Marcus Vinicius Furtado Coêlho
Humor, imprensa e
democracia
Às vésperas das eleições gerais de 2010, a Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão ajuizou a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.451/DF, instando o Supremo Tribunal Federal a pronunciar-se
novamente quanto à abrangência da proteção dada pela Constituição Federal de
1988 à liberdade de imprensa, à livre manifestação e ao direito à informação.
Ao questionar os incisos II e III do artigo 45 da Lei 9.504 frente os incisos
IV, IX e XIV do artigo 5º da Lei Fundamental, pôs-se em debate a possibilidade
de manifestações humorísticas serem lidas como atividades de imprensa e, como
tais, serem resguardadas contra censura prévia.
A inconstitucionalidade dos incisos II e III do artigo 45
foi levantada mais de 12 anos após a entrada em vigência da Lei das Eleições,
muito provavelmente devido à edição da Lei 12.304 em 2009. Mais um diploma
normativo a promover “reforma política”, a Lei 12.304 introduziu diversas
alterações não só na Lei das Eleições como também na Lei dos Partidos Políticos
e no próprio Código Eleitoral, reproduzindo jurisprudência sedimentada do
Tribunal Superior Eleitoral nas áreas de propaganda eleitoral, pesquisa e
arrecadação de recursos. A fim de melhor controlar a “companha ‘suja’ na TV”,
como dispunha a justificativa do Projeto de Lei que originaria a Lei 12.304,
acrescentou-se ao artigo 45 da Lei 9.504/97 os parágrafos quarto e quinto para
melhor esclarecer as definições de truncagem e de montagem a que faz referência
o inciso II.
De acordo com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio
e Televisão, os incisos II e III do artigo 45 da Lei das Eleições provocariam
um perigoso efeito silenciador sobre as emissoras de rádio e de televisão, que
seriam obrigadas a não tratar de temas políticos controvertidos. Do contrário,
seriam acusadas de favorecer ou desmerecer determinado candidato ou partido.
Ademais, sustentava-se na exordial que esses dispositivos teriam o condão de
inviabilizar a veiculação de conteúdo humorístico envolvendo personalidades da
política durante o período eleitoral, o que configuraria violação aos incisos
IV, IX e XIV do artigo 5º e ao artigo 220 da Constituição Federal de 1988. Para
a requerente, proteger a higidez do pleito não deveria exigir o sacrifício da
liberdade da manifestação de pensamento e comunicação ou da atividade
intelectual, artística e científica, que per se constituiriam “garantias tão
caras à democracia quanto o próprio sufrágio”.
A equivalência entre liberdade de expressão e sufrágio
desimpedido dar-se-ia na medida em que um procedimento de eleição justo
pressuporia a livre existência de informações e de ideias, observando-se
restrições proporcionais à liberdade de expressão se levadas a cabo para
aperfeiçoar o processo de debate acerca das preferências eleitorais. A relação
intrínseca entre democracia e expressão foi bem delineada por Owen Fiss,
professor da Universidade de Yale, para quem o fim da liberdade de expressão
não é proporcionar à realização individual, mas, sim, a preservar a democracia
e o direito do povo de, enquanto entidade coletiva, decidir qual vida deseja
viver. In casu, os incisos II e III do artigo 45 da Lei 9.504 haveriam
extrapolado os limites do sistema constitucional ao criar limitações excessivas
e desproporcionais ao proibir a produção e a veiculação de conteúdo humorístico
envolvendo candidatos e agremiações e ao vedar a veiculação de propagando
política e a difusão de opiniões favoráveis ou contrárias.
A medida cautelar formulada pela associação foi parcialmente
deferida pelo relator da ADI 4.451/DF, ministro Carlos Ayres Britto.
Suspendeu-se a eficácia do inciso II do artigo 45 e deu-se interpretação
conforme ao inciso III para impedir censura prévia, mas permitindo ao
Judiciário aferir posteriormente se a conduta desequilibraria a paridade de
armas na eleição ao valer-se da liberdade de imprensa para veicular propaganda
em prol de uma das partes em disputa. O relator entendeu haver no pleito tanto
urgência, devido à proximidade do período eleitoral, quanto fumus boni iuris,
considerando a necessária plenitude da liberdade de imprensa, sobretudo na
eleição de representantes políticos. No Plenário, o relator submeteu aos pares
voto inicialmente idêntico à decisão monocrática na cautelar: mantinha a
suspensão da eficácia do inciso II e conferia ao inciso III leitura adequada à
constituição para chancelar, “entre vários sentidos a priori configuráveis da
norma infraconstitucional, aquele que lhe seja conforme ou mais conforme”.
