Ivison Guilherme Teixeira Barbosa | Leonardo Barreto Ferraz Gominho
O proselitismo religioso do Congresso Nacional que põe em
risco a essência de nossa democracia
Ao analisar os projetos de leis apresentados ao Congresso
Nacional, sob uma ótica doutrinária e jurídica, percebe-se que não há
aplicabilidade da laicidade no Estado brasileiro.
Tratar em pesquisa da laicidade de um Estado “Cristão” é uma
tarefa tão árdua quanto admitir que uma instituição política soberana é mais
progressiva que qualquer outra que contém elementos religiosos.
O termo “laico” tem sua origem etimológica no grego laikós
que significa “do povo”. Ao se falar em Estado laico, trata-se de um estado do
povo em que a convicção de todos tem o mesmo peso. A laicidade consiste na
separação da religião e do Estado, um sem interferir no campo de atuação do
outro.
Dentro deste tema, trataremos da relação comum entre o
Direito Brasileiro e o Direito Canônico e ainda veremos o histórico das
Constituições Federais Brasileiras, inclusive a vigente, que versaram e versa,
respectivamente, sobre as liberdades religiosas e o estabelecimento da
Laicidade do Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Neste trabalho, centralizarei o estudo em cima do
proselitismo religioso do Congresso Nacional decorrente do abuso da liberdade
religiosa que vai de encontro ao Princípio Constitucional da Laicidade do
Estado Democrático de Direito Brasileiro e que põe em risco, inclusive, a
própria liberdade religiosa prevista na Constituição Federal vigente.
E, para verificar se a Laicidade do Estado realmente se
aplica, discorreremos sobre posicionamentos de representações políticas que
apresentam projetos de leis baseados em seus princípios religiosos que se
sobrepõem aos princípios democráticos e que sua aprovação recairá obrigações
sobre aqueles de religiões diversas que não seguem determinados princípios,
pondo em risco a liberdade religiosa e a essência de nossa Democracia.
Veremos também que a conservação e o aperfeiçoamento da
democracia moderna necessitam da laicidade na prática. Demonstrar que a
democracia depende da separação entre o Estado e a igreja, e para haver de fato
a liberdade religiosa, a democracia e a laicidade devem andar juntas.
Viver em laicidade consiste num regime de convivências em
que as instituições políticas estejam legitimadas pela soberania de um povo e
não por elementos religiosos, incluindo nestes, princípios e doutrinas.
Pretende-se mostrar, com este trabalho, o equívoco
relacionado entre a religião e a política do Estado Brasileiro que está pondo
em risco nossa Democracia com a prática do proselitismo religioso no Congresso
Nacional.
Em seguida, será tratada a relação do Direito Brasileiro com
o Direito Canônico.
RELAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO COM O DIREITO CANÔNICO
Fazendo um apanhado histórico, não podemos deixar de citar a
relação intrínseca entre o homem e a religião para o desenvolvimento das
primeiras civilizações e, consequentemente, do fenômeno jurídico que a priori
era a base de cunhos morais e religiosos.
Acerca da relação histórica entre o homem e a religião,
assim leciona Luciano Teixeira Odebrecht:
"Em todas as sociedades que a história documentou é possível
perceber a presença de alguma religião, quando não uma constituída com símbolos
e entidades, mas algo que tente justificar o injustificável, tentando entender
os mistérios da vida. Até nas sociedades que se consideravam atéias no período
da "cortina de ferro", durante a Guerra Fria, existiam religiões
atuando na clandestinidade. Um trabalho histórico que busque compreender
determinada sociedade não pode furtar-se de tratar dos fenômenos religiosos
presentes na época."
Desde o início da civilização que a religião já se encontra
presente na vida do homem e foi por meio dela que foram criadas e seguidas as
primeiras espécies de normas que regulamentavam a vida social.
Em relação ao nosso Direito Moderno, é sabido que a
estrutura jurídica brasileira tem influência clara da religião. Por exemplo, o
Direito Canônico que, sucintamente, influenciou tanto o Direito Latino, quanto
o Direito Brasileiro. Daí, surgiram as primeiras codificações modernas do
Ocidente e ordenamentos que passaram a reger as relações de um povo que seguia
um Deus, Líder, um Ídolo ou até mesmo Deuses.
