"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Não faz mais sentido se falar em direita e esquerda?

Após a queda do Muro de Berlim (1989) e a subsequente dissolução da União Soviética (1991), muitos membros da supostamente inexistente esquerda começaram a espalhar por aí que “esquerda” e “direita” passaram a se referir apenas a direções espaciais, porém perderam toda e qualquer conotação política.
Ledo engano, como pretendo mostrar.

Apesar disso, são esses mesmos indivíduos que continuam usando o termo “esquerda” como uma palavra-sucesso (success-word) e “direita” como uma palavra-fracasso (failure-word), de acordo com a terminologia do filósofo Gilbert Ryle, da Universidade de Oxford.

No Brasil, os usos respectivamente elogioso e depreciativo dessas palavras é coisa antiga. Em geral, dizer que alguém é “de esquerda” é algo positivo, meritório, valoroso, etc., mas dizer que alguém é “de direita” é negativo, demeritório, vergonhoso, etc. – razão pela qual muita gente, principalmente políticos, tem medo de se dizer de direita em público. É coisa que espanta e afugenta possíveis eleitores!

Como dizia o saudoso Nelson Rodrigues: “O brasileiro só de direita trancado no seu quarto e de luz apagada”.

Na realidade, algo pior do que xingar a mãe! Ou xingar um americano típico de big loser fazendo um L com o polegar e o indicador. Dois pesos e duas medidas. Se um indivíduo é de esquerda, todos os membros de direita são considerados de extrema direita, ou seja: fascistas ou nazistas, o que pouca diferença faz.
No entanto, quem não é de esquerda geralmente reconhece a diferença entre uma extrema esquerda, totalitária, e uma esquerda moderada, democrática. Em outras palavras: a diferença entre um comunista e um social-democrata. Neste ponto, penso como F. Hayek, para quem a social democracia corre sempre o risco de se transformar num socialismo totalitário. E como Roberto Campos, para quem “um socialista [democrático] é um comunista envergonhado”.

Ambos oferecem boas justificativas para suas afirmações contundentes. As de Hayek podem ser encontradas em “O caminho da servidão” (1944) e as de Campos, em “A lanterna na popa” (2004), duas leituras imperdíveis.

O grande precursor da social-democracia foi Otto von Bismarck (1815-1898), o Chanceler de Ferro, unificador do Estado alemão. Na sua época, diversos grupos comunistas estavam fazendo grande agitação e pregando a revolução. Bismarck era um reformista nacionalista e a maneira que ele encontrou para combatê-los consistiu em tomar sua bandeira mediante o atendimento de suas reivindicações sociais.

Para tal, ele criou o seguro-desemprego vitalício, assistência médica gratuita, ensino gratuito e outros programas sociais. Pelo fornecimento de intitulamentos aos cidadãos alemães, aumentou as provisões e, com isto também a burocracia e o custo do Estado. Não se pode dizer que o Estado prussiano, e posteriormente o Estado alemão, fossem monarquias constitucionais, mas sim absolutistas em que o kaiser delegou todos os poderes ao seu chanceler: príncipe von Bismarck.

Ele deu sua forte contribuição de caráter político-econômico, para as políticas públicas de caráter socializante, mas não para a democracia. Seu governo foi autoritário e durante a revolução de 1848 chegou mesmo a sustentar o direito divino dos soberanos – um verdadeiro fóssil da História, principalmente após a Revolução Francesa de 1789.

A democracia na Alemanha é instituição tardia, se compararmos com a Inglaterra que já era uma monarquia constitucional desde 1689 com a Bill of Rights, promulgada 100 anos antes da sangrenta e desastrosa Revolução Francesa cuja pior consequência foi a tirania de Nebulion Buonaparte (este era o nome não-afrancesado do abominável corso).

Quem ler Napoleão do historiador Paul Johnson saberá por que qualifico essa personagem da História de “abominável corso”. A Alemanha só conheceu a democracia após a Primeira Guerra com o advento da efêmera República de Waimar em 1919 – um regime parlamentarista transformado em presidencialista em 1930, com Hindenburg nomeando gabinetes muitas vezes de partidos minoritários no Parlamento.

A pior consequência desse presidencialismo foi a nomeação de Adolf Hitler como primeiro-ministro, ainda que o Partido Nacional Socialista (Nazista) fosse majoritário graças aos votos dos eleitores alemães. Quem pariu Mateus que o embale!

A introdução do socialismo democrático nas ideias políticas se deu antes mesmo de 1914, com o Partido Social Democrático liderado por Eduard Bernstein (1850-1932), um “revisionista” do marxismo totalitário, que justificava plenamente a expressão de Roberto Campos: “um comunista envergonhado”.

Sua principal discordância em relação ao marxismo-leninismo é que ele não aceitava a ditadura do proletariado como estágio necessário para o estabelecimento de um socialismo provisório com vistas ao milagroso advento de uma sociedade comunista “sem Estado e sem classes sociais”, como propusera a mente anarquista utópica de Karl Marx.