De início, instalou-se uma divergência em relação ao final
do voto do ministro relator, particularmente na autorização para que o
Judiciário analisasse a posteriori a ocorrência de condutas vedadas. Ainda que
proibisse a censura prévia, tomou cuidado o relator em destacar a relevância de
responsabilizar emissora a posteriori por matéria jornalística que nada mais
fosse do que propaganda política travestida em exercício da liberdade de
imprensa. Para a ministra Cármem Lúcia, que foi acompanhada pelos ministros
Cezar Peluso e Gilmar Mendes, o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição impõe
ao Poder Judiciário a análise de toda e qualquer lesão e ameaça a direito, pelo
que essa leitura do inciso III do artigo 45 permaneceria inconstitucional. Em
faces de tais ponderações, fez por bem o ministro em alterar o voto para
suspender também a eficácia do inciso III do artigo 45 da Lei 9.504.
Assim, a maioria do Supremo, integrada pelos ministros
Carlos Ayres Britto, Cármem Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Celso de Mello
e Cezar Peluso, entendeu pela suspensão integral do inciso II e parcial do
inciso III da Lei das Eleições, suspendendo por arrastamento a eficácia do
parágrafo quarto e quinto, na medida em que a liberdade de imprensa livre não
deve sofrer constrições durante o pleito, sendo defesa a invocação de afronta à
isonomia na disputa por veiculação de mensagens humorísticas desde que não
houvesse abuso de poder econômico, midiático ou politico.
Sendo permitido à emissora de rádio e de televisão veicular
charges, sátiras e programas humorísticos em relação a um partido, candidato ou
autoridade, entendeu o relator que também deverá sê-lo durante o período
eleitoral. Portanto, seria indispensável suspender a eficácia do inciso II do
artigo. 45 da Lei 9.504, que visaria reprimir um estilo peculiar de fazer
imprensa. Já o inciso III teve sua eficácia suspende no que dizia respeito a
“ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a
seus órgãos ou representantes”. A conduta será vedada apenas se a matéria
jornalística descambasse em propaganda política que favorecesse abertamente uma
das partes na disputa.
Acerca do periculum in mora, os ministros Gilmar Mendes e
Ellen Gracie agregaram ao raciocínio do ministro relator a renovação diária do
risco de o provimento final da ação tornar-se ineficaz, vez que, quando da
ratificação da medida liminar, falta apenas um mês para a realização das
eleições de 2010, em que seriam eleitos presidente, senadores, deputados
federais, governadores de Estado e deputados estaduais.
Por sua vez, a ministra Cármem Lúcia precisou que a vedação
antecipada de truncagem, montagem ou outro recurso de áudio e de vídeo que, “de
qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação”
constituiria cerceamento prévio à livre imprensa, na contramão do artigo 220,
caput, parágrafo primeiro e segundo da Carta. Quanto ao inciso III, a ministra
votou por suspender parcialmente sua eficácia a fim de proibir “veiculação, por
emissora de rádio e televisão, de crítica ou matéria jornalística que venham a
descambar para a propaganda política, passando, nitidamente, a favorecer uma
das partes na disputa eleitoral, de modo a desequilibrar o 'princípio da
paridade de armas'”.
Os ministros vencidos posicionaram-se pela declaração da
inconstitucionalidade parcial dos dispositivos questionados. Inaugurada pelo
ministro Dias Toffoli, a divergência foi acompanhada pelos ministros Ricardo
Lewandowski e Marco Aurélio, para os quais a interpretação conforme do inciso
II, a fim de excluir da sua incidência as atividades de humor, asseguraria
resultado igualmente eficaz ao obtido com o deferimento da liminar. Contudo,
manteve-se a norma plenamente válida para fins da aplicação do artigo 55 da Lei
9.504. O inciso III também deveria ser interpretado em conformidade à Carta,
para erradicar dúvidas sobre a constitucionalidade de “crítica jornalística,
favorável ou contrária, a candidatos, partidos, coligações, seus órgãos ou
representantes, inclusive em seus editoriais”. Logo, votaram por referendar a
liminar em relação ao inciso II, mas indeferi-la integralmente em relação ao
inciso III, sob o fundamento de que o inciso V do artigo 45 permite de antemão
críticas em programas jornalísticos e debates políticos.
