1 DE OUTUBRO DE 2008
Apesar da convivência e do confronto de mais de 500 anos, o conhecimento que a sociedade e o Estado têm sobre os povos indígenas no Brasil é fragmentário e cumulativo, embora tenha avançado significativamente a partir dos anos 1980. Até os nomes que se dão a esses povos freqüentemente não são autodenominações, mas termos pejorativos que lhes foram atribuídos e permaneceram no glossário oficial.
Enquanto levávamos tanto tempo para aprender e reconhecer os seus próprios nomes, centenas de povos desapareceram.
Ainda hoje é provável que estejamos deixando de conhecer muitíssimo sobre as particularíssimas visões de mundo dos povos indígenas contemporâneos. Até os anos 1970, a perspectiva que se tinha no Brasil era a da inexorável extinção dos índios ou da sua “incorporação à comunhão nacional”, como preconizavam as Constituições anteriores à de 1988. Extinção “muito desejável”para os que estavam em conflito direto com índios em qualquer parte do território nacional;“processo natural”para os realistas de diferentes matizes, inclusive os de orientação marxista; “tragédia inevitável” para os que se opunham de alma ou de militância à violência histórica e mantinham simpatia pelos povos indígenas e suas lutas.
Foi uma surpresa constatar, no início dos anos 1980, que a população indígena no Brasil crescia, a despeito de que dezenas de etnias ainda estivessem, e continuam a estar, sob risco de extinção. O padrão histórico de contato entre a nossa sociedade-Estado e esses povos é o de choque imediato num primeiro momento, em que eles podem sucumbir ao impacto das arma sou das doenças. Mas quando logram sobreviver, adaptam-se ativamente às novas condições, até mesmo do ponto de vista imunológico.
Atualmente, verificamos a existência de muitos processos em curso de afirmação cultural e de recomposição demográfica, freqüentemente em taxas superiores à média de crescimento da população nacional. São processos relativamente recentes e que ocorrem de Norte a Sul do país (ver exemplos registrados por vários autores e fontes na série de publicações Povos Indígenas no Brasil, publicada desde 1980 pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação – cedI, e a partir de 1995 pelo Instituto Socioambiental – Isa).
O placar atual registra 227 povos indígenas vivendo no Brasil, em 626 terras indígenas, demarcadas ou com algum grau de reconhecimento oficial, falando cerca de 180 línguas. Não há um censo indígena especializado no Brasil. Computam-se dados da FUNAI, da Funasa e de outras instituições e pesquisadores para se chegar a cerca de 450 mil índios vivendo em terras indígenas, ou núcleos urbanos próximos.
A população indígena urbana, que mantém relações com comunidades e terras indígenas, é ainda menos aferida. A esses contingentes se somam muitos milhares de pessoas que, por força de descendência ou de qualquer outra relação de identidade, assumiram-se como índios no censo nacional do IBGE de2000.
Resulta que a demografia indígena do Brasil é muito diferente da andina ou da mexicana e se caracteriza pela diversidade de povos. Há etnias com alguns milhares de pessoas (23 povos têm mais de cinco mil indivíduos), mas a maioria forma grupos reduzidos (50 povos têm população de até 200 indivíduos).
Refletindo o fato histórico de que os povos indígenas mantêm parte considerável da sua exuberante diversidade cultural e de que a população indígena passou a crescer acima da média nacional, a Constituição de 1988 reconheceu o óbvio: os índios não vão extinguir-se e devem fazer parte do futuro do Brasil. A eles se reconhecem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e às suas próprias formas de organização social e expressão cultural.
O caráter originário desses direitos é uma prerrogativa histórica dos índios, mas a Constituição é também generosa no reconhecimento da diversidade brasileira como um todo, ao legitimaras expressões culturais regionais, os direitos dos negros e dos quilombolas, das minorias em geral, dos emigrados. Todos são brasileiros, compartilham uma mesma ordem jurídica e política, mas ninguém está privado da sua condição histórica ou cultural diferente, sendo a diversidade um patrimônio nacional.
O direito originário não é uma dádiva, é um reconhecimento. Decorre de uma anterioridade histórica que não pode ser ignorada. Já não se criam “reservas indígenas”, mas se reconhecem “terras indígenas” ocupadas ou se reparam esbulhos recentes. A sua propriedade é da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. O direito originário não é “externo”, mas se insere de forma apropriada no ordenamento jurídico nacional.
O fato de que a Constituição privilegia a tutela pela União dos direitos especiais dos índios não modifica os direitos e obrigações que eles têm como quaisquer brasileiros. Suas terras integram municípios e estados e, assim, como terras privadas ou outras terras públicas, podem estar situadas em regiões mais ou menos providas de recursos naturais, em qualquer unidade da federação, mais ou menos próximas de fronteiras internacionais.
A extensão total das terras indígenas no Brasil é de mais de 109, 7 milhões de hectares, ou 12, 8% do território nacional. Porém, essa extensão é marcadamente desigual quando se compara a região amazônica com o restante do território nacional. Na Amazônia Legal Brasileira, que corresponde a 60% do território nacional, vivem 60% da população indígena brasileira, ocupando 98, 8% da extensão total das terras indígenas. Os outros 40% da população indígena vivem em terras predominantemente exíguas, que correspondem a 1, 2% da extensão total das terras indígenas.
Essa aparente distorção não é uma singularidade. A correlação disforme entre extensão de terras dentro e fora da Amazônia Legal também ocorre com as unidades de conservação, com as áreas destinadas a uso militar, com as grandes propriedades rurais e como módulo de terras para assentamentos, com a extensão dos estados e municípios, etc.. É conseqüência da baixa densidade demográfica de grande parte do interior amazônico. Os 22 milhões de amazônidas vivem fortemente concentrados nas cidades, enquanto a população indígena constitui franca maioria nas zonas rurais de extensos municípios da região.
Assim, a extensão das terras indígenas está longe de constituir privilégio. Que o digam os Terena e os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que vivem aos milhares em terras com um punhado de hectares, numa correlação muito inferior à reconhecida para não-índios pelos módulos rurais para reforma agrária.
Mesmo na região amazônica, as terras indígenas resultam de ocupação efetiva e a sociedade brasileira deve valorizar, em vez de lamentar, que a sua presença sobre essa parte do território esteja sendo garantida por pessoas e grupos indígenas. Não é fácil viver no interior da floresta e as formas milenares de ocupação indígena ainda têm sido mais eficazes que os modelos clássicos de ocupação intensiva nessas regiões.
Faixa de fronteira
Nas Américas, os estados coloniais e depois nacionais se sobrepuseram à ocupação anterior de milhares de povos indígenas, segundo padrões diferenciados, absorvem a sua ocupação atual. De um modo geral, a ocupação colonial do continente se deu das regiões costeiras para o interior. Na Amazônia, ela se estabeleceu a partir das terras baixas. O controle sobre a foz do rio Amazonas permitiu a portugueses e brasileiros um acesso mais fácil à imensa extensão territorial abrangida pelos leitos navegáveis dele e de seus formadores e afluentes, razão pela qual mais da metade da bacia amazônica acabou incluída no território nacional.
No processo de ocupação do interior, grupos indígenas foram historicamente escravizado sou cooptados, outros massacrados ou mortalmente infectados, muitos fugiram para as terras mais altas, acima das cachoeiras e alguns ainda hoje não chegaram a ser diretamente alcançados. Não é de estranhar que a ocupação indígena seja tanto maior onde menor tenha sido a penetração colonial. Assim como é de esperar que a ocupação indígena permaneça ou prevaleça em regiões remotas, fronteiriças, como as terras mais altas da região amazônica.
