"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Poder Constituinte



Poder Constituinte Originário, que é o poder ilimitado e inovador que cria uma nova constituição, que por sua vez cria um Estado totalmente novo, caracteriza-se por ser inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado.

Nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: 



“ O reconhecimento de um poder capaz de estabelecer as regras constitucionais, diverso do de estabelecer regras segundo a Constituição, é, desde que se pretenda serem aquelas superiores a estas, uma existência lógica. 


A superioridade daquelas, que se impõe aos próprios órgãos do Estado, deriva de terem origem distinta, provindo de um poder que é fonte de todos os demais, pois é o que constitui o Estado, estabelecendo seus poderes, atribuindo-lhes e limitando-lhes a competência: o Poder Constituinte.”

O mesmo autor ressalta ainda que tal Poder Constituinte se divide em Originário e Derivado, sendo que o primeiro pode ser chamado simplesmente de Poder Constituinte. Para facilitar o estudo usaremos essa denominação visto que não nos aprofundaremos no estudo do Poder Constituinte Derivado.


Conclui-se que o Poder Constituinte Originário origina-se do povo que se situa numa certa fase social carente de uma reforma absoluta no Estado, e cria uma nova ordem jurídica, sendo que as demais anteriores simplesmente desaparecem,tornando-se simples fatos históricos.

Na mesma reflexão, há de se imaginar que tal força exercida pelo Poder Originário sobre as normas anteriores acabe por gerar alguns efeitos interessantes aos estudantes do Direito. Tais efeitos são chamados fenômenos do Poder Constituinte, e são eles: Recepção, Desconstitucionalização e Repristinação.

Teoria da Recepção


É coerente pensar que, apesar de inicial, o Poder Constituinte tenha algo em comum com uma legislação infraconstitucional anterior, visto que grande parte dos Estados modernos tem legislação escrita, positivada. Para melhor entendimento, vamos pensar que algumas normas anteriores á nova Constituição podem ter compatibilidade com a mesma. 


É tolo pensar que o Poder Constituinte, por ser inicialmente absoluto, iria anular tais normas e editar outras semelhantes simplesmente para ratificar seu poder absoluto.

É desse raciocínio que surge o fenômeno da Recepção, as normas infraconstitucionais anteriores á nova constituição e materialmente compatíveis com ela são recepcionadas pelo Poder Constituinte, que as engloba do mesmo modo que eram, normas infraconstitucionais. Não havendo recepção, por raciocínio óbvio, revogam-se as normas anteriores. 



As normas recepcionadas são apenas materialmente compatíveis pois, por razões óbvias a norma não será formalmente compatível com a nova Lei Maior, visto que foi criada por outra, com suas próprias exigências.
Por Michel Temer:


 “A constituição nova recebe a ordem normativa que surgiu sob o império de Constituições anteriores se com ela for compatível.


“É o fenômeno da recepção, que se destinam a dar continuidade ás relações sociais sem necessidade de nova, custosa, difícil e quase impossível manifestação legislativa ordinária.”

O aludido professor ainda traz em sua obra a seguinte questão: é possível ocorrer recepção sob normas criadas sob vigências de Constituição revogada pela anterior?

E em seguida responde: “... A resposta é negativa. A legislação infraconstitucional que perdeu sua eficácia diante de um texto constitucional não se restaura pelo surgimento de nova Constituição.”

Importante raciocínio deve-se fazer de que, como já ressaltado, o fenômeno da Recepção não ocorre em relação á normas da constituição anterior, conclui-se que o ato é vertical, ou seja, baseado na hierarquia de Kelsen, a Recepção ocorre de cima (nova constituição) para baixo (normas infraconstitucionais).


Dado conclusivo se faz ao raciocinar que uma norma que não foi abrigada pela nova constituição não é inconstitucional, e sim não recepcionada. Pedro Lenza vai além ao raciocínio:

“Nessa situação, acrescente-se, inadmite-se a realização de controle de constitucionalidade via ação direta de constitucionalidade genérica, por falta de previsão no art 102, I, a, da CF/88, permitindo-se, apenas, a possibilidade de se alegar que a norma não foi recepcionada. 



Deve-se destacar, desde já contudo, que, apesar de não ser cabível o aludido controle de Constitucionalidade concentrado pela via de ação direta de inconstitucionalidade genérica, será perfeitamente cabível a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental...”

O STF é de posição que vigora o princípio da contemporaneidade em relação a declarar uma norma inconstitucional, ou seja ela só pode ser inconstitucional frente á constituição de onde ela provem, raciocínio contrário seria logicamente infundado.