Com propriedade, decidiu o Supremo Tribunal Federal que o
humor encontra guarida na Constituição Federal de 1988, permitindo o uso do
humor no questionamento a partidos, candidatos e autoridades no geral. Ao suspender
a eficácia do inciso II e do inciso III do artigo 45 da Lei 9.504 e, por
arrastamento, a eficácia dos parágrafo 4º e 5º, o Poder Judiciário garantiu aos
brasileiros “o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom
áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra
as autoridades e aparelhos de Estado”, como registrou o ministro Ayres Britto.
A dignidade da
pessoa humana
Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal foi chamado
para concretizar o sentido do princípio constitucional da liberdade de
expressão e pensamento, que a Constituição Federal de 1988 protege como direito
fundamental nos incisos IV e IX do seu artigo 5° . Cada vez que este princípio
contrapunha-se a um outro, terminava o Supremo a dar-lhe contornos mais claros
na medida em que lhe impunha limites. No Habeas Corpus 82.424/RS , os contornos
deveram-se à primazia do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nessa ocasião, o Supremo foi instado a decidir sobre a
condenação à pena de dois anos de reclusão de indivíduo como incurso no tipo
penal previsto pelo artigo 20 da Lei n° 7.716/89 – crime de preconceito . À
primeira vista, o que parecia ser mais um entre os milhares dos Habeas Corpus
impetrados contra ato constritivo à liberdade de locomoção, revelou-se um
autêntico hard case. Ao decidir sobre a prisão de um editor de livros cuja obra
foi considerada antissemita, o Supremo estabeleceu limites à liberdade de
expressão diante do princípio da dignidade da pessoa humana.
A controvérsia girava em torno de dois pontos. Primeiro,
questionava-se a possibilidade de enquadrar o preconceito com judeus no tipo
penal do racismo, ou seja, a abrangência do dispositivo legal quando da
interpretação do conteúdo de livros revisionistas escritos por Sigfried
Ellwanger. Para os impetrantes, a punição do crime estaria prescrita porque o
julgamento pela primeira instância aconteceu quase doze meses após o
recebimento da denúncia, na forma do artigo 109 e 110 do Código Penal. A
solução seria defender a natureza comum do crime para afastar a
imprescritibilidade do racismo, como estipula o
artigo 5°, inciso XLII, da Constituição, ao argumento de que não
existiria uma “raça judaica”, apenas a raça humana.
Em segundo lugar, defendia-se a prevalência da liberdade de
expressão. Entretanto, este mesmo texto constitucional estabelece não só a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República brasileira,
como também institui a igualdade entre todos os cidadãos. Instalava-se, assim,
o hard case, na medida em que a controvérsia não encontra solução óbvia na
ordem jurídica. É nesse momento, de acordo com Ronald Dworkin, que o intérprete
da lei depara-se com a árdua tarefa de analisar o problema à luz de seus
partícipes, seu contexto e suas consequências.
O Procurador Geral da República ofertou parecer pelo
indeferimento do Habeas Corpus, por entender que o crime de racismo previsto na
Constituição Federal de 1988, tal como fora regulamentado pela Lei 7.716/1989,
deveria ser interpretado não só como preconceito fundado em “raça”, mas também
por cor, etnia, religião e procedência nacional. Idêntico foi o posicionamento
apresentado por Celso Lafer como amicus curiae. Deveria o inciso XLII do artigo
5° da Constituição de 1988 ser lido do modo mais aberto possível “dada a relevância que a Constituição atribui
a direitos e garantias fundamentais, entre as quais se inclui a rigorosa
inaceitabilidade da prática do racismo”.
O julgamento do HC 82.424 estendeu-se por três sessões e
levou mais de nove meses para ser concluído. Por um placar de 8 votos a 3, os
ministros negaram o pedido. Saíram vencidos os Ministros Moreira Alves, Marco
Aurélio e Ayres Britto. O primeiro entendeu que não só ocorrera a prescrição,
por se tratar de crime comum, como também não se poderia cogitar do racismo
porque judeus não seriam considerados uma raça. Em sentido semelhante, o
ministro Marco Aurélio entendeu não haver crime de racismo, na medida em que a
intenção do autor era apenas promover uma revisão histórica dos fatos e que sua
manifestação individual deveria ser resguardada pelo direito. Além, foi do seu
entendimento que a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o crime de
racismo e determinar sua imprescritibilidade, referia-se ao preconceito contra
negros, não contra o povo judeu.