O Brasil tem 16 886 quilômetros de fronteira terrestre com dez países da América do Sul.
Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas em tratados bilaterais com todos os vizinhos, encontram-se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucionalmente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de onze estados brasileiros. Aí estão cidades, estradas, rios, posses e assentamentos, propriedades privadas rurais, terras públicas com diferentes destinações e, inclusive, terras indígenas.
Existem 177 terras indígenas situadas na faixa de 150 quilômetros da fronteira em todo o país, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório. A demarcação das terras indígenas situadas em faixa de fronteira é uma providência fundamental, entre outras, para a regularização da situação fundiária, fator relevante para garantir estabilidade e evitar conflitos em regiões de fronteira. A indefinição de limites, a ocorrência de invasões e de disputas pela terra, não apenas quando se trata de terra indígena, constitui uma fragilidade que desfavorece a política de fronteiras.
De Norte a Sul do Brasil, há 43 povos indígenas que vivem em território brasileiro e em território de países vizinhos. A construção política das fronteiras terrestres não se pautou pela morfologia pluriétnica da ocupação indígena nesses territórios. Fundamentou-se muito mais na presença militar ou missionária, com base no princípio da ocupação colonial efetiva, que recortou povos e territórios.
Porém, freqüentemente, as relações construídas entre as frentes de colonização e as “lideranças” ou intermediários indígenas locais foram cruciais em muitos casos para caracterizar a efetividade da própria presença colonial e implicaram a inclusão (ou exclusão) das terras ocupadas por esses grupos. Essas relações continuam sendo relevantes no exercício da soberania dos Estados nacionais, assim como para a implementação de quaisquer políticas públicas nessas regiões. A qualidade dessas relações é um fator indissociável da qualidade dessas políticas.
Não há registro histórico de conflitos fronteiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como referência central. Assim como não há precedente de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar Estado próprio. A expectativa continuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políticas de seu interesse pelo Estado brasileiro.
E há o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasileiro, ainda no século xIx, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai. Vale também mencionar a Comissão Rondon de Inspeção de Fronteiras do Norte amazônico, que, no ano de 1927, recomendava a muitas aldeias e chefes indígenas que visitava que se fixassem em território nacional, buscando persuadi-los com promessas de assistência por parte do Estado brasileiro.
Intercâmbios transfronteiriços
Mas a fronteira não é apenas uma linha imaginária politicamente acordada para estabelecer limites entre territórios nacionais. Por ela transitam pessoas, mercadorias e ilícitos. Além da situação dos povos indígenas que vivem dos dois lados da linha, há brasileiros (e vizinhos) que vivem além (ou aquém) dela, familiares e amigos, comerciantes e turistas. Com fronteira plenamente reconhecida, vivendo em paz com todos os seus vizinhos há mais de um século e diante do avanço democrático ocorrido na América do Sul nos últimos vinte anos, é de esperar que essa linha enseje políticas de aproximação e integração, valorizando o intercâmbio de idéias, manifestações culturais e produtos. Isto vale para índios e para não-índios, brasileiros e demais sul-americanos, residentes ou viajantes.
E, ainda, a fronteira é um espaço suscetível de incidentes. Passam por ela produtos falsificados, dinheiro ilícito, drogas, doenças, armamentos traficados, criminosos contumazes e imigrantes ilegais. Via de regra, essas conexões criminosas ocorrem nas cidades fronteiriças e se utilizam das vias de transporte entre os países, mas também podem utilizar-se de qualquer área de fronteira em que encontrem condições mais favoráveis. Raramente ocorrem em terra indígena ou envolvem pessoas indígenas.
Em tempos de paz, os incidentes de fronteira são de natureza tipicamente policial. Ocorrem em qualquer parte do(s) território(s)nacional(ais). Confrontam a ordem jurídica e a autoridade do Estado, mas não ameaçam a soberania política ou a integridade do território nacional. São questões afetas à política para as fronteiras e não propriamente à defesa militar; demandam repressão policial e não guerra convencional.
É temerária a atribuição de poder de polícia para forças militares, seja para combater o crime em periferias de grandes cidades ou em faixa de fronteira. O seu eventual envolvimento com o próprio crime, como ocorreu recentemente no Rio de Janeiro, quando militares em missão de segurança numa favela entregaram três adolescentes civis a uma facção rival de narcotraficantes que os assassinou, desgasta sua imagem e as debilita para o exercício da sua função primordial: a defesa nacional (territórios e gentes).
É lícito que se recorra às forças militares em situações de emergência, como para a defesa civil em casos de sinistros naturais. Mas é sumamente pernicioso que elas sejam utilizadas para substituir a ação da polícia e de outros órgãos de Estado na execução de políticas que não são afetas à sua competência. Inclusive – e sobretudo – em regiões de fronteira.
Cabe uma reflexão mais profunda sobre as razões que levam pessoas e governantes a quererem que o Exército suba os morros, execute obras públicas, combata a grilagem de terras, proteja as unidades de conservação. É como aceitar que o Estado de Direito não só não funciona como não possa funcionar e, ainda, que a força bélica convencional nos possa imunizar das balas perdidas e achadas, resolver gargalos de infra-estrutura, promover o ordenamento fundiário e garantir a biodiversidade nacional.
Nesse contexto, o melhor cenário é o da incompetência, já que Forças Armadas não são formadas e treinadas para isso. O pior é o seu envolvimento em conflitos internos à sociedade brasileira e até com o crime organizado. É vã e perigosa a ilusão dos que esperam substituir, pela presença militar, o necessário enfrentamento às mazelas do Estado democrático e das suas políticas públicas.
É certo que as Forças Armadas dispõem do poder legal de convocação, que é uma enorme vantagem comparativa para alocar quadros profissionais em regiões críticas ou remotas. E é inaceitável que as estruturas civis de Estado, com vinte anos de estabilidade democrática, não tenham sido capazes de desenvolver mecanismos de incentivo, adequação estrutural, diferenciação e adaptação de procedimentos, formação de quadros locais para o mesmo fim. O Estado democrático precisa ser despido da sua postura cartorial e impelido pela sociedade a assumir a sua função em qualquer parte do território nacional.
Nessa mesma lógica, mas elas institucionais da FUNAI e de outros órgãos com competências afetas às demandas indígenas não justificam a interveniência militar na política indigenista. O conhecimento atual sobre os diferentes povos, com milhares de comunidades com localização definida, a dimensão das terras já reconhecidas, com recursos naturais, patrimônio cultural, serviços ambientais, diversidade biológica e conhecimentos tradicionais associados, impelem a sociedade e o Estado nacional a buscar respostas mais consistentes.
Não se trata de ignorar as relações históricas acumuladas entre militares e índios, que levaram as Forças Armadas a incorporar a questão indígena à sua visão estratégica, o que é um mérito a ser perseguido por outras instituições. Das guerras coloniais ao indigenismo tutelar, é inegável, para o bem ou para o mal, a influência militar sobre a política indigenista. Porém, ainda há vivas seqüelas do período histórico mais recente em que essa influência se traduziu em subordinação, na ditadura militar e no governo Sarney, em que os conflitos sobre direitos e terras indígenas se multiplicaram.
Também não se trata de minimizar a importância e a extensão das relações atuais entre índios e militares, sobre tudo na parte amazônica da faixa de fronteira. Há pelo menos 30anos, o Exército vem procedendo à transferência de unidades com infra-estrutura, equipamentos e efetivos de outras regiões do Brasil para a Amazônia, que no conjunto atingirão logo mais um total de 25 mil homens. Outro mérito seu: a ênfase estratégica na Amazônia, que por muitos motivos não-militares é, mesmo, altamente estratégica.