Edson Luiz Sampel apresenta a influência que o Direito
Estatal sofreu do Direito Canônico: “Inegável é a influência que o direito
estatal sofreu do Direito Canônico. Exemplo disto, temos o fato de que em
várias faculdades, mesmo as públicas (a USP no Brasil é um caso), até meados do
século XX lecionava-se ao lado do direito romano, o Canônico”.
Acerca da recepção do Direito Canônico pelo Direito Civil
Brasileiro, também discorre Rafael Llano Cifuentes: “Ademais, é denso e
contínuo o aporte dado ao Direito Canônico pelo Direito Civil, como o
significado que o trabalho dos pandectistas e civilistas do século XIX teve à
ciência canônica”.
Transcorrida esta etapa será abordada a evolução histórica
das Constituições Federais Brasileiras, especialmente quanto a liberdade
religiosa e alaicidade.
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS BRASILEIRAS
QUANTO A LIBERDADE RELIGIOSA E A LAICIDADE
O processo sedimentar do direito à liberdade religiosa e da
separação entre Igreja e o Estado no Brasil se deu e se dá, teoricamente, de
forma paulatina, conforme se compreende diante das primeiras legislações e das
Constituições Federais que daí se seguiram.
A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824
Partindo-se do momento histórico da independência do Estado
brasileiro, o Brasil, por sua vez, tinha em seu ordenamento jurídico a
Constituição Imperial de 1824, outorgada em nome da “Santíssima Trindade”,
que trazia a Religião Católica Apostólica Romana como a oficial de nosso país.
Lá era legitimada dispositivos que continham características
do Direito Canônico, mas permitia aos seguidores de outras religiões realizar
cultos domésticos, ou particular em casas destinadas para isto, sem estrutura
de templos. Assim, permitia-se a liberdade de crença, em que pese as limitações
de culto.
Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos: “na época só se
reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se
com celebrar um culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo”.
Nesse mesmo sentido, também ensina Milton Ribeiro que:
"A Constituição do Império buscou cuidar da questão religiosa
de forma clara, adotando um certo tom liberal no tratamento da individualidade,
na medida em que seu foro íntimo encontrar-se-ia livre para a escolha
religiosa, o que não se verifica no espaço público, na medida em que a
manifestação exterior ainda é proibida e o próprio Estado, por sua vez,
encontrava-se atrelado a uma religião oficial, a católica."
Observa-se, portanto, que a nossa primeira Constituição
Federal possui um tom liberal quanto a liberalidade pessoal, em que pese o
Estado ter aproximação com o catolicismo.
O DECRETO 119-A
Após a Proclamação da República em 1889, o marechal Manoel
Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos
do Brasil, em nome da nação, baixou o Decreto n.º 119-A, que já em seu
primeiro artigo proibia a autoridade federal, assim como a dos estados
federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo
alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país,
ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou
opiniões filosóficas ou religiosas.
Já no segundo artigo se ressalta o avanço da liberdade de
culto.
Desta maneira, permanece a liberalidade dos cidadãos
brasileiros em seguir o culto que desejar.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1891
Com o advento da República se firmou as disposições da
liberdade religiosa no Brasil, especialmente por meio do § 3º, do artigo 72, da
Constituição Federal de 1891, que reza:
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a
estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á
liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem
exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.
Daí, por meio da Constituição dos Estados Unidos do Brasil
de 1891 foi consolidada a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do
Brasil um estado laico. No entanto, surgiram as primeiras tentativas da
aplicabilidade da laicidade no Estado Brasileiro.
Aldir Guedes Soriano assevera que “a
constitucionalização do novo regime republicano consolidou, através da
Constituição de 1891, a separação entre a Igreja e o Estado, fazendo do Brasil
um estado laico”.
Ainda, conforme José Scampini, a carta republicana
“Declarou a separação da igreja e do Estado, sobretudo através da instituição
do casamento civil, a introdução do ensino leigo, a secularização dos
cemitérios e a abolição de qualquer subvenção ao culto religioso”.