Sendo o crime praticado por Ellwanger comum, estaria já
prescrito. Para o ministro, o instituto da imprescritibilidade tornaria o
cidadão refém eterno dos seus atos e das sua manifestações, “como se não fosse
possível e desejável a evolução, a mudança de opiniões e de atitudes,
alijando-se a esperança, essa força motriz da humanidade”. O ministro Ayres
Britto, terceiro e último voto vencido, concedia a ordem, uma vez que o crime
teria sido praticado antes da entrada em vigência da lei que tipifica o racismo
por meio de comunicação.
Acerca da questão de fundo, os limites à liberdade de
expressão, posicionaram-se Ayres Britto e Marco Aurélio. Para o primeiro, o
paciente do Habeas Corpus possuía apenas os intuitos científico e histórico na
publicação dos obras considerados revisionistas. Diante de um “estudioso
tendencioso”, deveria ser dado espaço ao senso crítico dos leitores. Já o
ministro Marco Aurélio seria indispensável resguardar a liberdade de expressão
como proteção contra a tirania de pensamento politicamente correto. Estaria o
editor a relatar sua versão dos fatos e as pessoas não seriam obrigadas a
compartilhar de igual ponto de vista.
A divergência que se consagrou vencedora foi aberta pelo
ministro Maurício de Corrêa, que indeferiu a ordem a partir do argumento de que
a segregação dos seres humanos em diversas raças nada mais seria do que um
processo político decorrente da intolerância da sociedade. Após ilustrar as
origens bíblicas do povo judeu e as estigmatizações sofridas por ele, defendeu
a exegese teleológica e harmônica do inciso XLII do artigo 5° face ao texto da
Constituição Federal de 1988, não podendo a categoria “raça” ser interpretada
isoladamente como expressão simplesmente biológica, mas de acordo com suas
diversas conceituações. Assim, “o que vale não é o que pensamos, nós ou a
comunidade judaica, se se trata ou não de uma raça, mas efetivamente se quem
promove preconceito ou tem discriminado como uma raça e, exatamente com base
nessa compreensão, promove e incita a sua segregação, o que ocorre no caso
concreto”.
O voto do ministro Maurício Corrêa foi ainda taxativo quanto
à inexistência de violação aos princípios constitucionais garantidores da
liberdade de expressão e de pensamento. A colisão entre direitos fundamentais
não seria mais que aparente, na medida em que o texto constitucional não ampara
atos discriminatórios de qualquer natureza. Um direito individual não pode ser
utilizado como salvaguarda para conduta ilícita. O direito à livre expressão
apenas será exercido legitimamente acaso atendidos os limites que o próprio
texto constitucional lhe impõe. Para delineá-los, “há necessidade de
proceder-se a uma ponderação jurídico-constitucional, a fim de que se tutele o
prevalente”. No caso do HC 82.424, preponderariam os direitos de toda a parcela
da sociedade prejudicada com as obras publicadas pelo paciente.
Para o ministro Gilmar Mendes, a controvérsia também girava
em torno da extensão do crime de racismo. Seria inegável o caráter racista do
antissemitismo, independentemente se adotado o critério antropológico,
histórico ou biológico. Valendo-se do princípio da proporcionalidade na
composição entre direitos fundamentais em divergência, entendeu que deveria sobressair
naquele caso concreto o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana,
uma vez que a discriminação racial travestida de liberdade de expressão
comprometeria a ideia de igualdade, um dos fundamentos do Estado democrático.
Nesse sentido votaram Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar
Peluso.
Ao cabo de três sessões e nove meses, o Supremo Tribunal
Federal denegou a ordem no Habeas Corpus a partir do entendimento de que o
antissemitismo está abarcado pelo tipo penal do racismo, sendo, portanto,
imprescritível e inafiançável. Embora não exista uma divisão de raças humanas
na biologia, ela existe nas mentes preconceituosas. No direito, deve
preponderar não os conceitos científicos, mas a realidade social do impacto que
tal preconceito causa a fim de privilegiar o objetivo final do dispositivo
constitucional.