Como vimos, o atual Partido Social Democrático alemão resultou de uma síntese do Estado autoritário, mas provedor de Bismarck, com o Estado democrático, mas anticapitalista de Bernstein: marcado pela ideia de “economia social de mercado” (soziale Marktswirtschaft), que não apresenta grandes diferenças do sistema econômico do welfare state (Estado do Bem-Estar) do Partido Trabalhista britânico e do Partido Democrata americano.

Todos podem ser pensados em oposição ao pensamento socioeconômico do Partido Conservador britânico (Tory) – cuja grande líder contemporânea foi Margaret Thatcher – e ao Partido Republicano americano de Ronald Reagan, aliados num período da História marcado pelo ressurgimento do liberalismo epitetado pejorativamente pelos pensadores de esquerda alemães de “neoconservadorismo” (vide Jürgen Habermas) e pelos brasileiros de “neoliberalismo” – ambos os rótulos eivados de conotações extremamente pejorativas.
Grandes pensadores como o jurista Norberto Bobbio e o economista Murray Rothbard dedicaram livros à diferença entre esquerda e direita. Eles não pensavam se tratar de uma pseudodicotomia, como têm alardeado determinados pensadores de esquerda, principalmente após a dissolução da União Soviética e com o despontar do período pós-guerra fria.

O que pode conduzir a essa ideia de uma dicotomia, que supostamente pode ter possuído sentido e relevância até o fim da guerra fria e da bipoloridade e que supostamente perdeu totalmente ambos com a emergência da globalização e da multipolaridade, é a confusão de regime político e regime econômico feita por muita gente.

A democracia é um tipo de regime político contrastando com o totalitarismo, ao passo que são questões de natureza econômica um sistema dirigido totalmente pelo Estado, um sistema capitaneado pela livre iniciativa ou um sistema misto com a participação da livre empresa e do Estado, com maior ou menor a predominância de uma ou de outro.

O regime misto é atualmente o mais frequente em todo o mundo, juntamente com a maior ou menor participação da livre iniciativa. Segundo penso, é perfeitamente exequível, ainda que não seja desejável, um regime totalitário de esquerda ou de direita acoplado a um sistema econômico marcado pela predominância da livre empresa.

O Chile de Pinochet tinha uma economia de livre mercado, mas era uma ditadura de direita. A China de Deng-Chiao-Ping deu continuidade à ditadura de esquerda de Mao-Tsê-Tung, mas parece ter adotado o modelo chileno, fazendo as devidas adaptações. Deu lugar a uma economia de mercado, principalmente em cidades do litoral como Beijing e Shangai.

O sistema de fazendas coletivas foi apenas atenuado, com os agricultores podendo comercializar uma pequena parte da produção, e o sistema do litoral passou a ser uma espécie de “capitalismo selvagem”. Não muito diferente daquele que Karl Marx observou nas grandes fábricas inglesas da sua época e que ele não acreditou que pudesse melhorar gradativamente mediante boas reformas. Ao contrário, profetizou o fim do capitalismo causado por suas próprias “contradições internas”.

Como profeta, Marx atirou no que viu e acertou no que não viu.

Quem fez a revolução comunista não foi um país de capitalismo avançado – como a Inglaterra ou a Alemanha – mas sim um país semiagrário com um campesinato escravizado, como a Rússia. E quem se destruiu por suas próprias “contradições internas” não foi nenhum país de capitalismo avançado, porém justamente a União Soviética.

Tanto na Inglaterra na época de Marx como na China de Deng-Chiao-Ping na nossa época, podem ser observados a ausência de direitos básicos do trabalhador, regime de trabalho excessivo e desgastante, mulheres e crianças nas fábricas, enfim, um regime semiescravocrata, pois ninguém é obrigado a trabalhar, caso prefira morrer de fome. Não sei dizer se a China já aceitou as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas para efeitos internos continua mantendo seu regime semiescravocrata, tirando todos os benefícios de uma mão de obra abundante e barata, o que gera indizível mal-estar para os trabalhadores, porém grande competitividade de seus produtos baratos e de má qualidade inundando o mercado mundial.

A China passou a ser o maior parceiro comercial do Brasil – lugar antes ocupado pelos EUA – mas está fazendo justamente o que a esquerda atribuía aos EUA: comprando matérias primas e vendendo produtos industrializados. Impossibilitada de competir com o preço das mercadorias chinesas, a indústria brasileira definha a olhos vistos e corre o sério risco de entrar em decadência, como a indústria argentina desde a década de 30, sob a ditadura peronista. Mas não esqueçamos que a hipervalorização do real frente ao dólar e ao euro também tem concorrido para isso.

Para não mencionar a excessiva carga tributária tornando absurdamente caros os produtos de exportação brasileiros e mesmo os comercializados no país. Durante a vigência da guerra fria, países como o Brasil e o Chile foram obrigados a implantar regimes totalitários de direita manu militari como a única alternativa viável para evitar ditaduras de esquerda inspiradas no modelo cubano.