No mesmo viés, segue Fábio Dantas de Oliveira que
defende que “a Constituição Federal de 1891 representou um marco no que tange à
laicidade do Estado, pois todas as Constituições que lhe sucederam mantiveram a
neutralidade inerente a um Estado Laico, ainda que teoricamente”.
Este passo foi importantíssimo para assegurar a laicidade
das demais Constituições Federais.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934
A Constituição de 1934 manteve a disposição sobre a
liberdade religiosa e a separação entre igreja e Estado, porém com algumas
possíveis limitações. Desta forma, expõe Maria Emília Corrêa Costa que
“ainda assim, a liberdade religiosa poderia ser limitada em função da ordem
pública e dos bons costumes. Tais conceitos se prestaram a interpretação várias
e só foram abandonados no texto constitucional de 1988”.
O texto de 1934 foi rapidamente substituído pelo de 1937,
diante do Governo de Getúlio Vargas. Tal Carta Magna continuou a estipular o
Estado Laico Brasileiro.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1937
A Constituição Federal de 1937, outorgada durante um golpe
de Estado, dispunha sobre a vedação de auxílio estatal a cultos religiosos e
previa, em seu § 4º, do artigo 122:
Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e
à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 4º todos os indivíduos e confissões religiosas podem
exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da
ordem pública e dos bons costumes;
Há nessa Constituição, de maneira limitada, a autorização de
liberdade de culto, mas não há menção à liberdade de consciência e de crença.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1946
Voltou a dissertar sobre liberdade religiosa no rol de
direitos e garantias individuais a Constituição Federal de 1946[19], que
disciplinava em seu § 7º, do artigo 141:
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
§ 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem
a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão
personalidade jurídica na forma da lei civil.
Após a abertura política se chega ao Regime Militar com a
Constituição Federal de 1967 já restritiva de direitos que em 1969 foi mais
ainda restrita.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967 E A EMENDA DE 1969
A Constituição Federal de 1967, em vigor durante a
ditadura militar, dispôs sobre a liberdade religiosa, em seu § 5º, do artigo
153:
Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:
(...)
§ 5º É plena a liberdade de consciência e fica assegurado
aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem
pública e os bons costumes.
Contudo, é perceptível que, na prática, assim como no
período de vigência da Constituição de 1937, a liberdade religiosa poderia ser
restringida nos casos em que fosse caracterizada como manifestação de caráter
ideologicamente contrária ao poder vigente.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Constituição Federal de 1988, após todas essas
transformações ocorridas no Estado contemporâneo, dispõe sobre a liberdade
religiosa no rol de direitos e garantias fundamentais em seus incisos VI e VII,
do artigo 5°:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;
Desta forma, na literatura, nota-se a liberdade religiosa
que consiste na não proibição e, consequentemente, interferência do Estados nas
relações individuais de crença, fazendo valer-se assim a Democracia para o
âmbito religioso e as características de um Estado Laico.
Ademais, o texto constitucional vigente também traz
algumas vedações aos entes federativos em seu inciso I, do artigo 19, prevê:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei,
a colaboração de interesse público;
Dispositivo este que reafirma o princípio da laicidade do
Estado Brasileiro que trata da separação entre o Estado e a Igreja.
Todavia, decorridos mais de 100 (cem) anos, desde a
Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, momento inicial da
contemporaneidade das Constituições Federais Brasileiras, a qual estabeleceu a
laicidade do Estado brasileiro.
Após será tratado o importante princípio da laicidade e a
democracia.
PRINCÍPIO DA LAICIDADE E A DEMOCRACIA
As liberdades laicas, enquanto garantias fundamentais dos
cidadãos, consistem na limitação à atuação administrativa, legislativa e
judicial do Estado. O princípio da laicidade previsto pela junção do inciso VI,
do artigo 5° e do inciso I, do artigo 19, da Constituição Federal vigente
estabelece a separação e independência entre as instituições religiosas e o
Estado, bem assim assegura a inviolabilidade de consciência de crença.