Privilegiou-se a própria Constituição Federal de 1988, cujo
texto elegeu como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos,
sem preconceitos de raça. A legislação e a jurisprudência alinham-se à adesão
do Brasil às convenções internacionais que versam sobre a matéria, a exemplo da
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial. Ratificada no ano de 1969, o diploma veda e enquadra na prática de
racismo qualquer ato que induza ou incite, pelos meios de comunicação social ou
por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça,
cor, religião, etnia ou procedência nacional.
Como no julgamento de Ellwanger, onde sopesadas liberdade de
expressão e dignidade da pessoa humana, a colisão entre princípios
constitucionais deverá ser resolvida caso a caso por meio de um processo
dialético de complementação e limitação – em outros termos, por meio de uma
ponderação. Não foi admitido justificar a publicação das obras que ofendessem a
dignidade da sociedade judaica na liberdade de expressão porque tal garantia
não seria absoluta, não podendo respaldar eventual manifestação que implique
ilicitude. No HC nº 82.424 prevaleceu o direito da coletividade em ser
respeitada como tal.
A discussão sobre antissemitismo retornou em 2016, com a
entrada em domínio público da obra Minha Luta, de Adolf Hitler. Já há
precedente do Tribunal Constitucional em homenagem ao princípio da dignidade da
pessoa humana e da igualdade e em repúdio à discriminação e ao preconceito.
Todavia, cuida-se de entendimento adotado em Habeas Corpus que, por mais
significativo que seja, não é dotado de eficácia vinculante e efeitos erga
omnes. Caberá mais uma vez à justiça pôr a termo um conflito entre princípios
de tamanha centralidade na ordem democrática: liberdade de expressão e
dignidade.
Imagem, honra e
intimidade
Por ocasião do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 130, pelo Partido Democrático Trabalhista, contra a Lei
5.250, de 9 de fevereiro de 1967, o Supremo Tribunal Federal foi instado a
arbitrar um novo conflito envolvendo o princípio constitucional da liberdade de
expressão e pensamento. Nesse caso, opunham-se aos incisos IX e X do artigo 5°
e artigos 220 a 223 da Constituição Federal de 1988 os incisos V e X do artigo
5º, que versam sobre o direito à imagem, à honra, à intimidade e à vida
privada. Superar a aparente colisão apenas se fez possível mediante a
ponderação dos valores constitucionais diante o confronto entre as
características da Lei de Imprensa e as normas da nova ordem constitucional.
Editada pelo regime militar ainda na presidência do general
Humberto Castelo Branco, a pretexto de regular a “liberdade de manifestação do
pensamento e de informação”, a lei nada mais fez do que institucionalizar a
censura junto aos meios de comunicação a fim de coibir eventuais manifestações
contrárias ao governo recém-instalado. Nesse sentido, seu artigo primeiro
vedava “propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e
social ou de preconceitos de raça ou classe” e excluía da proteção à liberdade
os espetáculos e as diversões públicas. A Lei de Imprensa ainda proibia
publicações clandestinas e atentatórias à moral e aos bons costumes — a serem
definidos segundo os interesses políticos do governo. "No auge do
militarismo, estimular um movimento de trabalhadores na justa luta por melhores
salários, pelo recurso da greve, era motivo para classificar o gesto de
subversão da ordem".
De acordo com o Partido Democrático Trabalhista, a Lei
5.250, tal como promulgada pelo regime militar, afrontava os preceitos
fundamentais cristalizados nos incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV do artigo 5º e
nos artigos 220 a 223 da Constituição Federal de 1988. Por ser “incompatível
com os tempos democráticos”, requereu a invalidação jurídica da lei na
totalidade e, alternativamente, o reconhecimento da não recepção de
determinados dispositivos e a interpretação conforme a Constituição de outros.
Para o requerente, tais dispositivos, se mantidos no ordenamento, poderiam
justificar violações à liberdade de expressão e pensamento.