Assim como vem aumentando a presença militar em diversos municípios situados em regiões de fronteira, o Exército vem implantando dezenas de pelotões em terras indígenas nessas regiões (ver mapa na página seguinte). Mesmo dispondo do poder convocatório, trata-se de um trabalho penoso e dispendioso, com todos os ônus da transferência e permanência de contingentes em regiões remotas, desprovidas de infra-estrutura e condições favoráveis de assistência, dependendo de abastecimento por via aérea.
Pode ser que a atual presença militar em terras indígenas, assim como em outras áreas, ainda não seja suficiente para a estratégia de defesa nacional que se pretende. Está prevista a instalação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fronteira. É o que dispõe um decreto presidencial recente (nº 6513, de 22. 7. 2008, publicado no Diário Oficial daUniãonodia23. 7. 2008, seção 1, p. 1), que prevê a apresentação de um plano do comando do Exército a ser submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do presidente da República num prazo de noventa dias.
Esse decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a segmentos antiindígenas, do que para atender a necessidades da defesa nacional. É discriminatório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indígena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdício de recursos públicos que certamente seriam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclusive a indigenista.
Além do mais, a forma e a intensidade do estabelecimento de unidades militares em terras indígenas, quando for o caso, têm outras implicações que merecem atenção e o estabelecimento de regras, mecanismos de monitoramento e mediações institucionais adequadas para resguardar os direitos indígenas e dirimir situações de conflito de interesses. Antes que o debate ganhe contornos puramente ideológicos, trata-se de apontar, a título de exemplo, algumas questões concretas que merecem a atenção daqueles que prezam as prerrogativas do Estado democrático de direito.
Quando os locais pretendidos pelos militares para a instalação de um pelotão ou de uma pista de pouso coincidirem com a existência de comunidades indígenas, como realizar uma consulta prévia informada?
Quais as mediações adequadas para que tais consultas respeitem a organização social e formas de comunicação eficazes, o que implica, em muitos casos, a necessidade de tradução das justificativas em línguas nativas?
Uma vez definidos esses locais, via de regra colados a comunidades já existentes em áreas remotas, quais as regras para a utilização de recursos naturais (água, pedra, areia, etc..) e de mão-de-obra locais para a construção da infra-estrutura? Não seriam desejáveis estudos prévios de impactos socioambientais?Uma vez instalada a infra-estrutura, quais as regras de convivência entre os militares dos pelotões e as comunidades locais?
A proximidade física entre pelotões e aldeias potencializa a ocorrência de incidentes nas relações entre militares e índios. Por exemplo, quando são explorados locais sagrados coma explosão de rochas para obter brita para a pavimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimentos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais entre soldados e índias, consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais.
Portanto, o como e o onde dessa presença militar em terras indígenas é altamente relevante para essas relações, para que elas se desenvolvam em condições favoráveis e consistentes com o objetivo de defesa nacional, que também incluía segurança e a confiança dos índios.
Certamente, não são implicações estranhas aos comandantes militares, mas ainda há muito que se pode fazer, e corrigir, para que se evitem esses incidentes e se potencialize a dimensão mais positiva da relação.
Essas cautelas no âmbito das relações entre índios e militares são também pertinentes às relações com qualquer outro grupo social, sendo todos merecedores da segurança nacional.
Há, ainda, alguns aspectos da própria estratégia de defesa das fronteiras que merecem ser observados e considerados, inclusive na interface com os povos indígenas.
A atual política de defesa privilegia a alocação de tropas em pontos determinados de uma extensa faixa de fronteira. Em qualquer estratégia, a presença de tropas, em alguma medida, é indispensável. Porém, parece evidente que essa política não reconhece igual importância aos fatores de mobilidade e de inteligência.
Nas condições amazônicas, o rápido deslocamento de tropas, sobretudo por via aérea, é mais decisivo do que a pulverização de contingente sem pontos isolados ao longo da fronteira. Além disso, incidentes e ameaças são pouco visíveis, dada a extensão da fronteira e a densidade da floresta. São redes locais e informais de comunicação que os fazem conhecidos. Com presença direta de poucas pessoas qualificadas, baseadas em comunidades-chave, pode-se saber melhor e mais rápido da sua eventual ocorrência.
No que se refere aos índios, o Exército tem avançado, em algumas regiões, na sua incorporação por meio de recrutamento, como na Terra Indígena Alto Rio Negro, na qual 70% da tropa dos cinco pelotões é formada por recrutas indígenas locais. Além de possibilitar a redução de custos e de dificuldades de adaptação, a inserção de índios em batalhões tem assegurado vantagens comparativas quanto ao conhecimento do terreno, à capacidade de deslocamento e de sobrevivência na selva. Porém, essa sabedoria ainda não se traduziu na incorporação de pessoas indígenas às instâncias de comando.
Da mesma forma, há pouca ênfase na formação de quadros de inteligência militar especializados para atuar em regiões com presença indígena, inclusive de pessoas indígenas entre estes, que pudessem aportar o conhecimento de línguas e de referências geográficas, além de relações sociais e culturais preciosas para a identificação e prevenção de riscos potenciais.
Não se está aqui sugerindo que a política de defesa nacional seja entregue aos cuidados dos índios (nem mesmo nas próprias terras indígenas), como costumam reagir algumas autoridades militares diante de tais ponderações. Embora muitos deles disponham de formação militar ou tradição guerreira, uma estratégia contemporânea de defesa supõe muitos outros recursos, instrumentos e competências. Tampouco seria justo e razoável atribuir-lhes, como a qualquer outro grupo social, os ônus e responsabilidades de toda a nação.
Postula-se aqui o óbvio:que os índios sejam considerados, como os demais cidadãos, atores, destinatários e aliados para a defesa do país, e não óbices, inimigos ou inconfiáveis.
Imaginações perigosas
A fronteira suscita, ainda, além do anseio de integração, dos incidentes criminais e das cautelas de defesa, muita imaginação. Tanto das pessoas comuns, que tendem a associá-la ao desconhecido, quanto de estrategistas militares, que raciocinam por hipóteses, como é próprio, mas nem sempre atribuem a cada hipótese o peso específico que lhe cabe ponderarem função dos fatos concretos e do seu grau de probabilidade. Freqüentemente, possibilidades teóricas, remotas ou inverossímeis, sãopolitica-mentepriorizadasparalegitimarreivindicaçõescorporativas ou orçamentárias. A exposição de motivos para o Projeto Calha Norte, de 1986, falava em ameaça constituída pela presença de um governo marxista na Guiana, o que projetaria o conflito Leste-Oeste (Guerra Fria) sobre o Norte da América do Sul. Três anos depois, cairia o Muro de Berlim. Agora, Hugo Chávez pode fazer as vezes de ameaça à soberania nacional.
Da mesma forma, aquele e outros documentos oficiais chegam a tratar do “risco de criação de um Estado Yanomami”, pelo desmembramento de territórios pertencentes ao Brasil e à Venezuela, imemorialmente ocupados por este povo. Como inexiste demanda indígena nesse sentido – menos ainda por parte dos Yanomami, que mantêm relações ainda recentes de contato com as sociedades e Estados nacionais, não dispõem de qualquer estrutura hierarquizada e global de representação política e estão espalhados por centenas de aldeias, separadas por grandes distâncias e sem mecanismo sequer de intercâmbio de informações entre elas –, atribui-se a “potências mundiais”a intencionalidade dessa hipotética construção política.
