"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Consciência negra num mundo multicolor



"TODO BRASILEIRO TRAZ NA ALMA E NO CORPO A SOMBRA DO INDÍGENA OU DO NEGRO"  (Gilberto Freyre, historiador)

A reivindicação nasceu nas ruas, durante mais de 35 anos de luta do movimento negro brasileiro contemporâneo. Considerado criminoso em seu tempo, o líder palmarino Zumbi conquista status de herói nacional, quase 300 anos após sua execução. Mas será que a data de 20 de novembro serve para reflexão apenas aos afro-descendentes?

Não estranhe se questionarem o heroísmo de Zumbi, se lhe disserem que estudiosos comprovaram que ele manteve escravos, que mandou envenenar o tio, Ganga Zumba, seu antecessor na liderança do Quilombo de Palmares - localizado na Serra da Barriga, no atual estado de Alagoas, à época Capitania de Pernambuco -, entre outros supostos desmandos. Zumbi é cercado de histórias e lendas. Podem, sim, existem documentos que revelam esses fatos. 


Não estamos, porém, reivindicando a sua canonização, mas exaltando a resistência ao poder constituído escravagista do período em que viveu, aos que tentaram destruir seu quilombo e sua capacidade de organização, que fez de Palmares o primeiro estado republicano brasileiro.


É preciso que se entenda que ele é apresentado como um contraponto ao chamado "negro Pai João", símbolo dos negros e negras dóceis e conformados com a situação de escravidão. Além de combater a idéia de docilidade e conformismo, como a do mito da "mãe preta", subserviente e feliz em amamentar os filhos de seus senhores, a militância negra dos 60 e 70 sentia a necessidade de destruir todos os demais conceitos brancos do que seria "ser negro": sem capacidade intelectual, indolente, dado ao alcoolismo, hábil apenas no samba e no futebol, mulheres feias, mas voluptuosas, fáceis e ávidas em serem seduzidas e usadas como objeto sexual, entre outros.


Era também necessário combater a idéia de que no Brasil existia uma "democracia racial". Esse conceito significava uma coexistência pacífica e harmoniosa entre raças - especialmente entre negros e brancos -, com supostas oportunidades iguais para todos. Não conseguir uma ascensão era apontado como prova de inferioridade. Por outro lado, sabia-se que essa "paz" só era mantida enquanto o negro permanecesse num estrato social subalterno. Caso quisesse disputar espaço em patamares superiores, imediatamente era impedido, com argumentos absurdos. O menos nefasto era o da falta de "boa aparência".


Apesar do termo "democracia racial" não ser uma invenção do sociólogo Gilberto Freyre, nem ser mencionado em sua obra-prima Casa-Grande & Senzala, de 1933, a leitura dessa obra, principalmente após a década de 50, levou nossos intelectuais e jovens militantes a encontrarem ali as raízes desse pensamento. Por isso virou moda rejeitar a obra e o seu autor para aqueles que se empenhavam em construir o mito do negro inconformado e combativo, como já se fazia com relação à Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888.


Vale lembrar que o Brasil foi um dos últimos países no mundo a abolir a escravidão e que a essa lei foi assinada quando o regime escravocrata já estava falido. Desde o início do século 19, a Revolução Industrial, na Inglaterra, pressionava o país a pôr fim ao tráfico de escravos, que só foi extinto pela Lei Eusébio de Queirós, 1850. No mesmo ano, o fim da Guerra do Paraguai também contribuiu para essa falência com o retorno de ex-escravos ao quais se prometeu a liberdade em troca do engajamento militar no combate ao país vizinho.


Além disso, já era significativo o número de negros e negras livres, quer por terem fugido de fazendas e minas para viver em quilombos, quer pela compra da própria carta de alforria, ou por terem nascido após a Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), ou ainda por serem beneficiados pela Lei Saraiva-Cotegipe, também conhecida como Lei dos Sexagenários (1885), que dava liberdade para os que tivessem mais de 60 anos.


Enfim, a assinatura da princesa foi apenas uma última cartada diante do movimento republicano que se agigantava. Pouco mais de um ano depois, em 15 de novembro de 1889, a monarquia era deposta. Para muitos negros da época, gratos a Isabel, a República foi responsável pela não inserção de seu povo na sociedade brasileira. Por isso se mantiveram monarquistas.



ZUMBI, UM GRANDE ACHADO

Já no século 19, abolicionistas e intelectuais citavam Zumbi como herói, mártir e exemplo do espírito combativo do afro-brasileiro. Cantado em prosa e verso, ele surgia ainda de forma quase lendária. Há poucos anos, uma expressiva militante negra afirmou pelo microfone de uma rádio paulistana, bastante popular, que não existiu um personagem chamado Zumbi. 

