"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 20 de agosto de 2016

O processo de impeachment nos Estados Unidos


Por:Ricardo Nascimento

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff trouxe à tona os limites imprecisos entre o direito e a política. Nós, operadores do direito, estamos condicionados a examinar a questão como se fosse uma demanda judicial a ser julgada pelo Poder Judiciário. Contudo, a Constituição prevê a competência da Câmara dos Deputados para autorizar a instauração de processo contra o presidente da República, em caso de crime de responsabilidade, cabendo ao Senado Federal processar e julgar o presidente da República. A função jurisdicional não foi reservada ao Poder Judiciário, mas às casas legislativas, órgãos eminentemente políticos, pautados pela parcialidade, típica das disputas políticas.

O Supremo Tribunal Federal tem se limitado a zelar pelo o devido processo legal do impeachment, abstendo-se de adentrar no mérito da decisão final, reservada, constitucionalmente, ao Senado Federal. A manifestação da maioria dos ministros não aponta para a mudança desse rumo.

O impeachment é um instituto com previsão na Constituição desde a proclamação da independência. A Constituição Imperial previa a responsabilização de ministros “por traição, peita, suborno ou concussão, abuso de poder e falta de observância da lei” (artigo 133), mas reservou à lei a regulamentação do processo (artigo 134).

A Constituição Republicana de 1891 deu os contornos do instituto, vigentes até hoje. Competia à Câmara dos Deputados a aceitação da acusação contra o presidente da República por crimes de responsabilidade, definidos na Constituição (artigos 29, 53 e 54). Recebida a acusação pela Câmara, o presidente seria suspenso de suas funções e julgado pelo Senado Federal, sob a presidência do presidente do Supremo Tribunal Federal, e com o quórum de deliberação qualificado de dois terços dos membros (artigos 33 e 53). Rui Barbosa, o principal redator da Constituição Republicana, buscou inspiração no modelo norte-americano.

A sintética Constituição Americana de 1787 contém apenas dois dispositivos sobre o impeachment. O primeiro reserva à Câmara dos Representantes o poder de dar início ao impeachment (Artigo 1º, Seção 2, item 5), enquanto o segundo fixa a competência do Senado para julgar o presidente, em julgamento presidido pelo presidente da Suprema Corte, com um quórum qualificado de dois terços dos membros (Artigo 1º, Seção 3, item 6). Nos Estados Unidos, o presidente, mesmo sendo processado no Senado, não fica suspenso de suas funções. O afastamento só se dá com a condenação definitiva pelo Senado.

Na história americana, apenas dois presidentes eleitos enfrentaram o processo de impeachment perante o Senado. Em 1974, o presidente Richard Nixon, sabedor que não teria apoio no Legislativo, renunciou, pouco antes da deliberação da Câmara dos Representantes sobre a abertura do processo. Já os presidentes Andrew Johnson e Bill Clinton chegaram a ser efetivamente processados no Senado.

Impeachment de Andrew Johnson

Ainda nos estertores da Guerra Civil, Abraham Lincoln alcançou a reeleição com uma composição política, tendo como vice-presidente Andrew Johnson. O presidente era do estado nortista de Illinois e filiado ao Partido Republicano e o vice-presidente era do estado sulista do Tennessee e filiado ao Partido Democrata. A composição visava à reconciliação e reconstrução do país após quatro anos de guerra civil.

Menos de dois meses depois do início do segundo mandato, Lincoln foi assassinado quando assistia a uma peça de teatro em Washington e a presidência caiu no colo de Johnson, um democrata sulista, com um Legislativo amplamente dominado pelo Partido Republicano.

Os Estados Unidos enfrentavam o desafio da reconstrução do país no pós-guerra civil. O Partido Republicano, ainda que tivesse representação majoritária, estava profundamente dividido entre moderados e radicais, estes favoráveis a uma severa punição aos líderes dos confederados derrotados na guerra civil e à imediata integração dos escravos recém-libertados. Johnson aliou-se aos moderados favoráveis a uma reintegração sem retaliação aos estados sulistas rebelados.

Ao romper a aliança com o Partido Republicano, dominado pela ala radical, Johnson perdeu o apoio da maioria do Legislativo e passou a sofrer sucessivas derrotas nas votações de interesse do governo, que foram reduzindo o seu poder.

O impeachment teve início em 1868, sob a acusação de violação ao Tenure of Office Act, que condicionava a demissão de certos cargos no gabinete à aprovação prévia do Senado. Johnson havia demitido o secretário de Defesa Edwin M. Stanton, um republicano radical, sem consulta prévia ao Senado. O demitido simplesmente se recusou a deixar o cargo.