Há países que reconhecem status de autonomia, subordinado ao ordenamento jurídico dos respectivos Estados nacionais, a regiões com presença relevante de populações indígenas, como Canadá e Nicarágua, de populações autóctones, como a Noruega, de populações tribais ou de minorias étnicas, em outras partes. Porém a hipótese de desmembramento territorial, imposto pela força de terceiros, é totalmente extravagante até para o contexto do Iraque ocupado, não havendo precedente nas Américas, o que seria inaceitável, inclusive, para os próprios Estados Unidos, única potência contemporânea com aparato militar para sustentar equivalente intervenção.
Se, por absurdo, uma potência estrangeira decidisse invadir militarmente o Brasil para derrubar o seu governo ou esquartejar o seu território, por que haveria de utilizar remotas fronteiras terrestres? Não seria mais fácil e menos custoso bloquear portos e aeroportos, atacar a infra-estrutura, cortar fontes e rotas de abastecimento? Para isolar a Amazônia, por exemplo, não seria mais eficaz aplicar a lição histórica da colonização e promover a ocupação militar da foz do Amazonas?
É patético que autoridades militares, intelectuais conservadores e jornalistas sensacionalistas lancem mão da extravagante hipótese de um “Estado Yanomami” para justificar novos investimentos na política de defesa nacional. Não deveria ser preciso.
Tensão em Roraima
A qualidade das relações entre índios e militares, na fronteira, não é homogênea e varia segundo contextos e conjunturas locais, além de posturas pessoais. Por exemplo, elas são mais maduras e institucionalizadas na região do Alto Rio Negro, onde as terras indígenas estão demarcadas(com expressiva extensão contínua), a população indígena é majoritária e estão organizadas em federação capilar, o comando militar atual é de alta patente e exercido com ponderação. E se encontra a fronteira com a Colômbia, onde atuam as FARC, os paramilitares e os narcotraficantes, presenças incomparavelmente mais incômodas do que nas demais regiões de fronteira.
Muito mais tensas estão essas relações em Roraima, onde ainda ocorre a disputa por terras indígenas, com autoridades militares se deixando envolver nela freqüentemente, e onde os índios, além de não as convidarem para evento se assembléias, como rotineiramente o fazem os do rio Negro, se opõem expressamente à sua presença. E onde não há registro de ocorrências críticas recentes afetas à defesa nacional provenientes da Venezuela ou da Guiana.
É mais do que evidente que os fatores que contribuem para deteriorar as relações entre índios e militares na fronteira são intrínsecos, decorrem das dificuldades da própria relação ou estão associados a conflitos internos à ordem política, social e econômica brasileira, assim como são passíveis de solução no âmbito da própria relação. Eles não decorrem de ação externa, de alianças indígenas com inimigos além-fronteira. Ao contrário, à menor ameaça externa, o recurso à união entre as partes é indiscutível, imediato e automático.
Portanto, não se deve politizar os incidentes de relação como se fossem afetos à soberania nacional ou à integridade do território. Deve-se trabalhar melhor a própria relação, adotar procedimentos que evitem incidentes e ampliem espaços de cooperação.
Na contramão, a discussão pública sobre índios e militares na fronteira polarizou-se ultimamente, com o questionamento da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, no Supremo Tribunal Federal (STF). Está em evidência um paradigma de conflito, e não de solução.
A identificação administrativa dessa terra vem desde 1977 e foi concluída, com a publicação no Diário Oficial da União em 1993, do respectivo despacho do presidente da Funai e parecer com as coordenadas geográficas da área proposta para demarcação. Da área contínua proposta, ficou excluída a área urbana de Normandia e o seu entorno, único município ali então constituído, onde estava estabelecido o batalhão de fronteira então existente.
Após esse ato, e contra ele, fazendeiros ocuparam ilegalmente parte das áreas de várzea da terra indígena com produção de arroz, representantes indígenas foram cooptados, um novo município foi criado com sede dentro da área oficialmente identificada pela Funai, estradas estaduais foram implantadas e outras obras públicas foram planejadas sem audiência aos índios ou entendimento com o governo federal.
A proposta de demarcação sofreu contestações administrativas que foram recusadas pela FUNAI e pelo Ministério da Justiça, mas ensejaram morosidade e decisões inconclusivas e contraditórias. Apenas em 1998, foi expedida a portaria ministerial com a decisão política sobre os limites da área e determinando a sua demarcação física. Pressões políticas, liminares judiciais e baixo grau de determinação fizeram com que a homologação presidencial da demarcação física só viesse em 2005.
Em que pese a ocupação imemorial dessa área pelos Macuxi, Wapixana, Taurepáng, Ingarikó e Patamona de Roraima, já se vão três décadas de trâmites administrativos e judiciais, com conflitos acirrados e vítimas fatais, sem que eles tenham uma solução efetiva e definitiva em relação aos seus direitos territoriais. A demarcação foi homologada, ficou estabelecido o prazo de um ano para a retirada dos ocupantes não-índios, e quando uma atabalhoada operação policial foi mobilizada para retirar alguns poucos ocupantes resistentes, notadamente os arrozeiros, o STF acatou um pedido de dois senadores para suspendê-la e sinaliza um próximo julgamento final do caso, prolongando incertezas.
Além da previsível pressão das partes interessadas, aí incluídos pronunciamentos de autoridades militares, o julgamento do caso pelo STF ocorrerá num contexto marcado por confrontos entre poderes e polêmicas entre seus membros, representantes e associações de classe, por conta de grampos telefônicos, banqueiros presos e algemados, decisões judiciais contraditórias e outras “brigas de branco”.
Reza a tradição que, em “briga de branco”, pode muito bem sobrar para negros e índios. Deveria sobrar? Deveriam esses índios pagar com a própria terra pelos interesses contrariados? Por alegados erros processuais? Por fatos consumados no decorrer do lento processo de reconhecimento oficial? Pelas operações policiais? Pela insuficiente presença do Estado nacional nas fronteiras? Pelo populismo verbal ou armado em países vizinhos? Pela cobiça da Amazônia por gringos mal-intencionados?
Ou deveriam ser resgatados desse paradigma de conflito, compensados e indenizados pelo esbulho histórico, pela morosidade política, administrativaejudicialnoreconhecimen-todosseusdireitosfundamentais, pelos mortos, feridos e desprovidos em sucessivos conflitos, pela degradação do seu território, pela negação da sua identidade e pelo desprezo às suas tradições?
O debate que emerge agora sobre índios nas fronteiras está prismado pelo paradigma do conflito. É um surto midiático, desmemoriado, que comprime toda uma história em uma página de revista. Ainda assim, é melhor do que o silêncio. Nesse debate, que também inclui opiniões muito qualificadas, misturam-se fatos, boatos, impressões, suposições e acusações. Incidentes são mencionados sem que se distinga o seu caráter de ameaça política externa, criminalidade comum, conflito social interno ou de incidente de relação.
Sem que sejam comparados dentro e fora de terras indígenas, dentro e fora de faixa de fronteira, dentro e fora do território nacional.
Mistura-se ainda, além de tudo que há, tudo o mais que possa haver: projeção de conflitos planetários, governos inconfiáveis, riquezas minerais inesgotáveis, biopirataria, cobiça pela Amazônia, gringos e ONGs suspeitos e até Estados indígenas. E também o que se possa imaginar:toda a faixa de fronteira povoada por gente mal feitora, onde antes os militares diziam haver um imenso “vazio demográfico”, cheio de “florestas virgens”.
