Lucas De Laurentiis e
Peter Panutto
O Supremo Tribunal Federal exerce a função de guardião de
nossa Constituição Federal pelo controle incidental de constitucionalidade, com
efeitos apenas ao caso concreto, e por meio do controle principal de
constitucionalidade, através do qual interpreta a norma constitucional de forma
abstrata, vinculando toda a sociedade a seu entendimento.
Pelas suas características, são as decisões proferidas em
controle principal que geram mais impacto na própria corte e nos demais
Poderes. E foi no exercício deste modo de controle de constitucionalidade, no
julgamento de uma medida cautelar nos autos da Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 402, proposta pelo partido político Rede
Sustentabilidade para questionar a possibilidade de “réus em ação penal perante
o STF poderem ocupar cargos que estão na linha de substituição na Presidência
da República”, que o ministro Marco Aurélio, em caráter liminar, afastou Renan
Calheiros da presidência do Senado Federal, pelo fato deste senador figurar
como réu no STF em ação penal pela prática de peculato.
O fundamento utilizado pelo ministro foi o artigo 86, § 1º,
da Constituição Federal, que determina a suspensão das funções do presidente da
República “nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime
pelo Supremo Tribunal Federal”. A liminar foi concedida, no entendimento do ministro,
pela possibilidade de o réu Renan Calheiros assumir a presidência da República,
diante da linha de sucessão presidencial prevista no artigo 80 da Constituição
Federal. Invocou como precedente o afastamento do então Deputado Federal
Eduardo Cunha da função de presidente da Câmara dos Deputados, em decisão
proferida nos autos da Ação Cautelar 470.
O afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado
provocou grande impacto nos três Poderes. No Senado Federal, o próprio Renan se
recusou a receber a intimação judicial da decisão contra ele proferida, se
esgueirando do oficial de Justiça. Além disto, a Mesa Diretoria do Senado
Federal, em ato formal, se recusou a cumprir a decisão monocrática, informando
que aguardaria a decisão do plenário do Supremo sobre a questão. No âmbito do
Supremo houve mal estar entre os ministros pelo fato de uma decisão tão
impactante ter sido concedida monocraticamente, ficando péssimo o clima na
corte após manifestação do ministro Gilmar Mendes, na imprensa, tachando o ministro
Marco Aurélio de “inimputável” e afirmando que “no Nordeste se diz que não se
corre atrás de doido porque não se sabe para onde ele vai”. No âmbito do Poder
Executivo a decisão causou apreensão, pois o afastamento do senador Renan da
Presidência do Senado poderia prejudicar a programação política de votação no
Congresso de pautas de importantes ao Governo Federal.
Visando contornar a crise, a ministra Cármen Lúcia,
presidente do STF, levou ao plenário a medida cautelar apresentada na ADPF 402
para referendo da liminar concedida contra Renan Calheiros. O julgamento foi
iniciado com manifestação do ministro relator, Marco Aurélio, que reiterou os
fundamentos constantes da concessão da liminar e demonstrou, de forma velada,
grande desconforto com o não cumprimento da decisão pelo senador Renan
Calheiros e também com a postura do ministro Gilmar Mendes.
O segundo a proferir o voto foi o decano da corte, ministro
Celso de Mello, que esclareceu seu voto quanto ao mérito da ADPF consignando
“que os substitutos eventuais do presidente da República, caso figurem na
posição de réus criminais perante o tribunal, ficarão unicamente
impossibilitados de exercer a Presidência da República, embora possam exercer a
chefia e direção de suas respectivas Casas”. Acompanharam a divergência os
ministros Dias Toffoli, Teori Zavascki, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e a
ministra Cármen Lúcia. Por sua vez, acompanharam o voto do relator o ministro
Edson Fachin e a ministra Rosa Weber. Portanto, por maioria de votos, o Supremo
manteve Renan Calheiros na presidência do Senado Federal retirando-o apenas da
linha sucessória presidencial.
Destaca-se o voto do ministro Teori Zavascki, relator da
Ação Cautelar 470, que afastou Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos
Deputados, ressaltando que no caso de Cunha, não se levou apenas em
consideração a linha sucessória presidencial, pois havia também sérias
acusações contra Cunha de interferência em investigações criminais contra ele.
Denota-se que a invocação do precedente de Cunha para a
concessão da liminar contra Renan foi rejeitada por maioria do Supremo Tribunal
Federal. Isto porque as matérias de direito e de fato do caso Cunha não se
aplicavam plenamente ao caso Renan, pois no caso Cunha o réu, presidente da
Câmara, era acusado de postergar o julgamento de seu processo de cassação,
havendo, portanto, a justificativa não só do afastamento, mas da urgência da
decisão. Ressalta-se ainda que a interpretação do artigo 86, § 1º, da Constituição
Federal que justificou o afastamento de Cunha, criticada por parte da doutrina,
se deu por analogia, pois o texto constitucional fala em suspensão das
atividades do presidente da República, mas no caso Cunha a justificativa se deu
pelo uso arbitrário da função de presidente da Câmara, visando obstar a
investigação da própria Casa Legislativa e também do Supremo, pois Cunha havia
se tornado réu por conta das investigações da "lava jato",
justificando-se a urgência do caso, que não ficou demonstrado no caso Renan.
O julgamento da medida cautelar contra o senador Renan
Calheiros externou a tensão entre os Poderes da República e o Supremo Tribunal
Federal tem grande responsabilidade na manutenção da estabilidade do país. Cabe
a ele a última palavra sobre temas relevantes.
E para isto nossa Corte
Constitucional deve demonstrar sua força como órgão colegiado e não como um
apanhado de ministros autônomos. A força de um ministro, demonstrada por
decisões monocráticas ou por manifestações na imprensa, acarretam fragilidade
do tribunal.
A estabilidade do Supremo Tribunal Federal é imprescindível para a
estabilidade do país, tão abatido pelas crises política e econômica.
Imprescindível, neste momento, que o Supremo Tribunal Federal, presidido pela
ministra Cármen Lúcia, adquira uma postura de diálogo entre seus membros, para
que as decisões proferidas sejam efetivamente do tribunal e não de um ou outro
ministro. Só assim o tribunal conseguirá manter a legitimidade perante os
demais Poderes e perante sociedade.
Para tanto, cada ministro deve proferir
suas decisões com base nos precedentes do tribunal e não com base em seu
próprio entendimento. Mais do que isso, devem enfrentar os argumentos
apresentados pelos demais ministros de forma sincera e fundamentada. Neste
momento de crise, prudente que decisões impactantes para a nação sejam tomadas
em colegiado.
A força do Supremo Tribunal Federal está nas decisões dialogadas,
resultado do entendimento do plenário, e não na demonstração de força de um ou
outro ministro. Caso contrário nossa Corte Constitucional pode colocar em
cheque sua legitimidade.
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