No que diz respeito a independência do Estado em relação a
religião, discorre José Joaquim Gomes Canotilho: “A laicidade do Estado
reconhece que o ente estatal deve ser independente e autônomo em relação a
qualquer religião, crença ou igreja”.
Essa independência autônoma do Estado está ligada
intrinsicamente com a relação profunda entre a laicidade e a democracia, uma vez
que para esta prevalecer, depende impreterivelmente daquela, e vice-versa, para
assim ser valorado os direitos e as liberdades, inclusive a religiosa.
Acerca disso, já trata Aldir Guedes Soriano que a
laicidade do Estado está vinculada diretamente à democracia, pois “não há
direitos civis e políticos sem democracia, nem tampouco liberdade religiosa. A
democracia é o substrato que permite o exercício da liberdade religiosa e,
também, dos demais direitos fundamentais da pessoa humana”.
Vale ressaltar que as liberdades religiosas, de crença, de
culto e a sua tolerância são garantidas e aceitas graças a laicidade do Estado
e não a sua oposição. Portanto, o Estado Laico é o que garante a liberdade de
expressão em sentido amplo e abrangente envolvendo opiniões sobre religiões,
sexualidade e reprodução, comportamentos, convivência social, ideologias de
gênero, aborto, dentre outras.
É esta liberdade garantida pela laicidade do Estado que deve
estar presente nas representações políticas levando em consideração que estas
existem devido ao Estado Laico Democrático de Direito em que vivemos hoje,
teoricamente, ou que deveríamos viver na prática.
A LAICIDADE E A DEMOCRACIA BRASILEIRA EM XEQUE
O Brasil, atualmente, é um Estado Laico em crise que possui
suas liberdades à margem do risco, uma vez que há representantes políticos
impondo suas convicções fundamentalistas, religiosas e doutrinárias por meio de
projetos que, em sua elaboração, a ética e os valores das instituições
religiosas orientam o posicionamento na atividade parlamentar, ferindo, assim,
a laicidade do Estado Democrático de Direito.
Sobre o assunto, diz Roberto Blancarte: “Os legisladores
e funcionários públicos, mesmo que tenham suas crenças pessoais (religiosas ou
de outro tipo), não devem nem podem impô-las à população. Legisladores e
funcionários devem responder essencialmente ao interesse público, que pode ser
distinto de suas crenças pessoais”.
A título de exemplo, o que muito se vê são debates políticos
a respeito da reprodução e da sexualidade, da ciência e das novas tecnologias,
aborto, ideologias de gênero, dentre outras no sentido de conjugá-las com os
valores morais e religiosos o que impossibilita a separação lógica entre a
religião e o Estado, ferindo assim a democracia do Estado brasileiro.
Atualmente se tem percebido o quão é falha a aplicabilidade
da prática representativa laica pelos representantes políticos. O que muito se
vê são representantes do Poder Legislativo apresentando Projetos de Lei no
Congresso Nacional com base nas doutrinas e princípios religiosos que lhes são
convenientes em relação a sua crença pessoal e a crença da fonte religiosa que
o apoia na clara motivação eleitoreira de classes, impossibilitando a separação
lógica entre a religião e o Estado, a fim de manter sua “legitimidade” pondo em
risco a Democracia Moderna Brasileira.
Explica Roberto Blancarte que:
Os principais riscos que preocupam a Democracia Moderna e,
em consequência, o Estado Laico, consistem em buscar a legitimidade do poder
político em uma fonte que não é aquela que formalmente origina a autoridade do
Estado (a vontade do povo) e socorrer-se de uma instituição religiosa para
buscar a legitimidade onde não existe, debilitando, assim, a própria autoridade
política, consequentemente ofendendo o poder dos cidadãos.
A obrigação do Estado é garantir os direitos de todos,
incluindo das minorias, especialmente de serem livres e praticarem ações de
acordo com suas crenças e preferências. A imposição doutrinária feita por
qualquer representante político tira daqueles que não são de acordo a liberdade
de praticarem suas ações.
