"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Defeito Congênito.

Faz pouco mais de cem anos o Brasil vive uma crise continuada. Crise de poder? Crise política? Crise de consciência? Crise econômica? Crise social? Crise de identidade? Crise moral? Sem duvida, uma crise integrada por aspectos diversos.


Elementos que não se manifestaram todos ao mesmo tempo, mas cada um ou alguns deles provocando o aparecimento dos demais. No seu conjunto, trata-se de uma só e mesma conjuntura, um contexto nacional de crise.

A partir de um determinado momento, dificilmente precisável, essa crise iniciada a partir da instauração da república assumiu condição de pano de fundo da vida brasileira. Tornou-se um fenômeno crônico, tal como as doenças que, ora intensificam os seus sintomas, ora parecem regredir e deixar um pouco de alívio ao organismo doente, para depois voltarem a recaída.

Que a crise brasileira surgiu com a república, e provavelmente como uma conseqüência direta e inevitável de sua instalação, parece não haver a menor dúvida. Trata-se de algo que pode ser aferido e confirmado objetivamente. Para examinar apenas um aspecto dessa constatação, basta verificar que durante os seus últimos 50 anos (1840-1889) o Império conseguira manter inalterada a taxa de inflação na marca de 1,58%. No entanto, apenas 45 dias depois de instaurada a república aquela marca havia saltado de 1,58% para 11% anuais. E apenas um ano depois (15.11.1890) a marca inflacionaria já se elevara para 41% ao ano.

Seria infrutífero, além de pouco honesto, tentar malabarismos de raciocínio, ou erigir sofismas pseudo-tecnicos com a finalidade de isentar o regime republicano por esse abrupto e violento institucionalizar do processo inflacionário. Mais impróprio ainda, seria pretender buscar argumentos tendentes a responsabilizar por ele o Império, como se tivesse havido algo assemelhado ao que, seguram artificialmente uma situação econômica insustentável até o final de seu mandato, e deixam os sucessores com uma verdadeira "bomba-relógio" nas mãos.

Em primeiro lugar, o Império ou o gabinete do Visconde de Ouro Preto não estavam "em final de mandato". Não esperavam e nem contavam serem derrubados por um - inusitado - golpe militar. Cumpre registrar, alias, que o movimento republicano jamais fincara raízes na alma popular. Tanto que no dia 15 de Novembro tinha somente 2 (dois) representantes num Parlamento de 160 membros. Por outro lado, embora a Constituição não contivesse cláusulas pétreas, jamais houvera na Assembléia Geral - ou, em qualquer outro foro - proposta alguma de mudança do regime.


Acrescente-se que Ouro Preto acabara de retornar de Paris, onde obtivera integral apoio da comunidade financeira internacional para um amplo e profundo projeto de modernização da economia brasileira. Projeto que - entusiasticamente aprovado pelo imperador D. Pedro II - incluía até mesmo desapropriação de terras para assentamento de ex-escravos. Logo, não há como se cogitar de "bomba-relógio" a ser deixada nas mãos de "sucessores".

Em segundo lugar, é preciso ter em mente que não fora por um ou dois anos que a marca inflacionária do Império se mantivera estabilizada em 1,58%: foram 50 ANOS seguidos. E ninguém consegue manter artificialmente uma economia por todo esse tempo. Mormente, com o crescimento que se verificou ao longo do período.

Na verdade, o Império segurara a marca inflacionária de uma maneira muito natural e tranqüila. Na Monarquia a inflação não era fundamental, e isso, simplesmente, porque praticamente inexistia.


Por qual razão não existia é outra questão, mas que pode ser resumidamente explicada com base em algo estranho aos dias de hoje, e particularmente aos padrões da política republicana: o senso de honra pessoal que integrava o espirito e o meio-ambiente do regime. Chefe de governo algum, ministro algum e muito menos o Imperador se conformariam em deixar circular padrão monetário que, a prática, em termos de poder aquisitivo, representasse menos do que seu valor nominal expresso. Pois, isso eqüivaleria a mentir ao Pais, e a mentira não coadunava com o senso de honra pessoal.

É certo que o Império vinha suportando dificuldades desde meados da Guerra do Paraguai. A vitória militar correspondeu a derrota econômica. O Brasil se exauriu para enfrentar uma nação que se preparara durante quinze anos para uma guerra que lhe era transcendental destinada a viabilizar o Império do Prata sonhado por Solano Lopes.

A tarefa estava além da estrutura militar e econômica brasileira, o que explica, aliás, a demora do Brasil em poder revidar os primeiros ataques. Não havia exército estruturado e permanente.


Tudo teve que ser criado tão depressa quanto possível, com os recursos que houvesse. Esta, também, a razão dos famosos batalhões de "Voluntários da Pátria", assim como o papel fundamental desempenhado pela Guarda Nacional - instituição de natureza civil - ao longo de toda campanha.