Segundo ela, esse era um nome dado a vários líderes que viveram no Quilombo de Palmares, durante seus mais de 100 anos de existência (1600 - 1695). Imagino que ela tenha confundido Zumbi com o Fantasma das histórias em quadrinhos - "o espírito que anda" -, e deu um nó na cabeça dos ouvintes.


Há farta documentação e estudos sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares realizados em universidades brasileiras e internacionais. Entre os historiadores que pesquisaram esse personagem e o tema quilombismo, estão o baiano Edison Carneiro (1947), o gaúcho Décio Freitas (1973) e o carioca Joel Rufino dos Santos (1985).

Assim, como não estamos interessados na "santidade" de Zumbi, também não aceitamos que ele seja pulverizado a ponto de satisfazer aos interesses dos que negam sua existência. Zumbi existiu realmente, se mantém vivo no imaginário de nossa gente e é o alicerce da chamada Consciência Negra. Sem sombra de dúvida, é o maior achado para suprir a necessidade de um herói que energize o espírito de luta da camada excluída da sociedade brasileira. E "infeliz o povo que não tem heróis", afirma Bertold Brecht, em sua peça Galileu Galilei.


"A maior tentativa de autogoverno dos negros fora do Continente Africano", conforme definição do sociólogo Clóvis Moura, o Quilombo dos Palmares inspirou jovens intelectuais gaúchos a criar, em Porto Alegre, o Grupo Palmares. Em 1971, instituído pela ONU como o Ano Internacional para Ações de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, esse grupo liderou uma manifestação propondo que 20 de novembro, data da morte de Zumbi, se tornasse o "Dia Nacional de Consciência Negra".

A iniciativa partiu do poeta Oliveira Silveira, que nos últimos anos integrou o Conselho Nacional de Promoção à Igualdade Racial. Ele explica essa proposta: "O 13 de maio não nos satisfazia, não havia porque comemorá- lo. A abolição só havia abolido no papel, a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis a favor do negro."


Sete anos depois, o 20 de novembro já era consenso do movimento negro por todo o País. Só faltava o reconhecimento oficial, tal e qual aconteceu com Tiradentes, que foi enforcado em 1792 e manteve-se na obscuridade até a Proclamação da República, em 1889. Redescoberto como mártir da luta anticolonial, transformou-se em patrono cívico do Brasil - hoje também das polícias militares e civis de todos os estados - e a data de seu enforcamento, 21 de abril, virou feriado nacional.


"A FELICIDADE DO NEGRO É UMA FELICIDADE GUERREIRA. ZUMBI VIVE EM NÓS, HOMENS E MULHERES, NA CONSTRUÇÃO DE UM BRASIL JUSTO E DEMOCRÁTICO. AXÉ!" 
(Abdias do Nascimento, ex-senador e membro fundador do Movimento Negro)

No caso de Zumbi, porém, o reconhecimento não adquiriu status de feriado nacional. A Lei 10.639, de janeiro de 2003, que determina a inclusão no currículo escolar do estudo da cultura afro-brasileira e história africana, oficializou o que já era realizado extra-oficialmente pelas entidades do movimento negro e até em algumas escolas do país: um dia ou até uma semana de eventos que abrem discussão sobre a igualdade racial, inclusão, diversidade e outros temas relativos.



FERIADO PARA REFLETIR - Três estados brasileiros - Rio de Janeiro, o primeiro, em 1991; Alagoas (1995 ); e Mato Grosso do Sul (2002) - adotaram a data de 20 de novembro como feriado. Neles, se somam 335 municípios a parar oficialmente para homenagear Zumbi e promover uma reflexão baseada na Consciência Negra.

Mas há também os feriados municipais, como na capital paulista, desde 2004. Diversas cidades do interior e da Grande São Paulo, como Piracicaba, Jundiaí, Campinas, Embu, Guarulhos, Diadema, Santo André, Leme, Cordeirópolis, Limeira e Mococa, entre outras, também instituíram esse feriado. O pioneirismo dos militantes gaúchos só rendeu fruto em 2001, quando Pelotas entrou nesta lista, seguida por Porto Alegre, em 2003. O total está em torno de 370, um número pequeno diante dos 5.561 municípios brasileiros.

Em algumas cidades, como Americana, Araraquara, Valinhos, São Carlos, Marília, Jaboticabal e Botucatu, o feriado não foi oficializado, mas há declaração oficial reconhecendo a data. O mesmo ocorre em João Pessoa/PB e Juiz de Fora/MG. Uma das pioneiras nesse reconhecimento foi Itu, em 1988.