O fato é que, salvo em alguns pontos notoriamente críticos, como entre Foz do Iguaçu e Ciudad Del Leste, no Paraguai, e outros corredores de tráfico, a faixa de fronteira continua como sempre, com predomínio de áreas com baixa ocupação demográfica, com alguma presença militar e quase nenhuma presença do Estado civil. Há alguns milênios deixou de ser um vazio demográfico, assim como as florestas deixaram de ser virgens, se é que algum dia o foram.
O que falta nas terras indígenas, na faixa de fronteira e em várias outras partes do território nacional, é o estado democrático de direito. É o planejamento civil do território, com a destinação das terras e a resolução dos conflitos. É a implementação de políticas de saúde, de educação e de segurança alimentar. É uma polícia competente. E que as Forças Armadas possam, com maior ou menor efetivo, dedicar-se à dissuasão de possíveis ameaças externas, com o apoio de todo povo brasileiro.
Beto Ricardo e Márcio Santilli
Apesar da convivência e do confronto de mais de 500 anos, o conhecimento que a sociedade e o Estado têm sobre os povos indígenas no Brasil é fragmentário e cumulativo, embora tenha avançado significativamente a partir dos anos 1980. Até os nomes que se dão a esses povos freqüentemente não são autodenominações, mas termos pejorativos que lhes foram atribuídos e permaneceram no glossário oficial.
Enquanto levávamos tanto tempo para aprender e reconhecer os seus próprios nomes, centenas de povos desapareceram.
Ainda hoje é provável que estejamos deixando de conhecer muitíssimo sobre as particularíssimas visões de mundo dos povos indígenas contemporâneos. Até os anos 1970, a perspectiva que se tinha no Brasil era a da inexorável extinção dos índios ou da sua “incorporação à comunhão nacional”, como preconizavam as Constituições anteriores à de 1988. Extinção “muito desejável”para os que estavam em conflito direto com índios em qualquer parte do território nacional;“processo natural”para os realistas de diferentes matizes, inclusive os de orientação marxista; “tragédia inevitável” para os que se opunham de alma ou de militância à violência histórica e mantinham simpatia pelos povos indígenas e suas lutas.
Foi uma surpresa constatar, no início dos anos 1980, que a população indígena no Brasil crescia, a despeito de que dezenas de etnias ainda estivessem, e continuam a estar, sob risco de extinção. O padrão histórico de contato entre a nossa sociedade-Estado e esses povos é o de choque imediato num primeiro momento, em que eles podem sucumbir ao impacto das arma sou das doenças. Mas quando logram sobreviver, adaptam-se ativamente às novas condições, até mesmo do ponto de vista imunológico.
Atualmente, verificamos a existência de muitos processos em curso de afirmação cultural e de recomposição demográfica, freqüentemente em taxas superiores à média de crescimento da população nacional. São processos relativamente recentes e que ocorrem de Norte a Sul do país (ver exemplos registrados por vários autores e fontes na série de publicações Povos Indígenas no Brasil, publicada desde 1980 pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação – cedI, e a partir de 1995 pelo Instituto Socioambiental – Isa).
O placar atual registra 227 povos indígenas vivendo no Brasil, em 626 terras indígenas, demarcadas ou com algum grau de reconhecimento oficial, falando cerca de 180 línguas. Não há um censo indígena especializado no Brasil. Computam-se dados da FUNAI, da Funasa e de outras instituições e pesquisadores para se chegar a cerca de 450 mil índios vivendo em terras indígenas, ou núcleos urbanos próximos.
A população indígena urbana, que mantém relações com comunidades e terras indígenas, é ainda menos aferida. A esses contingentes se somam muitos milhares de pessoas que, por força de descendência ou de qualquer outra relação de identidade, assumiram-se como índios no censo nacional do IBGE de2000.
Resulta que a demografia indígena do Brasil é muito diferente da andina ou da mexicana e se caracteriza pela diversidade de povos. Há etnias com alguns milhares de pessoas (23 povos têm mais de cinco mil indivíduos), mas a maioria forma grupos reduzidos (50 povos têm população de até 200 indivíduos).
Direitos originários
O caráter originário desses direitos é uma prerrogativa histórica dos índios, mas a Constituição é também generosa no reconhecimento da diversidade brasileira como um todo, ao legitimaras expressões culturais regionais, os direitos dos negros e dos quilombolas, das minorias em geral, dos emigrados. Todos são brasileiros, compartilham uma mesma ordem jurídica e política, mas ninguém está privado da sua condição histórica ou cultural diferente, sendo a diversidade um patrimônio nacional.
O direito originário não é uma dádiva, é um reconhecimento. Decorre de uma anterioridade histórica que não pode ser ignorada. Já não se criam “reservas indígenas”, mas se reconhecem “terras indígenas” ocupadas ou se reparam esbulhos recentes. A sua propriedade é da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. O direito originário não é “externo”, mas se insere de forma apropriada no ordenamento jurídico nacional.
O fato de que a Constituição privilegia a tutela pela União dos direitos especiais dos índios não modifica os direitos e obrigações que eles têm como quaisquer brasileiros. Suas terras integram municípios e estados e, assim, como terras privadas ou outras terras públicas, podem estar situadas em regiões mais ou menos providas de recursos naturais, em qualquer unidade da federação, mais ou menos próximas de fronteiras internacionais.
A extensão total das terras indígenas no Brasil é de mais de 109, 7 milhões de hectares, ou 12, 8% do território nacional. Porém, essa extensão é marcadamente desigual quando se compara a região amazônica com o restante do território nacional. Na Amazônia Legal Brasileira, que corresponde a 60% do território nacional, vivem 60% da população indígena brasileira, ocupando 98, 8% da extensão total das terras indígenas. Os outros 40% da população indígena vivem em terras predominantemente exíguas, que correspondem a 1, 2% da extensão total das terras indígenas.
Essa aparente distorção não é uma singularidade. A correlação disforme entre extensão de terras dentro e fora da Amazônia Legal também ocorre com as unidades de conservação, com as áreas destinadas a uso militar, com as grandes propriedades rurais e como módulo de terras para assentamentos, com a extensão dos estados e municípios, etc.. É conseqüência da baixa densidade demográfica de grande parte do interior amazônico. Os 22 milhões de amazônidas vivem fortemente concentrados nas cidades, enquanto a população indígena constitui franca maioria nas zonas rurais de extensos municípios da região.
Assim, a extensão das terras indígenas está longe de constituir privilégio. Que o digam os Terena e os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que vivem aos milhares em terras com um punhado de hectares, numa correlação muito inferior à reconhecida para não-índios pelos módulos rurais para reforma agrária.
Mesmo na região amazônica, as terras indígenas resultam de ocupação efetiva e a sociedade brasileira deve valorizar, em vez de lamentar, que a sua presença sobre essa parte do território esteja sendo garantida por pessoas e grupos indígenas. Não é fácil viver no interior da floresta e as formas milenares de ocupação indígena ainda têm sido mais eficazes que os modelos clássicos de ocupação intensiva nessas regiões.
Faixa de fronteira
Nas Américas, os estados coloniais e depois nacionais se sobrepuseram à ocupação anterior de milhares de povos indígenas, segundo padrões diferenciados, absorvem a sua ocupação atual. De um modo geral, a ocupação colonial do continente se deu das regiões costeiras para o interior. Na Amazônia, ela se estabeleceu a partir das terras baixas. O controle sobre a foz do rio Amazonas permitiu a portugueses e brasileiros um acesso mais fácil à imensa extensão territorial abrangida pelos leitos navegáveis dele e de seus formadores e afluentes, razão pela qual mais da metade da bacia amazônica acabou incluída no território nacional.
