Lenir Santos
Garantir direitos e não efetivá-los parece ser a história de
países de tardia democratização e sentimento de cidadania. No Brasil, no caso
da saúde, vive-se o permanente paradoxo de se ter bases jurídicas avançadas,
compatíveis com o Estado de bem-estar social e padecer do mal de sua não
efetividade ante políticas orçamentárias incompatíveis com sua
sustentabilidade. Podemos afirmar, sem medo de errar, que, em 28 anos, a saúde
dos brasileiros nunca foi uma prioridade dos governos.
O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição
em 1988, sempre teve orçamentos aquém de suas necessidades. Um sistema que
se implantou e sobrevive à duras penas, e mesmo que possamos dizer que, apesar
dos pesares e da má vontade dos governantes, conseguiu ser mais vitorioso do
que fracassado quando comparado ao que existia anteriormente. Na atual crise
brasileira, as pessoas mais combativas e conscientes sentem-se mais vulneráveis
e pessimistas pela trágica escolha governamental de asfixiar todos os direitos
sociais pela via fiscal, o que levará a saúde a enfrentar seu pior embate.
Os grandes problemas enfrentados pelo SUS como o baixo
financiamento; a gestão pública insatisfatória; a falta de parâmetros
orientadores do padrão de integralidade; a relação entre o poder público e o
setor privado, desregulada; a formação de profissionais da saúde para o setor
privado e não para o SUS; as lacunas legislativas quanto a aspectos relevantes
e o mais problemático de todos, a falta de sentimento de pertencimento da
população com o direito à saúde. Outras dificuldades, como a judicialização da
saúde, decorrem dessas macrocausas, como a inadequação dos serviços às
necessidades de saúde das pessoas.
O que ocorreu no Brasil a partir de 1988 foi a negação
prática do que a Constituição tutelou: direito à saúde de acesso universal,
igualitário e integral, financiado com recursos públicos. Essa negação se deu
pela via do orçamento durante 28 anos. A forma adotada pelos governantes foi a
procrastinação da garantia de recursos suficientes, afora o descaso com os
vazios legislativos que ainda existem. Enquanto países, como a Espanha, já
discutem projeto de lei sobre o direito de morrer dignamente, não conseguimos
nem mesmo ter regiões de saúde efetivas, disciplinar a integralidade da
assistência à saúde, respeitar a autonomia dos entes federativos quanto ao
rateio dos recursos da saúde.
Ao longo do tempo, o efeito deletério foi tornar o SUS um
sistema pobre para pessoas pobres, onde aos poucos o capital privado
nacional (e agora internacional) atinge seu intento que é conquistar uma
população com pouco sentimento de pertencimento aos seus direitos, cooptada
pela mídia, pelo glamour do consumo e da propaganda que vende a vida eterna,
levando as pessoas a desejarem comprar no mercado o que é direito.
No presente, a crise fiscal e política que se abateu sobre o
país foi motivação e, por que não dizer, subterfúgio para propor tornar o piso
da saúde teto congelado, lembrando que esse piso hoje é insuficiente em ao
menos 40% das reais necessidades sanitárias. Diante da crise fiscal,
estabeleceu-se que a contenção dos gastos públicos é a única solução e que
chegou o momento do “remédio amargo”: cortar o gasto com saúde e educação, sob
o manto de que, melhorando as condições econômicas do país, todos ganham (e
como disse o presidente da Câmara dos Deputados, os cidadãos poderão comprar planos
de saúde...).
Nenhuma medida de mudança quanto a desonerações fiscais,
criação de imposto sobre grandes fortunas, sonegação fiscal, reforma tributária
que enfrente a injustiça distributiva, federalismo distorcido que canibaliza os
municípios, juros altos e swaps cambiais, entre outros. Disso não se falou como
proposta de reforma necessária, justa e democrática.
Uma das motivações da PEC 55, aprovada em 30 de novembro, no
Senado Federal, é comer de vez o que sempre foi feito pelas beiradas, que é a
insurgência contra a saúde universal e igualitária e a vinculação de receitas
para seu financiamento. Isso está na exposição de motivos da PEC 241
(encaminhada à Câmara dos Deputados) de modo claro. Os gastos com despesas
sociais serão congelados por 20 anos, sem menção às despesas com o pagamento da
dívida, que abocanha metade das receitas da União; o gasto com saúde é de 1,7%
do orçamento da União e não será esse gasto o responsável pelo desequilíbrio
das contas públicas. Os juros que incidem sobre a dívida pública de 14% poderão
asfixiar a economia do país; os 1,7% do orçamento público com saúde, não.
A PEC 55 é uma forma camuflada de se dizer que a efetividade
do direito à saúde jamais se realizará porque, se os recursos são
insuficientes, daqui a 20 anos, com supressão de por volta de R$ 600 bilhões, o
SUS não será um sistema nem universal, nem integral e nem igualitário. Pode-se
dizer que esse congelamento é um estado de exceção na garantia de direitos
sociais, o que afronta o artigo 60, parágrafo 4º da CF. No dia da promulgação
da referida emenda constitucional estaremos enterrando o SUS.