Discorrem Sylvio Motta e William Douglas: “Convém ressaltar ainda que a recepção apenas analisa a compatibilidade material da lei anterior com a nova Carta, sendo irrelevante a compatibilidade formal.”

“Em outras palavras, o Direito Constitucional brasileiro não admite inconstitucionalidade formal superveniente.”

Outro dado conclusivo sobre tal fenômeno é que ele é tácito, e por consequência disso necessita de interpretação teleológica para percebê-lo, já que não está expresso literalmente em nenhum artigo. A nossa Carta Magna tem claras amostras desse fenômeno, alguns polêmicos e outros não.

O Código Tributário Nacional, antes da CF/88 mera lei ordinária, é um exemplo de recepção, e não suficiente, a Carta Maior abrigou tal código como lei complementar, prova de que a recepção apesar de ocorrer somente com regras abaixo da constituição, pode movimentar a norma recepcionada em sua hierarquia infraconstitucional.

Em caminho inverso, temos a lei orgânica do Ministério Público, quando redigida lei complementar, e posteriormente recepcionada como lei ordinária. Deixando claro o pensamento acima.

Para finalizar, é pertinente destacar que a norma anterior á Carta Magna pode ser total, ou parcial. Ou seja, pode-se não recepcionar parte da norma mas aceitar o que restou dela.

Teoria da Desconstitucionalização

Poderia ser desejo do Poder Constituinte que uma norma da constituição anterior a ele encontre abrigo em seu novo ordenamento, porém não como norma constitucional e sim subordinada á nova constituição. 



A tal fenômeno dá-se o nome de desconstitucionalização. É uma teoria francesa, onde a nova Lei Pátria recepcionaria algumas normas da antiga constituição como normas infraconstitucionais. 


A aceitação na doutrina brasileira é polêmica e são adeptos dela Manoel Gonçalves Ferreira Filho, José Afonso da Silva, Pontes de Miranda e outros:

Marcelo Novelino: “De acordo com esta teoria (Teoria da desconstitucionalização) algumas normas constitucionais anteriores compatíveis com a nova Constituição poderiam ser recepcionadas, apesar de rebaixadas à categoria de leis infraconstitucionais.”

Leciona Michel Temer: “... se refere á possibilidade de recepção pela nova ordem constitucional, como leis ordinárias, de disposições da Constituição anterior. É a chamada teoria da desconstitucionalização.”

Nas palavras de Pedro Lenza: “Trata-se do fenômeno pelo qual as normas da Constituição anterior, desde que compatíveis com a nova ordem, permanecem em vigor, mas com o status de lei infraconstitucional. 



Ou seja, as normas da Constituição anterior são recepcionadas com o status de norma infraconstitucional pela nova ordem.”
E nas de Sylvio Motta e William Douglas: “O fenômeno da desconstitucionalização consiste em recepcionar como lei ordinária dispositivos da Constituição revogada não repetidos pela superveniente, mas com ela materialmente compatíveis.” 

Claro está que apesar de sua aceitação ser polêmica, o conceito do ato jurídico é pacífico.

Há duas diferenças básicas entre teoria da desconstitucionalização e teoria da recepção, fundamentais para distingui-las.

A primeira reside na sua identificação, enquanto a recepção é tácita, fato que gera discussões a torto e a direito entre estudiosos, a desconstitucionalização apenas ocorre se estiver expressa na nova Constituição. A CF/88 não fez previsão a tal ato jurídico, sendo impossível acontecer nos dias atuais.

Posicionamento semelhante tem Canotilho: “... por dedução, extraídas de leis constitucionais colocadas ao lado de texto constitucional, certas normas constitucionais, embora formalmente constitucionais, seriam desclassificadas e rebaixadas ao valor de leis ordinárias. 



Não se vê, na própria lógica da doutrina das modificações tácitas, como isto seja possível...”

Segunda distinção está na relação do Poder Constituinte-norma anterior. Verifica-se que na recepção, como já observado, ação vertical, haja vista que atua de Constituição para com normas infraconstitucionais. 



Na desconstitucionalização ocorre a ação horizontal, ou seja, o Poder Constituinte vai atuar frente a norma constitucional anterior, valendo-se de sua força ilimitada e rebaixando-a. Pode-se concluir que a ação é horizontal, com resultado vertical.