No processo de ocupação do interior, grupos indígenas foram historicamente escravizado sou cooptados, outros massacrados ou mortalmente infectados, muitos fugiram para as terras mais altas, acima das cachoeiras e alguns ainda hoje não chegaram a ser diretamente alcançados. Não é de estranhar que a ocupação indígena seja tanto maior onde menor tenha sido a penetração colonial. Assim como é de esperar que a ocupação indígena permaneça ou prevaleça em regiões remotas, fronteiriças, como as terras mais altas da região amazônica.
O Brasil tem 16 886 quilômetros de fronteira terrestre com dez países da América do Sul.
Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas em tratados bilaterais com todos os vizinhos, encontram-se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucionalmente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de onze estados brasileiros. Aí estão cidades, estradas, rios, posses e assentamentos, propriedades privadas rurais, terras públicas com diferentes destinações e, inclusive, terras indígenas.
Existem 177 terras indígenas situadas na faixa de 150 quilômetros da fronteira em todo o país, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório. A demarcação das terras indígenas situadas em faixa de fronteira é uma providência fundamental, entre outras, para a regularização da situação fundiária, fator relevante para garantir estabilidade e evitar conflitos em regiões de fronteira. A indefinição de limites, a ocorrência de invasões e de disputas pela terra, não apenas quando se trata de terra indígena, constitui uma fragilidade que desfavorece a política de fronteiras.
De Norte a Sul do Brasil, há 43 povos indígenas que vivem em território brasileiro e em território de países vizinhos. A construção política das fronteiras terrestres não se pautou pela morfologia pluriétnica da ocupação indígena nesses territórios. Fundamentou-se muito mais na presença militar ou missionária, com base no princípio da ocupação colonial efetiva, que recortou povos e territórios.
Porém, freqüentemente, as relações construídas entre as frentes de colonização e as “lideranças” ou intermediários indígenas locais foram cruciais em muitos casos para caracterizar a efetividade da própria presença colonial e implicaram a inclusão (ou exclusão) das terras ocupadas por esses grupos. Essas relações continuam sendo relevantes no exercício da soberania dos Estados nacionais, assim como para a implementação de quaisquer políticas públicas nessas regiões. A qualidade dessas relações é um fator indissociável da qualidade dessas políticas.
Não há registro histórico de conflitos fronteiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como referência central. Assim como não há precedente de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar Estado próprio. A expectativa continuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políticas de seu interesse pelo Estado brasileiro.
E há o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasileiro, ainda no século xIx, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai. Vale também mencionar a Comissão Rondon de Inspeção de Fronteiras do Norte amazônico, que, no ano de 1927, recomendava a muitas aldeias e chefes indígenas que visitava que se fixassem em território nacional, buscando persuadi-los com promessas de assistência por parte do Estado brasileiro.
Intercâmbios transfronteiriços
Mas a fronteira não é apenas uma linha imaginária politicamente acordada para estabelecer limites entre territórios nacionais. Por ela transitam pessoas, mercadorias e ilícitos. Além da situação dos povos indígenas que vivem dos dois lados da linha, há brasileiros (e vizinhos) que vivem além (ou aquém) dela, familiares e amigos, comerciantes e turistas. Com fronteira plenamente reconhecida, vivendo em paz com todos os seus vizinhos há mais de um século e diante do avanço democrático ocorrido na América do Sul nos últimos vinte anos, é de esperar que essa linha enseje políticas de aproximação e integração, valorizando o intercâmbio de idéias, manifestações culturais e produtos. Isto vale para índios e para não-índios, brasileiros e demais sul-americanos, residentes ou viajantes.
E, ainda, a fronteira é um espaço suscetível de incidentes. Passam por ela produtos falsificados, dinheiro ilícito, drogas, doenças, armamentos traficados, criminosos contumazes e imigrantes ilegais. Via de regra, essas conexões criminosas ocorrem nas cidades fronteiriças e se utilizam das vias de transporte entre os países, mas também podem utilizar-se de qualquer área de fronteira em que encontrem condições mais favoráveis. Raramente ocorrem em terra indígena ou envolvem pessoas indígenas.
Em tempos de paz, os incidentes de fronteira são de natureza tipicamente policial. Ocorrem em qualquer parte do(s) território(s)nacional(ais). Confrontam a ordem jurídica e a autoridade do Estado, mas não ameaçam a soberania política ou a integridade do território nacional. São questões afetas à política para as fronteiras e não propriamente à defesa militar; demandam repressão policial e não guerra convencional.
É temerária a atribuição de poder de polícia para forças militares, seja para combater o crime em periferias de grandes cidades ou em faixa de fronteira. O seu eventual envolvimento com o próprio crime, como ocorreu recentemente no Rio de Janeiro, quando militares em missão de segurança numa favela entregaram três adolescentes civis a uma facção rival de narcotraficantes que os assassinou, desgasta sua imagem e as debilita para o exercício da sua função primordial: a defesa nacional (territórios e gentes).
É lícito que se recorra às forças militares em situações de emergência, como para a defesa civil em casos de sinistros naturais. Mas é sumamente pernicioso que elas sejam utilizadas para substituir a ação da polícia e de outros órgãos de Estado na execução de políticas que não são afetas à sua competência. Inclusive – e sobretudo – em regiões de fronteira.
Cabe uma reflexão mais profunda sobre as razões que levam pessoas e governantes a quererem que o Exército suba os morros, execute obras públicas, combata a grilagem de terras, proteja as unidades de conservação. É como aceitar que o Estado de Direito não só não funciona como não possa funcionar e, ainda, que a força bélica convencional nos possa imunizar das balas perdidas e achadas, resolver gargalos de infra-estrutura, promover o ordenamento fundiário e garantir a biodiversidade nacional.
Nesse contexto, o melhor cenário é o da incompetência, já que Forças Armadas não são formadas e treinadas para isso. O pior é o seu envolvimento em conflitos internos à sociedade brasileira e até com o crime organizado. É vã e perigosa a ilusão dos que esperam substituir, pela presença militar, o necessário enfrentamento às mazelas do Estado democrático e das suas políticas públicas.
É certo que as Forças Armadas dispõem do poder legal de convocação, que é uma enorme vantagem comparativa para alocar quadros profissionais em regiões críticas ou remotas. E é inaceitável que as estruturas civis de Estado, com vinte anos de estabilidade democrática, não tenham sido capazes de desenvolver mecanismos de incentivo, adequação estrutural, diferenciação e adaptação de procedimentos, formação de quadros locais para o mesmo fim. O Estado democrático precisa ser despido da sua postura cartorial e impelido pela sociedade a assumir a sua função em qualquer parte do território nacional.
Índios e militares
Não se trata de ignorar as relações históricas acumuladas entre militares e índios, que levaram as Forças Armadas a incorporar a questão indígena à sua visão estratégica, o que é um mérito a ser perseguido por outras instituições. Das guerras coloniais ao indigenismo tutelar, é inegável, para o bem ou para o mal, a influência militar sobre a política indigenista. Porém, ainda há vivas seqüelas do período histórico mais recente em que essa influência se traduziu em subordinação, na ditadura militar e no governo Sarney, em que os conflitos sobre direitos e terras indígenas se multiplicaram.
Também não se trata de minimizar a importância e a extensão das relações atuais entre índios e militares, sobre tudo na parte amazônica da faixa de fronteira. Há pelo menos 30anos, o Exército vem procedendo à transferência de unidades com infra-estrutura, equipamentos e efetivos de outras regiões do Brasil para a Amazônia, que no conjunto atingirão logo mais um total de 25 mil homens. Outro mérito seu: a ênfase estratégica na Amazônia, que por muitos motivos não-militares é, mesmo, altamente estratégica.