Para ilustrar o desinteresse governamental com o SUS,
traçamos abaixo brevíssimo relato histórico, por datas, dos ataques
orçamentários desde seu nascimento (1988), com o golpe final da PEC 55:
1989/1992: 30% dos recursos do Orçamento da Seguridade
Social (OSS) deveriam financiar a saúde (LDO-LOA); 10% desse valor foram
destinados ao pagamento de serviços que não eram do setor saúde, como
alimentação, inativos, saneamento, assistência social;
1993/1994: grave convulsão no financiamento pelo não repasse de recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) para a saúde. Resultado: empréstimo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) de R$ 2 bilhões, pagos pelo Ministério da Saúde, que não foi o autor da dívida;
1994: Fundo de Emergência Social, precursor da DRU, retira 20% dos recursos da saúde;
1994: conversão da URV para o Real: perda de 30% dos recursos da saúde, enquanto as demais áreas do governo tiveram a conversão equivalente ao gasto do momento, a saúde foi prejudicada com valores menores;
1997: CPMF: redução de seu valor para a saúde. O que foi dado com uma mão foi retirado com outra. O orçamento da saúde com a CPMF deveria ser acrescido de R$ 6,9 bilhões, saindo de R$ 14,3 bilhões para R$ 21,2 bilhões; ficou em R$ 17,6 bilhões;
1998: reforma constitucional de 1995 destinou grande parte das contribuições sociais do orçamento da Seguridade Social para a Previdência Social, sem correspondente compensação de recursos para a saúde. Essa reforma levou o nosso saudoso jurista Geraldo Ataliba a dizer que não havia necessidade de se fazer essa reforma que prejudicaria a saúde: “A Constituição tem minúcias, diz algumas coisas que a rigor seriam puramente uma questão de lei e não de constituição...porque as forças políticas brasileiras representam a elite que teoricamente aceitam gastar dinheiro com os pobres, quer promover o cidadão, mas na hora de tomar decisão a escolha é sempre outra”;
2000: EC 29: vinculação do valor do ano anterior, acrescido da variação nominal do PIB. Isso se constituiu numa medida do Congresso Nacional na contramão do governo. Contudo, o governo à época tentou implantar a tese de que o ano de 1999 seria base permanente para o cálculo (base fixa), e não o valor de cada ano. Mas o governo foi vencido em sua tese, felizmente, ao menos uma vez;
2007: extinção da CPMF com grande perda para a saúde, sem reposição;
2015: EC 86, com fixação de 15% da RCL de modo progressivo: 13,2% de 2016 a 2020 (15%), com perdas de por volta de R$ 9 bilhões em 2016. Além do mais, houve no mesmo ano a abertura do capital estrangeiro para a saúde, ao arrepio da Constituição, estando sub judice no STF;
2016: aumento da DRU de 25% para 30%;
2016: votação pela Câmara dos Deputados da PEC 241 e no Senado da PEC 55 que definitivamente congelará os recursos da saúde por 20 anos, com perdas de mais ou menos R$ 600 bilhões no período, o que significa dizer uma forma de acabar com o direito à saúde sob o manto da responsabilidade fiscal.
1993/1994: grave convulsão no financiamento pelo não repasse de recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) para a saúde. Resultado: empréstimo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) de R$ 2 bilhões, pagos pelo Ministério da Saúde, que não foi o autor da dívida;
1994: Fundo de Emergência Social, precursor da DRU, retira 20% dos recursos da saúde;
1994: conversão da URV para o Real: perda de 30% dos recursos da saúde, enquanto as demais áreas do governo tiveram a conversão equivalente ao gasto do momento, a saúde foi prejudicada com valores menores;
1997: CPMF: redução de seu valor para a saúde. O que foi dado com uma mão foi retirado com outra. O orçamento da saúde com a CPMF deveria ser acrescido de R$ 6,9 bilhões, saindo de R$ 14,3 bilhões para R$ 21,2 bilhões; ficou em R$ 17,6 bilhões;
1998: reforma constitucional de 1995 destinou grande parte das contribuições sociais do orçamento da Seguridade Social para a Previdência Social, sem correspondente compensação de recursos para a saúde. Essa reforma levou o nosso saudoso jurista Geraldo Ataliba a dizer que não havia necessidade de se fazer essa reforma que prejudicaria a saúde: “A Constituição tem minúcias, diz algumas coisas que a rigor seriam puramente uma questão de lei e não de constituição...porque as forças políticas brasileiras representam a elite que teoricamente aceitam gastar dinheiro com os pobres, quer promover o cidadão, mas na hora de tomar decisão a escolha é sempre outra”;
2000: EC 29: vinculação do valor do ano anterior, acrescido da variação nominal do PIB. Isso se constituiu numa medida do Congresso Nacional na contramão do governo. Contudo, o governo à época tentou implantar a tese de que o ano de 1999 seria base permanente para o cálculo (base fixa), e não o valor de cada ano. Mas o governo foi vencido em sua tese, felizmente, ao menos uma vez;
2007: extinção da CPMF com grande perda para a saúde, sem reposição;
2015: EC 86, com fixação de 15% da RCL de modo progressivo: 13,2% de 2016 a 2020 (15%), com perdas de por volta de R$ 9 bilhões em 2016. Além do mais, houve no mesmo ano a abertura do capital estrangeiro para a saúde, ao arrepio da Constituição, estando sub judice no STF;
2016: aumento da DRU de 25% para 30%;
2016: votação pela Câmara dos Deputados da PEC 241 e no Senado da PEC 55 que definitivamente congelará os recursos da saúde por 20 anos, com perdas de mais ou menos R$ 600 bilhões no período, o que significa dizer uma forma de acabar com o direito à saúde sob o manto da responsabilidade fiscal.