No entanto, o Chile acoplou a ditadura a uma economia aberta sob a orientação dos economistas da Escola de Chicago liderados por Milton Friedman – prêmio Nobel de Economia – ao passo que o Brasil optou pela estatização da economia e pela centralização administrativa. Só no governo Geisel foram criadas mais de 150 empresas estatais!

De um ponto de vista político, devemos ao general Ernesto Geisel o início da abertura para a democracia que teve continuidade com o general Figueiredo, porém de um ponto de vista econômico, nada temos a agradecer com o agigantamento do Estado e o encolhimento da livre iniciativa.

Desse modo, com a transição para a democracia, o Chile que já era um país em grande crescimento socioeconômico, tornou-se um país democrático continuando a crescer a até 14% ao ano. Foi o país que mais cresceu na América Latina nos últimos 30 anos e um dos que mais cresceu no mundo.
Mas o Brasil ainda está pagando alto preço de ter feito uma abertura política sem antes ter feito uma abertura econômica. E reparemos que esse terrível erro estratégico cometido pelos militares brasileiros não só não foi cometido pelos chilenos como também não o foi pelo camarada Deng-Chiao-Ping com sua ideia de “um país, dois sistemas”.

Indagado por jornalistas estrangeiros se, com o novo regime econômico, a China não se transformaria num país capitalista, Deng-Chiao-Ping respondeu com um vetusto e pragmático provérbio chinês: “Se o gato pega o rato, não importa a cor do gato”.

Estou certo de que se ele tivesse cedido a pressões e tivesse começado por uma abertura democrática na China, teria despertado demandas insustentáveis da grande população e inevitável frustração de seus anseios, o que levaria o país a rebeliões e ao caos com o inevitável retorno de um regime manu militari mais feroz ainda.

Mas afinal de contas que significa a dicotomia esquerda/direita hoje?

Sei que esses termos surgiram durante a Primeira República instaurada após a Revolução Francesa. Era de fato uma direção espacial: denominava os membros do Parlamento que se sentavam à direita e os que se sentavam à esquerda da mesa do Presidente, mas que já tinham algumas das ideias típicas de esquerda e de direita. Contudo, após a Revolução Russa (1917) e sua exportação para outros países da Europa e do mundo, a dicotomia adquiriu a conotação política que tem hoje.

O historiador Eric Hobsbawm denominou o século XX de “A Era dos Extremos” (1994), denominação bastante apropriada se levarmos em consideração as emergências do totalitarismo de esquerda (comunismo) e do totalitarismo de direita (nazifascismo), ambos brilhantemente combatidos por Karl Popper em “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945) e por Friedrich Hayek em “O caminho da servidão”.

Ao final da Segunda Guerra (1945) e com a derrota dos nazifascistas países do Eixo (Alemanha, Itália, Japão) ocorreu a derrocada da extrema direita. Em 1991, com a dissolução da União Soviética, a extrema esquerda sofreu um duro abalo, mas continuou tendo uma sobrevida na China, Coreia do Norte e Cuba. A Guerra da Coreia, na década de 50, produziu como resultado a divisão do país: Coreia do Sul, capitalista, com grande desenvolvimento socioecomômico e excelente IDH e Coreia do Norte, comunismo hereditário de Kim-Jong-Il, com ditadura feroz e milhões de famintos. Excetuando os três casos mencionados, o espectro político pós-guerra fria ficou reduzido praticamente a duas posições: direita moderada e esquerda moderada, ambas rejeitando os totalitarismos e aceitando a democracia como forma de governo.

No que tange à esquerda, uma distinção torna-se imprescindível: há uma esquerda que aceitou a democracia como um fim (Alemanha, França, etc.) e a que aceitou como um meio – mero expediente para ascender ao poder e acabar com a própria democracia: consumm’d with that which it was nourish’d by (consumida por aquilo mesmo com que foi nutrida) – Shakespeare.

Tenho razões para acreditar que essa é a posição do partido da situação no Brasil, que há muito adotou a estratégia gramsciana de gradativa hegemonia. Vide, por exemplo, as sucessivas tentativas de amordaçar a mídia e o uso assustador da propaganda esquerdista dos governos do PT. Uma das características básicas da esquerda moderada é o coletivismo contrastando com o individualismo da direita moderada.

Mas está em jogo a noção de indivíduo dentro da sociedade em processos de interação com seus sócios, não a de indivíduo fora da sociedade vivendo isolado como um misantropo, de acordo com a importante diferença feita pelo antropólogo Louis Dumont. Diferentemente do anarquismo – na realidade, um regime utópico – ambas consideram o Estado necessário, com a diferença de que a esquerda o vê como um bem necessário e a direita como um mal necessário.

A esquerda concede mais ênfase à igualdade e a direita à liberdade. A esquerda estende a noção de igualdade perante a lei à de igualdade social, ao passo que a direita limita-se a defender a primeira e considera a segunda uma utopia, simplesmente impraticável em virtude dos diferentes graus de talento, capacidade e prudência dos indivíduos, como já mostrou David Hume no século XVIII.

Mario Guerreiro

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