas de sua configuração e superação e a efetividade de decisões liminares e de mérito nessa seara).

Além disso, há alguns complicadores a serem destacados. Em tese, a decisão liminar pode vir a não ser referendada pelo Plenário do STF. Ademais, ao que tudo indica, o prazo estabelecido pela decisão monocrática findará sem que o Congresso venha a cumprir a determinação judicial, pois até o presente momento não houve deliberação definitiva acerca do tema no Parlamento. Fica a indagação, de todo modo, sobre o porquê de não se conseguir priorizar esse debate na pauta legislativa.

O segundo caso em destaque diz respeito a um questionamento veiculado na ADI 3.908/DF, em que determinado partido político busca a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º, caput e parágrafo 2º, da Lei 9.709/98, por entender ser inconstitucional a figura do referendo para matéria ou atos de natureza administrativa.

É que, segundo o autor da ação (PSDB), a submissão de atos administrativos, após a sua prática, a procedimento de referendo pelo Legislativo violaria a garantia do ato jurídico perfeito, os princípios da legalidade, da isonomia e da impessoalidade e o princípio da separação de poderes.

Adotado o rito processual do artigo 12 da Lei 9.868/99 pelo relator originário do caso (Min. Joaquim Barbosa), a AGU e a PGR se manifestaram pela improcedência da ação, ressaltando o caráter impositivo da democracia participativa e dos instrumentos de democracia semidireta no contexto da Constituição de 1988 (inclusive para a seara administrativa). A manifestação da PGR, inclusive, é digna de nota pelo estudo detalhado e ilustrativo da questão.

O curioso aqui é que o Município de Fortaleza foi admitido como amicus curiae e buscou demonstrar que, em verdade, havia uma instrumentalização do sistema de controle de constitucionalidade para atender a interesses concretos e privados de interessados na manutenção de certo ato administrativo (alvará de construção).

Tal premissa foi acolhida pelo então relator do feito, Min. Joaquim Barbosa, que indeferiu monocraticamente a inicial, ressaltando que a legitimação ampla dos partidos políticos não poderia transformar o STF em um tubo de ensaio para a afirmação de interesses concretos ou individuais (ADI 3908, Rel. Min, Joaquim Barbosa, DJe 06.11.2008).

Como houve recurso (agravo regimental) e redistribuição do processo ao Min. Ricardo Lewandowski (atual relator), é possível que a decisão agravada seja revista e, eventualmente, abra-se margem para que o STF possa se manifestar de forma efetiva acerca desse importante mecanismo de democracia semidireta (referendo), quando aplicável à matéria ou a ato administrativo.

A esse respeito, por exemplo, Gilberto Bercovici defende o seguinte: não há óbice em se utilizar referendo e plebiscito para matéria administrativa ou ato administrativo; a Lei 9.709/98 funciona como norma geral, a autorizar os demais entes federativos a fazer uso de tais instrumentos no âmbito de suas atribuições constitucionalmente fixadas; não há usurpação de competências entre poderes constituídos.

Além disso, no que diz respeito ao caso da ADI 3.908, o referido autor se posiciona no sentido de que, além de não haver fundamento jurídico para acolhimento do pleito, seria um exemplo de instrumentalização dos partidos políticos contra a ampliação da democracia participativa no país. Aponta, ainda, duas particularidades que causariam, a seu juízo, certo estranhamento à impugnação da Lei 9.709/98: o fato de ela ter sido impugnada apenas em 2008 (anos após a sua vigência) e de essa contestação ter sido feita contra lei sancionada por presidente da República, que era filiado ao mesmo partido autor da ação.

De todo modo, o realce desses dois casos, a partir do contexto apresentado, serve de estímulo para aprofundar o debate do tema da participação administrativa (e da democracia participativa em sintonia com a democracia representativa) em uma perspectiva constitucional, consideradas não só as relevantes tarefas dirigidas ao poder constituinte derivado e à jurisdição constitucional, mas também a importância de fazermos valer o nosso direito constitucional de participação democrática!


Marco Túlio Reis Magalhães 

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