O parecer do procurador-geral da República na ADPF 130
deu-se pela procedência apenas parcial da arguição, considerando a
impossibilidade de ser conhecida em relação a matérias que não foram
expressamente trazidas pelo autor na petição inicial, na forma do artigo 102,
parágrafo 1º, da Constituição e do artigo 3º da Lei 9.882/99. No mérito,
entendeu que a invalidação da lei em sua íntegra fomentaria “grave insegurança
jurídica devido ao constante estado de ameaça à intimidade e dignidade das pessoas”,
pelo que deveriam ser preservadas as normas sancionadoras do abuso no exercício
da liberdade de manifestação — artigos 20, 21 e 22 da lei. Em suma, opinou que
o pedido deveria ser julgado procedente parcialmente em atenção às garantias
personalíssimas da intimidade, honra e vida privada.
Preliminarmente, antes de adentrar o mérito da controvérsia,
entenderam os ministros ser a ADPF o instrumento jurídico cabível à impugnação
de normas pré-constitucionais, com base no princípio da subsidiariedade, previsto
no artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 9.882 e firmado no julgamento da ADPF 33. A
constitucionalidade da Lei 5.250 fora questionada no bojo da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 521, que nem sequer foi conhecida pelo tribunal em
virtude da impossibilidade jurídica do pedido: “Lei anterior não pode ser
inconstitucional em relação a Constituição superveniente; nem o legislador
poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna
inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as”.
No mérito, por maioria, os ministros julgaram procedente a
arguição para declarar a não recepção da Lei 5.250 por meio de uma “ponderação
diretamente constitucional entre blocos de bens de personalidade: o bloco dos
direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa e o bloco de direitos à
imagem, honra, intimidade e vida privada”. A cabo dessa operação, decidiu o
Supremo que o “bloco de constitucionalidade” — lido como o conjunto das normas
do ordenamento jurídico que versam sobre a mesma matéria e que detém natureza
constitucional — da liberdade de expressão é procedente ao bloco da intimidade,
que incidiria tão somente a posteriori para assegurar o direito de respostas e
responsabilizar os possíveis abusos.
Nessa oportunidade, os ministros vencidos posicionaram-se
pela improcedência parcial ou total da ação. A divergência parcial foi
inaugurada pelo ministro Joaquim Barbosa e seguida pela ministra Ellen Gracie,
para os quais deveriam ser mantidos os artigos 1º, parágrafo 1º, 2°, caput, 14,
16, inciso I, 20, 21 e 22 da Lei 5.250/67 ao entendimento de que a ação do
Estado na área das garantias fundamentais não seria necessariamente negativa.
No campo da liberdade de expressão e de pensamento, a ação seria benéfica ao
impor à imprensa a observância de interesses outros que os de seus produtores.
Para ambos, nem todos os dispositivos da Lei de Imprensa seriam incompatíveis
com a nova ordem, uma vez que serviriam como dispositivos de proteção ao
direito de intimidade e de punição a abusos não tolerados pelo sistema
jurídico.
O ministro Gilmar Mendes foi além para defender a recepção
dos artigos 29 a 36 da Lei de Imprensa, que entendia ser exigência
constitucional em virtude da dimensão objetiva ou institucional da liberdade de
imprensa. Em seu voto, defende ser dever do legislador equacionar, nos termos
exigidos pela Constituição Federal, a liberdade de imprensa e os demais valores
fundamentais carentes de proteção, uma vez que não fora concebida pelo
legislador constituinte de 1988 nenhum direito absoluto, insuscetível de
restrição diante dos casos concretos. Assim, seriam relevantes os procedimentos
estipulados pela Lei de Imprensa em seus artigos 29 a 36, cujo afastamento
poderia instalar quadro de extrema insegurança jurídica e de risco a uma
garantia constitucional.
O ministro Marco Aurélio votou pela improcedência total dos
pedidos da arguição, em atenção à necessidade de um diploma normativo
específico para disciplinar as variantes da liberdade de informação. Para o
ministro, a vigência da Lei de Imprensa por mais de 20 anos sob a égide da
Constituição Federal de 1988 terminou por purificar eventuais vicissitudes, no
que aplicada pelo Poder Judiciário aos litígios, restando em pleno vigor apenas
as normas que protegiam a intimidade dos cidadãos e a liberdade de informação.
A maioria dos ministros — Carlos Britto, Eros Grau, Cezar
Peluso, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Menezes Direito — decidiu pela
incompatibilidade frente à Constituição de 1988 da Lei 5.250, na medida em que
seu propósito era justamente cercear o livre funcionamento da imprensa — base
do sistema representativo. Ao possuir tal finalidade, a lei desnaturalizaria a
própria existência da imprensa.