É exemplo de desconstitucionalização por Fernanda Dias Menezes de Almeida e Anna Cândida da Cunha Ferraz: 



- Artigo 292 da Constituição Portuguesa de 1976;
- Artigo 147 da Constituição de São Paulo, que diz: 


“consideram-se vigentes, com o caráter de lei ordinária, os artigos da Constituição promulgada em 9 de julho de 1947 que não contrariem essa Constituição”.


Teoria da Repristinação


Considere a seguinte situação: é vigente uma lei “X”, parte-se do princípio de que ela só será revogada se outra lei a revogar, pois é justamente isso o que ocorre, é promulgada uma lei “Y”, revogando expressamente a lei “X”, curiosamente surge uma lei “Z” que revoga expressamente a lei “Y”. Pergunta-se: a lei “X” volta a ter vigência?


A Teoria da Repristinação reside na resposta afirmativa a essa pergunta. Tal teoria prega, pelo ponto de vista científico, que uma lei revogada volta a gozar de  vigência pelo fato da lei que a revogou ser revogada por uma terceira lei.


Pelo conceito de Sylvio Motta e Wlliam Douglas: “Como fenômeno temporal jurídico, a repristinação consiste na recuperação dos pressupostos de existência, validade e eficácia de uma lei revogada. 


Sua materialização depende de uma sucessão de três leis: uma lei revogada que foi revogada por outra revogadora que, por sua vez, é revogada por uma terceira lei repristinante que revoga a lei revogadora.”


O entendimento feito no artigo é de que a respristinação é constituída de três leis, não envolvendo medidas provisórias, súmulas vinculantes, ou outras normas com força de lei, caso seja esta a situação, pode-se falar em mero efeito repristinatório, como veremos adiante. 


Pelo mesmo entendimento vale ressaltar que não é repristinação uma nova norma surgir com a mesma redação ou tratando de assunto semelhante á norma que voltaria a entrar em vigor.


Há discussão sobre a possibilidade de haver repristinação no Direito pátrio.


Posiciona-se Michel Temer: “Essa restauração de eficácia é categorizável como repristinação, inadmitida em nome do princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais. O permanente fluxo e refluxo de legislação gerariam dificuldades insuperáveis ao aplicador da lei, circunstância não desejada pelo constituinte.”


Também Capez: “Entre nós não se admite repristinação, salvo contrária disposição nesse sentido.”


A opnião dos dois é flexíbilizada pela aceitação da repristinação em caso expresso e excepcionalmente.


Vendo de outro ângulo, são adeptos dela Motta e Douglas: “Quando ocorre em nível de legislação infraconstitucional, sua admissibilidade é perfeitamente possível e amplamente referendada pela doutrina e jurisprudência. 


Todavia, quando a repristinação tem como objeto normas constitucionais (originárias ou derivadas), a previsão expressa do texto é requisito indispensável á materialização do fenômeno, sendo tal hipótese rara no Direito brasileiro.”


Usando principalmente o argumento de Michel Temer, é mais coerente não aceitar a repristinação, reservando-a para exceção e somente se for expressa. Tal qual o artigo 2º §3º da LINDB: “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.”


Do mesmo modo se manifesta Pedro Lenza: “Como regra geral, o Brasil adotou a impossibilidade do fenômeno da repristinação, salvo se a nova ordem jurídica expressamente assim se pronunciar.”


Citamos acima a possibilidade efeitos repristinatórios, vamos dar destaque ao mais interessante, o efeito repristinatório da ação direta de inconstitucionalidade.


Se dá no caso de uma norma voltar a ter vida no ordenamento jurídico visto que o dispositivo que a revogou foi declarado inconstitucional via ação concentrada (ADI, ADECON, ADPF)


Atenção ao fato de ocorrer a todo tipo de norma, sendo extensivo, por isso denominado somente efeito repristinatório e não repristinação.


O efeito é justificado pelo raciocínio de que uma norma declarada inconstitucional é expurgada de tal modo da ordem jurídica que é vista como se nunca tivesse existido, por isso em regra a sentença tem efeito ex-tunc, ou seja, retroage até o momento da entrada em vigor da norma inconstitucional.


Explana Canotilho: “Trata-se de evitar o vazio jurídico legal resultante do desaparecimento,  no ordenamento jurídico, de normas consideradas incostitucionais.”


Para concluir, cabe lembrar que os autores que aceitam a repristinação, também a aceitam parcial ou total, caso que pode acontecer se a lei expressamente demonstrar ser esse seu desejo.


Por: Guilherme Alcântara

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