De notar, enfim, que a desproporção no preparo dos beligerantes para o conflito era tão grande que, o pequeno Paraguai não só tomou a iniciativa de desencadeá-lo, como infligiu pesadas derrotas militares ao nosso País: a "tragédia de Curupaiti" até hoje pesa na nossa memória militar. Além disso ocupou, por longos períodos, vastos territórios brasileiros, argentinos e uruguaios.

O simples fato, mesmo de o Paraguai haver sustentado durante quase seis anos essa guerra contra o Brasil, Argentina e Uruguai, já é suficiente para atestar ou grau de sua preparação para a campanha.

Exaurido pela refrega, nem por isso o Império se afastou da sua linha de estabilidade econômica e financeira: a marca inflacionaria continuou nos 1,58% anuais.

Vale lembrar, a propósito que, na década de 1870 - já terminada a guerra e enfraquecido o País - o Barão de Rothschild, então um dos maiores banqueiros do mundo, deu como dote de casamento às suas duas filhas, exclusivamente, títulos da dívida brasileira, por serem os mais sólidos e rentáveis do mercado internacional.

Tudo isso, no entanto, teve suas contrapartidas, e uma delas serviu eventualmente como um dos ingredientes da satisfação militar que se manifestou mais de 15 anos depois, nos tempos que antecederam a republica: como demandava grande esforço o pagamento dos soldos e vencimentos, para não onerar o orçamento as promoções no funcionalismo militar e civil não eram feitas, mesmo quando já adquirido o direito a elas. Oficiais e funcionários de todas as patentes e referencias tinham que aguardar por prazos muito maiores do que os normais, o acesso a níveis mais elevados nas respectivas carreiras.

De qualquer modo, a Monarquia manteve invariáveis o valor e o poder aquisitivo da moeda, durante 50 anos e até o seu último dia. A explosão inflacionária no próprio 15 de Novembro, portanto, foi de exclusiva responsabilidade da republica. Dois exemplos muito claros das razoes pelas quais essa explosão ocorreu, dando inicio ao processo que perdura até hoje, estão na ética - ao que tudo indica, psicologicamente institucionalizadora, naquele momento - segundo a qual as primeiras autoridades republicanas encararam e continuaram depois encarando o gasto do dinheiro publico:

* Ao subir ao trono em 1840 o imperador D. Pedro II, a Assembléia Geral do Império fixou-lhe uma "lista civil" de 800 contos de reais anuais. Essa "lista civil" continha o rol de todas as suas despesas, com a manutenção da Família Imperial - a época, somente ele mesmo e duas irmãs - assim como com a manutenção dos dois Palácios Imperiais, Rio de Janeiro e Petropólis, seus respectivos serviços e funcionalismo. Esses 800 contos de reis permaneceram os mesmos durante os 50 ANOS seguintes - até 15 de Novembro de 1889 - apesar de que a arrecadação geral do Estado elevara-se 15 (quinze) vezes em termos reais durante esse período. Relembre-se, inexistia desvalorização concreta da moeda com a inflação anual de 1,58%.

Entretanto, instaurada a Republica, no próprio dia 15 de Novembro de 1889 o governo provisório estipulou o salário de 1.400 contos de reis anuais para o Marechal Deodoro - quase o dobro do que percebia o Imperador na sua "lista civil" - e, sem obrigação de arcar com o custeio de palácio algum, ou dos respectivos serviços e funcionalismo!

* No dia seguinte a instauração do novo regime, quando o Imperador aguardava a bordo do navio "Alagoas" o momento de partir para o exílio, as autoridades republicanas mandaram levar-lhe 5.000 contos de reis (o equivalente ao preço de 4.500 quilos de ouro, ou R$ 47.430.000,00 - Quarenta e sete milhões, quatrocentos e trinta mil reais - em 31 de dezembro de 1994). Escusado seria dizer que, apesar de partir para o exílio, velho, doente, e sem nada no bolso, D. Pedro II recusou o oferecimento.


Estes dois exemplos são significativos da ética republicana em relação ao dinheiro público e perfeitamente apropriados para que se entenda - ao menos na sua maior parte - as causas da implantação do processo inflacionário entre nos.

Entretanto, como já se observou, o desenvolvimento da crise brasileira não se fez através de um movimento continuo e linear, sobretudo no que diz respeito a espiral inflacionaria. Houve recuos nessa espiral com o ministro Joaquim Murtinho (Fazenda, Governo Campos Salles), depois com os ministros Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões (Planejamento e Fazenda, governo Castelo Branco), Delfim Netto (Fazenda, governo Médici), Dílson Funaro (Fazenda, breve período do "Plano Cruzado" no governo Sarney) e Fernando Henrique Cardoso / Ciro Gomes (Fazenda, governo Itamar Franco). Mas, todos esses períodos foram precedidos de nefastas investidas do "dragão" inflacionário.