Relator, o ministro Carlos Ayres Britto considerou ser a Lei
de Imprensa integralmente materialmente aos princípios da Constituição Federal
de 1988, devendo ser subtraída na íntegra da ordem jurídica. A liberdade de
imprensa seria a irmã siamesa da democracia, pelo que desfrutaria de uma campo
de atuação maior do que a liberdade de pensamento e de expressão dos cidadãos.
Esses mesmos direitos individuais seriam melhor exercidos diante de uma
imprensa livre e plena, cuja fidedignidade deveria ser fiscalizada somente pelo
pensamento crítico da sociedade. Dessa forma, o ministro rejeitava toda e
qualquer interferência do Estado em questões essencialmente relacionadas à
imprensa, admitindo a disciplina de temas secundários ao trabalho jornalístico,
como o direito de resposta e o pedido de indenização, mas não a liberdade de
manifestação e o acesso a informação.
Em seu voto, o ministro Menezes Direito valeu-se da obra do
professor Owen Fiss, da Universidade de Yale, ao enfatizar a importância
democrática da imprensa em informar os cidadãos dos posicionamentos de
candidatos a cargos eletivos e em analisar as políticas de governo. Em idêntico
sentido, a ministra Cármem Lúcia frisou a importância da liberdade de imprensa
como a liberdade de pensamento para informar, informar-se e ser informado,
contribuindo assim com a realização da dignidade da pessoa humana. Para a hoje
presidente do Supremo, o sistema jurídico já disporia de mecanismos suficientes
à coibição dos eventuais abusos praticados em nome da liberdade de imprensa.
Ambos os direitos fundamentais seriam complementares porquanto quanto menor a
possibilidade de liberdade de ser expressar que o ser humano possui, menos sua
dignidade em relação aos outros.
Entendeu pela desarmonia da Lei de Imprensa com os
princípios do novo ordenamento constitucional o ministro Ricardo Lewandowski,
que reputava a legislação supérflua, na medida em que a matéria estaria já
disciplinada no próprio texto da Constituição Federal de 1988. De igual modo, o
decano do Tribunal, Celso de Mello, reconhece que a Carta repudia o exercício
abusivo do direito de informar, reconhecendo ao indivíduo lesado o direito a
ser indenizado por danos morais e materiais.
Ao final do julgamento, a maioria dos ministros do Supremo
Tribunal Federal julgou procedente a ADPF 130/DF, privilegiando a liberdade da
imprensa frente ao direito à imagem, à honra e à intimidade. Ao tempo em que
era proibida a censura prévia, permitia-se ao cidadão ofendido por eventual
matéria jornalística pleitear judicialmente direito de resposta e indenização
por danos.
Em julgado mais recente, o Supremo Tribunal Federal
deparou-se mais uma vez com o conflito entre o bloco da liberdade de imprensa e
o bloco do direito à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada — dessa
vez, nos autos da ADI 4.815/DF. Ajuizada pela Associação Nacional dos Editores
de Livros face o artigo 20 e 21 do Código Civil, era requerida a interpretação
conforme à Constituição dos dispositivos a fim de permitir a confecção e a
publicação de biografias sem a prévia autorização do biografado ou dos seus
responsáveis. Como os precedentes indicavam, novamente prevaleceria a liberdade
de expressão, rechaçando por unanimidade a necessidade de permissão. De acordo
com a relatora, ministra Cármem Lúcia, a biografia é um pedaço da história, e a
autorização, uma censura particular, devendo os erros e os danos serem
reparados e obterem direito de resposta assim como os termos da lei exigem.
Somente a ponderação diante da controvérsia em concreto
permite aos incisos IX e X do artigo 5° e aos artigos 220 a 223 coexistirem no
ordenamento ao lado dos incisos IV, IX e X do artigo 5° da Constituição Federal
de 1988. Tanto na ADPF 130/DF quanto na ADI 4.185/DF, vislumbrou-se a tendência
de privilegiar a liberdade de expressão, de criação artística e de produção científica
em detrimento a intimidade, privacidade, honra e imagem, sob o entendimento de
que o cidadão possui o direito de tomar conhecimento acerca dos fatos relativos
não só às condutas do governo e das autoridades, a fim de que possam exercer um
juízo crítico e livre sobre as práticas estatais, mas também à vida das
personagens públicas, devido à sua importância para a história e cultura da
sociedade.
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