Em suma, os legisladores não estão em seu cargo a título
pessoal e devem, mesmo diante de seu direito de ter suas convicções, priorizar
o interesse público no geral em suas funções e responsabilidades.
PROSELITISMO RELIGIOSO POR MEIO DE PROJETOS DE LEI
Diante de tudo o que foi explanado nos vem uma questão. Sob
a análise da Carta Magna de 1988 e do atual comportamento do Congresso
Nacional, especialmente por meio dos últimos Projetos de Lei apresentados nos
últimos anos, o que legitima a existência de uma “bancada religiosa cristã” que
impõe suas ideologias religiosas específicas a grandes grupos de religiões
diversas e a grandes grupos não religiosos do Brasil? É coerente e cabível tais
imposições diante da laicidade do Estado Brasileiro defendida pela Constituição
Federal de 1988?
Para a população brasileira, o atual comportamento do
Congresso Nacional relacionado às decisões das normas jurídicas, causa medo e
insegurança uma vez que Projetos de Lei estão sendo apresentados com bases em
religiões específicas, havendo uma complexa relação entre a igreja e o Estado,
excluindo-se o caráter democrático, desconsiderando classes sociais diversas
como aqueles que seguem outras religiões, ateus e agnósticos. Nesta linha de
raciocínio também segue Maria das Dores Campos Machado:
Do ponto de vista da sociedade civil, a presença de atores
religiosos nas casas legislativas preocupa uma vez que é um espaço de
deliberação das normas que vão reger as relações de atores sociais ateus,
agnósticos ou das mais diferentes religiões em esferas tão distintas como o
mundo do trabalho, da família, da política e etc.
Na mesma linha de raciocínio, também segue Edlaine de Campos
Gomes:
A participação política e a efetiva atuação de sujeitos e
grupos religiosos nas instâncias decisórias do país exemplificam a complexidade
das relações entre religião e Estado na contemporaneidade. Nesse cenário
cultural, o espaço público constitui-se como lócus no qual ocorrem
enfrentamentos entre distintos atores sociais, movidos por interesses e valores
conflitantes, que expressam disputas e relações de poder cujos impactos se
fazem sentir sobre a tramitação de projetos de lei (PL).
É necessário citar alguns projetos dentro de uma arena cada
vez mais conservadora frente às temáticas da política, da criminalização da
homofobia, sobre o aborto etc.
Baseado em doutrinas religiosas que vão de encontro às
concepções da maioria dos cidadãos brasileiros, podemos destacar o Projeto de
Lei n.º 6.314/2005 de autoria do deputado Hidekazu Takayama:
Trata de um projeto de lei na Câmara dos Deputados que quer
dar imunidade aos crimes de injúria e difamação para as opiniões de líderes
religiosos e de professores no exercício de suas atividades. Ou seja, uma vez
aprovado esse projeto, pastores poderão falar o que quiserem no exercício do
ministério, sem serem responsabilizados por crime de difamação ou de injúria.
O que mais se percebe neste projeto é a tentativa de dar
liberdade à agressão moral que configura injúria e difamação, que, por sua vez,
ferirá a dignidade daqueles que não são de acordo com as convicções de
determinado grupo religioso específico. Religiosos, no geral, sejam eles de
direita ou de esquerda, devem ser cidadãos. E como cidadãos eles têm seus
direitos e seus deveres, assim como qualquer outro grupo social.
Outro exemplo é o Projeto de Lei n.º 6.583/2013, de
autoria do deputado Anderson Ferreira:
O texto deste Projeto relacionado ao Estatuto da Família,
reconhece família como “a entidade familiar formada a partir da união entre um
homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus filhos”.
Este projeto surgiu da bancada evangélica de uma análise
própria de seus conceitos bíblicos.
Nos dizeres, o Deputado Glauber Braga:
“o substitutivo é discriminatório e preconceituoso e retira direitos de milhões
de brasileiros que não se enquadram no conceito de família aprovado”.