Assim como vem aumentando a presença militar em diversos municípios situados em regiões de fronteira, o Exército vem implantando dezenas de pelotões em terras indígenas nessas regiões (ver mapa na página seguinte). Mesmo dispondo do poder convocatório, trata-se de um trabalho penoso e dispendioso, com todos os ônus da transferência e permanência de contingentes em regiões remotas, desprovidas de infra-estrutura e condições favoráveis de assistência, dependendo de abastecimento por via aérea.
Pode ser que a atual presença militar em terras indígenas, assim como em outras áreas, ainda não seja suficiente para a estratégia de defesa nacional que se pretende. Está prevista a instalação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fronteira. É o que dispõe um decreto presidencial recente (nº 6513, de 22. 7. 2008, publicado no Diário Oficial daUniãonodia23. 7. 2008, seção 1, p. 1), que prevê a apresentação de um plano do comando do Exército a ser submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do presidente da República num prazo de noventa dias.
Esse decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a segmentos antiindígenas, do que para atender a necessidades da defesa nacional. É discriminatório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indígena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdício de recursos públicos que certamente seriam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclusive a indigenista.
Além do mais, a forma e a intensidade do estabelecimento de unidades militares em terras indígenas, quando for o caso, têm outras implicações que merecem atenção e o estabelecimento de regras, mecanismos de monitoramento e mediações institucionais adequadas para resguardar os direitos indígenas e dirimir situações de conflito de interesses. Antes que o debate ganhe contornos puramente ideológicos, trata-se de apontar, a título de exemplo, algumas questões concretas que merecem a atenção daqueles que prezam as prerrogativas do Estado democrático de direito.
Quais são os critérios que regem a escolha dos locais de instalação das unidades militares?
Quais as mediações adequadas para que tais consultas respeitem a organização social e formas de comunicação eficazes, o que implica, em muitos casos, a necessidade de tradução das justificativas em línguas nativas?
Uma vez definidos esses locais, via de regra colados a comunidades já existentes em áreas remotas, quais as regras para a utilização de recursos naturais (água, pedra, areia, etc..) e de mão-de-obra locais para a construção da infra-estrutura? Não seriam desejáveis estudos prévios de impactos socioambientais?Uma vez instalada a infra-estrutura, quais as regras de convivência entre os militares dos pelotões e as comunidades locais?
A proximidade física entre pelotões e aldeias potencializa a ocorrência de incidentes nas relações entre militares e índios. Por exemplo, quando são explorados locais sagrados coma explosão de rochas para obter brita para a pavimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimentos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais entre soldados e índias, consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais.
Portanto, o como e o onde dessa presença militar em terras indígenas é altamente relevante para essas relações, para que elas se desenvolvam em condições favoráveis e consistentes com o objetivo de defesa nacional, que também incluía segurança e a confiança dos índios.
Certamente, não são implicações estranhas aos comandantes militares, mas ainda há muito que se pode fazer, e corrigir, para que se evitem esses incidentes e se potencialize a dimensão mais positiva da relação.
Mobilidade e inteligência
Há, ainda, alguns aspectos da própria estratégia de defesa das fronteiras que merecem ser observados e considerados, inclusive na interface com os povos indígenas.
A atual política de defesa privilegia a alocação de tropas em pontos determinados de uma extensa faixa de fronteira. Em qualquer estratégia, a presença de tropas, em alguma medida, é indispensável. Porém, parece evidente que essa política não reconhece igual importância aos fatores de mobilidade e de inteligência.
Nas condições amazônicas, o rápido deslocamento de tropas, sobretudo por via aérea, é mais decisivo do que a pulverização de contingente sem pontos isolados ao longo da fronteira. Além disso, incidentes e ameaças são pouco visíveis, dada a extensão da fronteira e a densidade da floresta. São redes locais e informais de comunicação que os fazem conhecidos. Com presença direta de poucas pessoas qualificadas, baseadas em comunidades-chave, pode-se saber melhor e mais rápido da sua eventual ocorrência.
No que se refere aos índios, o Exército tem avançado, em algumas regiões, na sua incorporação por meio de recrutamento, como na Terra Indígena Alto Rio Negro, na qual 70% da tropa dos cinco pelotões é formada por recrutas indígenas locais. Além de possibilitar a redução de custos e de dificuldades de adaptação, a inserção de índios em batalhões tem assegurado vantagens comparativas quanto ao conhecimento do terreno, à capacidade de deslocamento e de sobrevivência na selva. Porém, essa sabedoria ainda não se traduziu na incorporação de pessoas indígenas às instâncias de comando.
Da mesma forma, há pouca ênfase na formação de quadros de inteligência militar especializados para atuar em regiões com presença indígena, inclusive de pessoas indígenas entre estes, que pudessem aportar o conhecimento de línguas e de referências geográficas, além de relações sociais e culturais preciosas para a identificação e prevenção de riscos potenciais.
Não se está aqui sugerindo que a política de defesa nacional seja entregue aos cuidados dos índios (nem mesmo nas próprias terras indígenas), como costumam reagir algumas autoridades militares diante de tais ponderações. Embora muitos deles disponham de formação militar ou tradição guerreira, uma estratégia contemporânea de defesa supõe muitos outros recursos, instrumentos e competências. Tampouco seria justo e razoável atribuir-lhes, como a qualquer outro grupo social, os ônus e responsabilidades de toda a nação.
Postula-se aqui o óbvio:que os índios sejam considerados, como os demais cidadãos, atores, destinatários e aliados para a defesa do país, e não óbices, inimigos ou inconfiáveis.
Imaginações perigosas
A fronteira suscita, ainda, além do anseio de integração, dos incidentes criminais e das cautelas de defesa, muita imaginação. Tanto das pessoas comuns, que tendem a associá-la ao desconhecido, quanto de estrategistas militares, que raciocinam por hipóteses, como é próprio, mas nem sempre atribuem a cada hipótese o peso específico que lhe cabe ponderarem função dos fatos concretos e do seu grau de probabilidade. Freqüentemente, possibilidades teóricas, remotas ou inverossímeis, sãopolitica-mentepriorizadasparalegitimarreivindicaçõescorporativas ou orçamentárias. A exposição de motivos para o Projeto Calha Norte, de 1986, falava em ameaça constituída pela presença de um governo marxista na Guiana, o que projetaria o conflito Leste-Oeste (Guerra Fria) sobre o Norte da América do Sul. Três anos depois, cairia o Muro de Berlim. Agora, Hugo Chávez pode fazer as vezes de ameaça à soberania nacional.
Da mesma forma, aquele e outros documentos oficiais chegam a tratar do “risco de criação de um Estado Yanomami”, pelo desmembramento de territórios pertencentes ao Brasil e à Venezuela, imemorialmente ocupados por este povo. Como inexiste demanda indígena nesse sentido – menos ainda por parte dos Yanomami, que mantêm relações ainda recentes de contato com as sociedades e Estados nacionais, não dispõem de qualquer estrutura hierarquizada e global de representação política e estão espalhados por centenas de aldeias, separadas por grandes distâncias e sem mecanismo sequer de intercâmbio de informações entre elas –, atribui-se a “potências mundiais”a intencionalidade dessa hipotética construção política.
Há países que reconhecem status de autonomia, subordinado ao ordenamento jurídico dos respectivos Estados nacionais, a regiões com presença relevante de populações indígenas, como Canadá e Nicarágua, de populações autóctones, como a Noruega, de populações tribais ou de minorias étnicas, em outras partes. Porém a hipótese de desmembramento territorial, imposto pela força de terceiros, é totalmente extravagante até para o contexto do Iraque ocupado, não havendo precedente nas Américas, o que seria inaceitável, inclusive, para os próprios Estados Unidos, única potência contemporânea com aparato militar para sustentar equivalente intervenção.