A intensão é colocar fim à vinculação dos recursos da saúde
e, por consequência, ao SUS universal, igualitário e integral. Nunca o país
conviveu com um planejamento de longo prazo que previsse o acréscimo
progressivo de recursos para uma saúde nos padrões de países europeus que
aplicam por volta de 7% de seu PIB.
A judicialização é uma demonstração da ausência desse
compromisso; tanto que em 2014 foram por volta de 859 mil ações e, se suas
causas não forem enfrentadas, ela continuará crescente, exceto se o Poder
Judiciário entender que o congelamento do gasto público pode colocar limite à
efetividade do direito à saúde. Como congelar o que é insuficiente sob o
argumento de que o gasto é excessivo? Se é insuficiente, não pode ser excessivo.
Uma contradição em termos.
A falta de confiança, credibilidade do cidadão em relação ao
seu país, tanto quanto dos investidores nacionais e internacionais em razão da
alarmante corrupção no meio político, com quebra de segurança jurídica contratual,
também são causas da crise brasileira. Tanto é fato que autoridades
governamentais vêm repetindo à exaustão que é necessário dar segurança jurídica
aos investidores nacionais e internacionais, só se esquecendo de incluir a
segurança do cidadão. Nessa linha de raciocínio, impõe-se garantir também
segurança ao povo no tocante à efetividade de seus direitos sociais, os quais
devem estar resguardados em tempos de crises, como medida de boa governança e
justiça social.
O Estado não vive para si mesmo, mas para o seu povo e, por
isso, se fundamenta em suas leis e na garantia de seu cumprimento. Seu guia é a
Constituição, que não pode ser emendada de modo a alterar sua essência. O novo
constitucionalismo tem, dentre seus princípios, a segurança jurídica, os
direitos adquiridos, a não retroatividade, a boa-fé, a confiança recíproca e o
respeito a valores éticos e morais.
Seria importante firmar minimamente alguns valores que os
governantes, sob nenhum pretexto, podem transgredir:
Respeito à Constituição, seus princípios e valores sociais:
o governante tem que respeitar os princípios e normas constitucionais que não
podem ser violados sob nenhuma forma ou pretexto;
Vedação de retrocesso à efetividade dos direitos fundamentais:
o governo deve garantir políticas públicas e orçamento adequado ao alcance da
efetividade dos direitos constitucionais, com programas que visem à diminuição
das desigualdades sociais, com políticas de equidade social;
Limites às mudanças constitucionais: vedação à proposta de
emenda à Constituição que imponha retrocesso a direitos e garantias sociais,
sem tergiversação ou subterfúgio. Em caso de crise fiscal é dever discutir com
a sociedade a alocação dos recursos públicos.
Esses standards, se cumpridos, garantiriam à população e a
investidores nacionais e internacionais estabilidade e confiança necessárias. A
população não pode viver de “soluços” em seus direitos. As escolhas em relação
ao gasto público não podem retroceder na garantia dos direitos sociais.
A Constituição não pode ser um repositório inconsequente de
normas, sem materialidade na vida real. Seu cumprimento tem que ser efetivo,
com planejamento público quanto à diminuição das desigualdades, erradicação da
pobreza e outros elementos de desenvolvimento social. Os direitos fundamentais
não podem ficar relegados a um plano inferior, sujeitando seus cidadãos à
insegurança quanto ao futuro de seu país. Como diz Norberto Bobbio, chega de
falar em direitos; é hora de garanti-los.
Infelizmente a PEC 55 descumpre os standards acima
mencionados. O legislador constitucional, ao vincular recursos mínimos para a
garantia da saúde e educação, o fez como medida de segurança, exatamente para
proteger esses direitos contra as omissões públicas recorrentes pela rota do
financiamento.
Dados de diversas entidades e órgãos vêm demonstrando
que a saúde não se sustentará sem o necessário aumento de serviço a cobrir
déficits que se acumulam desde 1988; nem estamos a falar dos necessários
acréscimos que deem conta do crescimento demográfico, envelhecimento da
sociedade, inovações farmacologias e tecnológicas e inflação estrutural da
área.
O grave é que se está invertendo a política pública, com
imposição de perdas em vez dos acréscimos devidos, que não são luxos nem
abusos, mas direitos fundamentais. A pergunta que fica é qual o sentido de uma
nação?
Um Estado Democrático de Direito não pode conviver com o descumprimento
de preceitos essenciais à justiça social. A saúde é uma das condições de vida
digna da pessoa e do exercício das liberdades humanas.
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