Aqueles que não se enquadram no texto/conceito de família
aprovado, ou seja, as minorias, são vítimas da atuação política doutrinária e
religiosa contrária a demandas dos movimentos sociais legítimos perante a
laicidade em conjunto com direitos. Edlaine de Campos Gomes, destaca:
A inserção na esfera pública através da participação
política representa uma transformação marcante no quadro político nacional, com
uma participação cada vez maior de evangélicos, compondo uma bancada influente
na definição de certas votações. Apesar disso, a presença de sujeitos de
identidade católica, nessas mesmas instâncias, assinala a existência de linhas
de força que podem ser confluentes na atuação política contrária a demandas de
reconhecimentos de determinados movimentos sociais, principalmente, aqueles
dedicados à defesa das minorias sexuais.
O Deputado Glauber Braga destacou o projeto de lei e
pediu votação em separado de uma emenda do deputado Bacelar (PTN-BA) que define
entidade familiar como sendo o “núcleo social formado por duas ou mais pessoas
unidas por laços sanguíneos ou afetivos, originados pelo casamento, união
estável ou afinidade”.
Acredita-se esta ser a redação mais viável, uma vez que
afasta qualquer tipo de discriminação e inclui no Estatuto diferentes entidades
familiares, priorizando a liberdade de escolha para constituir a família de
acordo com a vontade de cada um. Porém, a medida foi rejeitada, inclusive, pela
bancada evangélica, por ter sido levado em conta princípios religiosos.
Ainda seguindo nestas mesmas linhas sobre direitos sexuais.
Acima destes direitos está a bíblia? É justo num Estado Laico Democrático de
Direito?
O Projeto de Lei da Câmara nº. 122/2006, arquivado em 2015,
de autoria da Deputada Iara Bernardi, visava criminalizar a discriminação
motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa
discriminada. Se fosse aprovado, iria alterar a Lei de Racismo para incluir
tais discriminações no conceito legal de racismo, que abrange, atualmente, a
discriminação por cor de pele, etnia, origem nacional ou religião. Em termo
técnico, segundo a explicação do tema dado pelo Senado Federal,
Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, o
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e o Decreto-Lei
nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) para
definir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo,
orientação sexual e identidade de gênero. Estabelece as tipificações e delimita
as responsabilidades do ato e dos agentes.
O motivo da não aprovação do Projeto em discussão está
ligada intrinsecamente à resistência intensa da bancada religiosa evangélica do
Congresso Nacional que, diante de seus posicionamentos morais religiosos
distintos, atropelam a democracia do Estado Brasileiro que, além de outros
direitos, assegura também a qualquer cidadão o Direito de não ser discriminado
por motivos que não interfiram no direito dos outros. Acerca do assunto e em relação
àqueles que propagam o proselitismo religioso, discorre Marcelo Natividade:
A atuação desses sujeitos no espaço público está submetida
aos interesses na reprodução da moral, neste caso sexual, defendida na esfera
religiosa. Esta é a motivação para a mobilização contrária à aprovação da
criminalização da homofobia no pais, ora invocando argumentos laicos, ora
visões de mundo religiosas.
Desta maneira, na época da tramitação do Projeto, disse
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
O PLC n.º 122/06 terá, inicialmente, um importante efeito
simbólico: declarar à sociedade que o Estado Brasileiro não tolera a
discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero, concretizando
legislativamente a promessa constitucional de uma sociedade livre, justa e
solidária que condena discriminações preconceituosas de qualquer espécie (art.
3º, inc. IV, da CF/88).
Inúmeras foram as tentativas de incluir o termo “orientação
sexual” no texto da Constituição Federal afim de solidificar aos homossexuais o
direito de ser cidadão, mas posicionamentos conservadores prevaleceram. Assim,
Marcelo Natividade expõe mais uma vez que:
Entre os anos de 1995 e 2007, são apresentados inúmeros PLs
que buscam incluir a palavra orientação sexual no texto da Constituição,
alterando a Lei 7.716/1989. O objetivo é situar a discriminação por orientação
sexual ao lado de crimes de raça, etnia, sexo e gênero. Observa-se que, através
de distintas iniciativas, a questão se coloca em termos da garantia da
cidadania às minorias sexuais. Desde o início da sua trajetória, a demanda
enfrenta oposição religiosa, envolvendo a reprodução de estigmas e a desqualificação
dos homossexuais por setores conservadores.