Admitida a acusação na Câmara dos Deputados por 126 votos a 47, Johnson foi submetido ao julgamento pelo Senado, presidido pelo presidente da Suprema Corte. A maioria dos senadores votou pela condenação. O resultado, de 35 votos favoráveis ao impeachment e 19 votos contrários, foi, contudo, insuficiente para a condenação e consequente perda do cargo, por não ter sido atingido o quórum qualificado de dois terços. Faltou apenas um voto para o afastamento definitivo do presidente. Johnson conseguira apoio da minoria do Partido Democrata e atraiu os votos de 10 senadores da ala moderada do Partido Republicano.

Andrew Johnson cumpriu seu mandato até o fim, com poderes cada vez mais reduzidos e assistiu à eleição do sucessor, seu desafeto Ulysses S. Grant. Voltou ao Tennessee, que ainda o elegeu senador, e passou para a história como o presidente que não deixou de ser afastado pelo impeachment por apenas um voto.

Todo o processo de impeachment do presidente Andrew Johnson pode ser facilmente pesquisado na internet. Há sites com todas as principais peças processuais. Basta procurar em aqui ou aqui.

Mais de um século se passou, até que outro presidente americano tivesse de enfrentar um processo de impeachment.

Impeachment de Bill Clinton

Eleito em 1992, o 42º presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, viu seu Partido Democrata tornar-se minoritário tanto na Câmara dos Representantes como no Senado, logo após as eleições legislativas de 1994. O republicado conservador Newt Gingrich foi eleito speaker (presidente) da Câmara dos Representantes, dando início a uma agenda conservadora conhecida como Contract with America.

Clinton teve de conviver com uma maioria parlamentar oposicionista durante os dois mandatos e lidar com acusações de desvio de recursos públicos (escândalo Whitewater) e no campo pessoal (escândalos do assédio sexual a Paula Jones e Monica Lewinski).

Mesmo cercado pela onda conservadora, Clinton obteve novo êxito nas eleições presidenciais de 1996. O povo americano optou novamente por um Executivo democrata e um Legislativo dominado pelos republicanos. Poderíamos citar inúmeras justificativas para o resultado eleitoral, mas uma foi a principal: a economia americana ia bem.

O segundo mandato presidencial foi marcado pelo caso Monica Lewinsky, uma estagiária da Casa Branca com a qual o presidente foi acusado de ter tido relações sexuais na própria Casa Branca. Clinton negou o fato publicamente, mas sua versão foi sendo desconstruída pelas evidências vindas a público.

Somadas à acusação anterior de assédio sexual à Paula Jones, as tentativas frustradas do presidente Clinton de negar o envolvimento com Monica Lewinsky complicaram sua vida ética e politicamente. Assim como o presidente, a própria Lewinsky negou, sob juramento, terem eles tido relações sexuais, mas teve de se desmentir. Por fim, Clinton veio a público confessar que tinha tido relações impróprias com a ex-estagiária e pedir desculpas à nação.

Baseada na apuração levada a cabo pelo promotor independente Ken Star, a maioria republicana na Câmara dos Representantes admitiu o processo de impeachment sob a acusação de perjúrio, por ter mentido sob juramento sobre o envolvimento com Monica Lewinsky (228 votos a 206), e de obstrução de justiça em relação à investigação (221 votos a 212).

Mesmo com a maioria republicana, Clinton foi absolvido pelo Senado graças à ala moderada dos republicanos. Dos 100 senadores, 50 votaram pela condenação por obstrução da justiça e 45 pela acusação de perjúrio. Clinton conseguiu atrair 5 votos de republicanos moderados na primeira votação e 10 votos na segunda, conseguindo salvar o mandato. Mas a manobra presidencial na conquista dos votos pode ser explicada por duas razões: a economia continuava a ir bem e a maior parte da opinião pública era contra o impeachment.

Absolvido pelo Senado, Clinton terminou o seu segundo mandato ainda jovem, com apenas 54 anos, com o maior índice de aprovação de um presidente desde a 2ª Guerra Mundial. Atualmente, viaja o mundo dando palestras e sua esposa Hillary Clinton tem fortes chances de ser a primeira mulher eleita presidenta dos Estados Unidos.

Conclusão

Andrew Johnson, Bill Clinton e Dilma Rousseff tinham perdido a maioria nas duas casas legislativas, o que os expôs ao sério risco do impeachment. Mas a política é muito mais do que uma eventual maioria no Legislativo. A economia e o índice de aprovação do presidente contam, e muito. A maioria republicana fragmentou-se na votação do impeachment de um presidente popular em pleno boom econômico, como Clinton. No caso brasileiro, estes fatores estão contra a presidenta.

O fundamento jurídico do processo de impeachment não pode ser desconsiderado. Sem ele, a destituição do presidente eleito perde o respaldo constitucional e configura quebra da ordem jurídica. É uma série de fatores políticos e jurídicos conjugados que contribuem para o êxito ou fracasso de um impeachment.


Mas, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a avaliação final da proporcionalidade entre a falta imputada e a pena a ser aplicada é do Senado, uma casa essencialmente política, e não do Poder Judiciário.

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