Se, por absurdo, uma potência estrangeira decidisse invadir militarmente o Brasil para derrubar o seu governo ou esquartejar o seu território, por que haveria de utilizar remotas fronteiras terrestres? Não seria mais fácil e menos custoso bloquear portos e aeroportos, atacar a infra-estrutura, cortar fontes e rotas de abastecimento? Para isolar a Amazônia, por exemplo, não seria mais eficaz aplicar a lição histórica da colonização e promover a ocupação militar da foz do Amazonas?
É patético que autoridades militares, intelectuais conservadores e jornalistas sensacionalistas lancem mão da extravagante hipótese de um “Estado Yanomami” para justificar novos investimentos na política de defesa nacional. Não deveria ser preciso.
Tensão em Roraima
A qualidade das relações entre índios e militares, na fronteira, não é homogênea e varia segundo contextos e conjunturas locais, além de posturas pessoais. Por exemplo, elas são mais maduras e institucionalizadas na região do Alto Rio Negro, onde as terras indígenas estão demarcadas(com expressiva extensão contínua), a população indígena é majoritária e estão organizadas em federação capilar, o comando militar atual é de alta patente e exercido com ponderação. E se encontra a fronteira com a Colômbia, onde atuam as FARC, os paramilitares e os narcotraficantes, presenças incomparavelmente mais incômodas do que nas demais regiões de fronteira.
Muito mais tensas estão essas relações em Roraima, onde ainda ocorre a disputa por terras indígenas, com autoridades militares se deixando envolver nela freqüentemente, e onde os índios, além de não as convidarem para evento se assembléias, como rotineiramente o fazem os do rio Negro, se opõem expressamente à sua presença. E onde não há registro de ocorrências críticas recentes afetas à defesa nacional provenientes da Venezuela ou da Guiana.
É mais do que evidente que os fatores que contribuem para deteriorar as relações entre índios e militares na fronteira são intrínsecos, decorrem das dificuldades da própria relação ou estão associados a conflitos internos à ordem política, social e econômica brasileira, assim como são passíveis de solução no âmbito da própria relação. Eles não decorrem de ação externa, de alianças indígenas com inimigos além-fronteira. Ao contrário, à menor ameaça externa, o recurso à união entre as partes é indiscutível, imediato e automático.
Portanto, não se deve politizar os incidentes de relação como se fossem afetos à soberania nacional ou à integridade do território. Deve-se trabalhar melhor a própria relação, adotar procedimentos que evitem incidentes e ampliem espaços de cooperação.
Na contramão, a discussão pública sobre índios e militares na fronteira polarizou-se ultimamente, com o questionamento da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, no Supremo Tribunal Federal (STF). Está em evidência um paradigma de conflito, e não de solução.
A identificação administrativa dessa terra vem desde 1977 e foi concluída, com a publicação no Diário Oficial da União em 1993, do respectivo despacho do presidente da Funai e parecer com as coordenadas geográficas da área proposta para demarcação. Da área contínua proposta, ficou excluída a área urbana de Normandia e o seu entorno, único município ali então constituído, onde estava estabelecido o batalhão de fronteira então existente.
Após esse ato, e contra ele, fazendeiros ocuparam ilegalmente parte das áreas de várzea da terra indígena com produção de arroz, representantes indígenas foram cooptados, um novo município foi criado com sede dentro da área oficialmente identificada pela Funai, estradas estaduais foram implantadas e outras obras públicas foram planejadas sem audiência aos índios ou entendimento com o governo federal.
A proposta de demarcação sofreu contestações administrativas que foram recusadas pela FUNAI e pelo Ministério da Justiça, mas ensejaram morosidade e decisões inconclusivas e contraditórias. Apenas em 1998, foi expedida a portaria ministerial com a decisão política sobre os limites da área e determinando a sua demarcação física. Pressões políticas, liminares judiciais e baixo grau de determinação fizeram com que a homologação presidencial da demarcação física só viesse em 2005.
Em que pese a ocupação imemorial dessa área pelos Macuxi, Wapixana, Taurepáng, Ingarikó e Patamona de Roraima, já se vão três décadas de trâmites administrativos e judiciais, com conflitos acirrados e vítimas fatais, sem que eles tenham uma solução efetiva e definitiva em relação aos seus direitos territoriais. A demarcação foi homologada, ficou estabelecido o prazo de um ano para a retirada dos ocupantes não-índios, e quando uma atabalhoada operação policial foi mobilizada para retirar alguns poucos ocupantes resistentes, notadamente os arrozeiros, o STF acatou um pedido de dois senadores para suspendê-la e sinaliza um próximo julgamento final do caso, prolongando incertezas.
Além da previsível pressão das partes interessadas, aí incluídos pronunciamentos de autoridades militares, o julgamento do caso pelo STF ocorrerá num contexto marcado por confrontos entre poderes e polêmicas entre seus membros, representantes e associações de classe, por conta de grampos telefônicos, banqueiros presos e algemados, decisões judiciais contraditórias e outras “brigas de branco”.
Reza a tradição que, em “briga de branco”, pode muito bem sobrar para negros e índios. Deveria sobrar? Deveriam esses índios pagar com a própria terra pelos interesses contrariados? Por alegados erros processuais? Por fatos consumados no decorrer do lento processo de reconhecimento oficial? Pelas operações policiais? Pela insuficiente presença do Estado nacional nas fronteiras? Pelo populismo verbal ou armado em países vizinhos? Pela cobiça da Amazônia por gringos mal-intencionados?
Ou deveriam ser resgatados desse paradigma de conflito, compensados e indenizados pelo esbulho histórico, pela morosidade política, administrativaejudicialnoreconhecimen-todosseusdireitosfundamentais, pelos mortos, feridos e desprovidos em sucessivos conflitos, pela degradação do seu território, pela negação da sua identidade e pelo desprezo às suas tradições?
Pelo estado democrático
Sem que sejam comparados dentro e fora de terras indígenas, dentro e fora de faixa de fronteira, dentro e fora do território nacional.
Mistura-se ainda, além de tudo que há, tudo o mais que possa haver: projeção de conflitos planetários, governos inconfiáveis, riquezas minerais inesgotáveis, biopirataria, cobiça pela Amazônia, gringos e ONGs suspeitos e até Estados indígenas. E também o que se possa imaginar:toda a faixa de fronteira povoada por gente mal feitora, onde antes os militares diziam haver um imenso “vazio demográfico”, cheio de “florestas virgens”.
O fato é que, salvo em alguns pontos notoriamente críticos, como entre Foz do Iguaçu e Ciudad Del Leste, no Paraguai, e outros corredores de tráfico, a faixa de fronteira continua como sempre, com predomínio de áreas com baixa ocupação demográfica, com alguma presença militar e quase nenhuma presença do Estado civil. Há alguns milênios deixou de ser um vazio demográfico, assim como as florestas deixaram de ser virgens, se é que algum dia o foram.
O que falta nas terras indígenas, na faixa de fronteira e em várias outras partes do território nacional, é o estado democrático de direito. É o planejamento civil do território, com a destinação das terras e a resolução dos conflitos. É a implementação de políticas de saúde, de educação e de segurança alimentar. É uma polícia competente. E que as Forças Armadas possam, com maior ou menor efetivo, dedicar-se à dissuasão de possíveis ameaças externas, com o apoio de todo povo brasileiro.
Beto Ricardo e Márcio Santilli
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