Em Santa Bárbara d'Oeste, a lei que instituiu o feriado municipal, em 2002, foi revogada por nova lei, em 2005, a partir do protesto do comércio local. Mesmo assim, o site oficial da cidade traz até hoje a divulgação de uma extensa programação para a Semana da Consciência Negra, em novembro de 2007. E, no Distrito Federal, como em dezenas de cidades Brasil afora, é ponto facultativo.

Mesmo sem manifestações cívicas, do porte das paradas de 7 de setembro, em muitas localidades se promovem marchas, palestras, exposições e outros eventos. Não se pode pensar o 20 de novembro como um feriado para se descansar, passear, viajar, mesmo que caia próximo a um fim de semana.

Os defensores da decretação de feriado sugerem que a população (não apenas os afro-descendentes) aproveite a data para observar a realidade em seu redor e, assim, entender, por exemplo, o que diz o professor Hélio Santos, ao afirmar: "O dia 14 de maio de 1888 é o dia mais longo da história do Brasil. Dura até hoje. Pois a única política pública voltada para a população negra libertada pela Lei Áurea foi criação da Delegacia de Vadiagem para punir aqueles que perderam seu trabalho, ao serem substituídos pelos imigrantes."

"ENQUANTO A QUESTÃO NEGRA NÃO FOR ASSUMIDA PELA SOCIEDADE BRASILEIRA COMO UM TODO, VAI SER MUITO DIFÍCIL NO BRASIL, CHEGAR AO PONTO DE EFETIVAMENTE SER UMA DEMOCRACIA RACIAL"
(Lélia Gonzales, antropológa e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado)


ZUMBI NO COTIDIANO

Feriado ou não, ponto facultativo ou com outra forma de comemoração, o 20 de novembro não pode passar despercebido. Por isso saímos às ruas de São Paulo para ouvir o que algumas pessoas sabem ou pensam dessa data.


"Desculpe, mas eu sou contra essas coisas", comenta um operário negro cinquentão, abordado em frente ao Teatro Municipal. Ele diz que é casado com uma descendente de italianos e entende que "se falamos em igualdade, não tem sentido ter um Dia da Consciência Negra. Se for assim, tem de ter Dia da Consciência Branca, da Consciência Vermelha (dos Indígenas), Amarela (asiáticos) e assim por diante".


A filha, estudante do curso médio, discorda: "Meu pai fala essas coisas justamente por não ter ainda parado para pensar em nossa história. Acho que é para isso que serve a Semana da Consciência Negra. Aprendi na escola que a busca da igualdade depende de nós. 'Quem sabe faz a hora, não espera acontecer'". O pai sorri amarelo e ambos seguem caminho, provavelmente conversando sobre esse assunto.


Uma senhora beirando os 80 anos, na entrada da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Payssandu, diz que se orgulha dessa data e que sempre participa da missa afro, na igreja Nossa Senhora da Achiropita, na Bela Vista. Não sabe, porém, dizer se essa missa acontece em novembro ou maio. Promovida pela Pastoral Afro, a primeira celebração desse tipo aconteceu há 20 anos, no centenário da abolição. Naquele ano, foi no mês de novembro. Em 2008, porém, aconteceu em fevereiro.


"Tô a pampa! Não faço idéia de que data é essa", responde um office boy, na Galeria Olido, onde, as quintas-feiras, se reúnem jovens para curtir Hip Hop. Mas indagado sobre Zumbi, imediatamente responde: "Tô ligado! Tem vários raps que falam dele". A garota que o acompanha contesta porque nessa data só se fale do herói: "E Dandara? Ela também foi assassinada, durante a invasão do Quilombo de Palmares. 


Mas quase ninguém fala nela". O jovem fica surpreso pelo conhecimento da "ficante" e ela explica que é estudante do Educafro e esse é um tema debatido na instituição.


Na Galeria do Rock, vários jovens ignoram a data e uma garota com maquiagem carregada em cores escuras diz que "Zumbi é um morto-vivo. Não é? Tem um monte deles no videoclipe do Michael Jackson. Não gosto do som dele. É pop. Me ligo em heavy metal. Também não gosto dele (Michael Jackson), porque está virando branco e abusa de criancinha. Quando era pirralho e pretinho, era até legal."


Surpresa, porém, causa uma estudante de Administração da UniPalmares, com pouco mais de 40, que se manifestou feliz pela oportunidade de poder voltar a estudar: "É muito bom fazer faculdade e poder pagar apenas 50% da anuidade. Acho, porém, um exagero o quanto se fala de negro lá. Pra mim é uma forçação de barra".


O que falta à maioria dos entrevistados talvez seja entender que só quando a Consciência Negra fizer parte da vida dos brasileiros de todas as ascendências, teremos um país que, por ser de pluralidade étnica, se pautará pelo respeito pleno e justiça social. Aí não haveria privilegiados e toda a sociedade ganharia com isso.




POR : OSWALDO FAUSTINO

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