Portanto, desde a institucionalização desse processo pela república, o quadro tem sido o conhecido "avançar um passo, recuar dois, três, ou quatro".

Cálculos induvidosos permitem afirmar que, de 15 de Novembro de 1889 a 31 de Dezembro de 1994 - 106 anos - o nosso dinheiro se desvalorizou cerca de 18.000.000.000.000% (dezoito trilhões por cento); entretanto, de 1840 a 1889 - 50 anos - nosso dinheiro se desvalorizara em somente 119% (cento e dezenove por cento)! Alias, na sua edição de 24.09.91, o jornal "O Estado de São Paulo" noticiava que, nos 101 anos ate então decorridos desde a instauração da nossa república, a media dos preços a nível mundial havia se elevado 23 (vinte e três) vezes; no Brasil essa elevação havia sido de 32.000.000.000.000 (trinta e dois trilhões) de vezes!

E possível afirmar que, sem qualquer exagero ou destempero verbal, o contexto geral e crônico da crise brasileira traduz uma espécie de "crime continuado" das sucessivas administrações republicanas contra as energias do Pais e de seu povo.


Em contrapartida, isso leva a concluir a perenidade, quase inesgotabilidade de suas energias. Apesar dessa nefasta ação continuada o Pais cresce sempre, embora o povo se torne cada vez mais pobre. Por exemplo, o salário mínimo de R$ 70,00 em dezembro de 1994, correspondendo a somente 26,7% do primeiro salário mínimo, instituído em 1940.


Este último dado, aliás, já permitiria concluir, em acréscimo a quanto já se demonstrou, que nenhum aumento de salários populares em geral contribuiu para a inflação republicana. Ao contrario, esse eventual aumento de salário real jamais aconteceu sob o atual regime, e não só a partir de 1940, mas antes.

Em complementação, resta incluir em todo este quadro um dado definitivo: durante os 50 anos decorridos entre 1840 e 1889, o menor salário pago no Pais - ao trabalhador braçal e sem qualquer qualificação - foi de 25.000 reis; ou seja, o preço de 22,5 gramas de ouro ao preço de mercado (hoje, preço de Bolsa).

Registre-se que, como tudo o mais, o preço do ouro também se manteve praticamente inalterado nesse período. No entanto, em 31 de Dezembro de 1994, o salário mínimo de R$ 70,00 só seria suficiente para comprar pouco mais de 6 gramas de ouro; isto e, decorridos 106 anos de sua instauração, o regime republicano só conseguiu dar aos assalariados brasileiros de mais baixo nível um salário quase quatro vezes menor do que recebiam no Império!


Uma conclusão a mais decorrente desse dado, e a de que o Império não manteve durante 50 anos a marca inflacionária estável e praticamente inexistente porque pagasse menores salários: ao contrario, ganhava-se muito mais.

Assim, nem a estabilidade monetária do Império se deveu a baixos salários, nem a inflação da republica se deveu a altos salários pagos ao povo. O óbvio espanca qualquer sofisma: as causas de uma e de outra residiram e residem, respectivamente, no escrúpulo em relação a coisa pública, ao dinheiro público: a já aludida questão do senso de honra pessoal.

A conclusão aponta para a circunstancia de nas monarquias haver uma noção muito clara sobre o que é da Nação, cujo representante máximo - por toda a sua vida - é o Monarca e após ele, seu filho ou parente mais próximo. Enquanto que nas republicas essa noção inexiste, por desnecessária, porque os representantes da Nação o são transitoriamente, sem qualquer vinculo pessoal ou familiar com o cargo.


A única explicação possível, em suma, é a de que na república o dinheiro e o patrimônio publico só teoricamente são do povo: na prática, estão a disposição de quem o representa temporariamente. E depois que deixa de representá-lo, não tem preocupações com o que será transmitido ao seu sucessor, não ligado por laços de família e, em geral, adversário ou inimigo político.

Com relação ao menor salário do Império e os sucessivos salários mínimos da república, um último dado merece ser considerado: durante todo o período de 1840 a 1889, a diferença entre o menor salário (braçal, 25.000 reis) e o maior (senador, 300.000 reis) era de 12 vezes. Hoje, a diferença entre o salário mínimo (R$ 100,00) e o de senador (R$ 14.000,00, com tudo incluído)
- e há muitíssimos outros maiores - é de 140 vezes!

Todo esse quadro de descalabro em que vivemos hoje foi iniciado com a obra dos "ininteligentes" - como os classificaria Monteiro Lobato em artigo celebre (1918) - que fizeram a república para imitar os Estados Unidos, esquecidos das diferenças fundamentais de origem entre brasileiros e norte-americanos.

É tempo, enquanto há tempo, de voltarmos as nossas origens e ao nosso caminho natural. Até mesmo por questão de "ecologia humana".

por: Paulo Napoleão Nogueira da Silva
Doutor em Direito Constitucional pela PUC de São Paulo

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