Diante de tamanha resistência e desrespeito à laicidade do
Estado Brasileiro, este Projeto de Lei foi arquivado no ano de 2015. Em torno
da criminalização da homofobia, estão presentes, como visto, argumentos morais
que desqualificam a homossexualidade e fundamentam o proselitismo religioso que
busca conter a aceitação social do comportamento homoafetivo. Mas é sabido que
o Estado brasileiro não pode se omitir perante violências praticadas contra os homossexuais.
Neste sentido, espera-se que seja levado em consideração a discriminação em
razão da orientação sexual e identidade de gênero no Projeto de Lei do novo
Código Penal nº 236/2012.
Mais um projeto de lei inerente ao tema é o Projeto de Lei
n.º 5.069/2013, de autoria do Deputado Eduardo Cunha, que diz:
É um projeto que cria uma série de empecilhos para o direito
constitucional das mulheres vítimas de violência sexual realizarem aborto na
rede pública de saúde. Dificulta ainda mais o acesso das mulheres aos
procedimentos abortivos, inclusive aos que já estão legalizados.
É intensa a influência do discurso religioso proselitista
nos debates públicos sobre questões sociais críticas, como é o caso o aborto.
Nestas mesmas linhas discorre Edlaine de Campos Gomes que:
A “vida é um dom de Deus” é a premissa na qual se funda o
discurso parlamentar-religioso contrário à descriminalização do aborto. Essa
convicção une a chamada “bancada evangélica” e o grupo de parlamentares
católicos – especialmente identificados com a vertente carismática.
Vale ressaltar que neste projeto considerações bíblicas foram consideradas como o seguinte: “Antes de te formar no ventre materno, Eu
te escolhi; antes que saísses do seio da tua mãe, Eu te consagrei”. (Jeremias
1:5).
Em momento algum foi levado em consideração posicionamentos
da medicina acerca do assunto ou foi feita qualquer consulta pública às
mulheres.
Em entrevista ao site da Globo para a revista Galileu, a
respeito das controvérsias em relação à vida, a ativista, advogada e militante
feminista, Isadora Penna, disse que: “O conceito de quando começa a vida é
muito polêmico. Para a religião, para a ciência. Mas a vida da mulher não é
nada controversa, não é nada polêmica. A vida da mulher está lá”.
Além desses Projetos de Lei apresentados pela bancada
extremista do Congresso Nacional que, por meio da legitimidade que lhes foi
dada, vão de encontro à laicidade do Estado pondo em risco a democracia, também
foram apresentados textos intitulados como “Cura Gay”, a dita Proposta de
Emenda Constitucional n.º 171/1993, que usa passagens bíblicas para
justificar a redução da maioridade penal, e, ainda, barraram o trecho que trata
do ensino da ideologia de gênero nas escolas no Plano Nacional de Educação.
Destacamos que estes Projetos de Leis apresentados são
simplesmente exemplos das temáticas que estão sendo confrontadas em que se
figuram de um lado uma banca extremista que tenta legitimar seu extremismo por
meio de leis e de outra banda os demais cidadãos brasileiros.
Este estudo tratou da laicidade do Estado brasileiro que se
encontra diariamente ameaçada perante o proselitismo religioso praticado por
representações políticas no Congresso Nacional.
Ancorado em retrospectos históricos, discorremos acerca da
relação da Igreja com o Estado, a qual já vigorou no Brasil e, posteriormente,
por meio das Constituições Federais Brasileiras que tiveram como a pioneira em
tratar da separação entre a Igreja e o Estado a Constituição dos Estados Unidos
do Brasil de 1891, fazendo do Brasil um estado laico.
No entanto, é perceptível o quanto que o ordenamento
Jurídico brasileiro está distante da laicidade também consolidada pela própria
Constituição Federal de 1988, uma vez que representantes do Poder Legislativo
têm apresentado projetos de lei baseados em princípios religiosos específicos
que se sobrepõem aos princípios democráticos.
Vimos que os impactos do poder religioso na tramitação de
Projetos de Lei são sentidos por meio da forte atuação de sujeitos portadores
de valores religiosos que, por meio de suas ações, objetivam procrastinar as
discussões e a tramitação de propostas contra suas visões religiosas de mundo.
A Exemplos deste proselitismo, tratamos do Projeto de Lei
n.º 6.314/2005 que visa dar imunidade aos líderes religiosos acerca dos crimes
de injúria e difamação; o Projeto de Lei n.º 6.583/2013 que trata do “Estatuto
da Família” que traz um novo conceito de família que defende que sua formação
deva ser considerada apenas diante da união de um homem e uma mulher, conceito discriminatório
que exclui outras modalidades de família que não são de acordo com os
princípios morais e religiosos cristão os quais seguem os legisladores; o
Projeto de Lei da Câmara nº. 122/2006, arquivado em 2015, que visava
criminalizar a discriminação motivada pela orientação sexual ou na identidade
de gênero da pessoa discriminada, ou seja, a homofobia; e, por fim, tratamos
também do Projeto de Lei n.º 5.069/2013 que visa dificultar o aborto para
mulheres vítimas de violência sexual e até mesmo aquelas situações já
regulamentadas por lei.
Como vimos, todos estes projetos sofrem uma grande
influência de parlamentares religiosos que utilizam de seus conceitos morais
para impor obrigações ou negar direitos àqueles de religiões diversas ou não
religiosos. E diante deste proselitismo, constatamos que as classes mais
prejudicadas são as que já se encontram diante da vulnerabilidade social, ou
seja, as minorias.
Na mesma sequência, constatamos que os legisladores por mais
que tenham suas crenças religiosas individuais, não devem e, diante da laicidade,
muito menos impô-las à população, uma vez que esta não é formada apenas por
pessoas que compactuam ou tem afinidade com a religião tida como base para o
Projeto de Lei, mas sim por pessoas de outras religiões e pessoas não
religiosas também.
Assim, percebemos que os embates focados neste estudo
mostram que as tensões ocorrem não apenas nas apresentações de Projetos ou
oposições a outros, mas nas ações e reações que ultrapassam os limites do
legislativo.
Constatamos que valores religiosos fundamentalistas no poder
público com a utilização de passagens bíblicas, princípios e doutrinas
religiosas, estão em oposição à construção de um Estado Democrático de fato. A
consolidação da laicidade, além de contemplar liberdades religiosas, devem se
sustentar na desvinculação entre a Igreja e o Estado.
A partir daí, percebemos que, apesar da relação que já
existiu entre o Estado e a religião, a conservação e o aperfeiçoamento da
democracia moderna necessita da laicidade.
Foi demonstrado que a democracia depende da separação entre
o Estado e a Igreja, e para haver a liberdade religiosa, a democracia e a
laicidade devem andar juntas. Viver em laicidade consiste num regime de
convivências em que as instituições políticas estejam legitimadas pela
soberania de um povo e não por elementos religiosos, incluindo nestes,
princípios e doutrinas.
E, por fim, vale salientar que a responsabilidade de tudo
que ocorre hoje no Brasil acerca deste proselitismo religioso do Congresso
Nacional cumulado com assédio religioso de grande proporção é responsabilidade
nossa.
Se o próprio legislador não é capaz de visualizar a agressão
feita à laicidade do Estado brasileiro, são os operadores do direito que
necessita agir com urgência. Afinal, quando ingressamos na faculdade de Direito
queremos um mundo melhor, principalmente no tocante à liberdade e igualdade de
todos, em suma, uma sociedade mais justa.
Cabe a nós dilacerar o preconceito e pôr empoderamento
social em seu lugar nas pessoas. É necessário nos atentarmos que vivemos num
Estado laico e na hora de julgar, administrar e, principalmente, legislar é
necessário priorizar o afastamento dos dogmas religiosos que cada um segue.
Precisamos atuar para
assegurar direitos e garantias iguais para todos. Esta é a única forma para se
fazer justiça de fato, com ênfase às minorias prejudicadas, pois, acredita-se
que o Estado laico protege melhor as minorias democraticamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário