23 dezembro 2012
O Brasil, após 21 anos de ditadura e 2 anos de transição, editou a Constituição de 1988. Ela veio disposta a resolver todos os problemas do Brasil. Prometeu saúde, educação, moradia, lazer, segurança, cuidou até de proteger o Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, deixando-o na órbita federal (art. 242, § 2º).
Para fixar o foco apenas na esfera da Justiça, a Carta Magna criou tribunais, fortaleceu as prerrogativas da magistratura e do Ministério Público, desceu a minúcias como caber aos tribunais conceder férias aos seus servidores (art. 96, inc. I, f). Em 2004, a Emenda Constitucional 45 alterou diversos dispositivos através da chamada “Reforma do Judiciário”, criando o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle da gestão administrativa, financeira e disciplinar dos tribunais.
Face a tais mudanças, 24 anos depois, era de esperar-se que a situação fosse de otimismo e satisfação. Paradoxalmente, o que se vê é exatamente o oposto. O sistema nacional de distribuição da Justiça alcançou unanimidade, só que negativa: todos estão insatisfeitos.
A começar pela sociedade, que não entende bem o que se passa, mas vê com total ceticismo o sistema judicial. Poucos nele acreditam. Muitos acham que tudo é demorado — e o que é pior — acreditam, equivocadamente, que a corrupção é rotina.
Para citar apenas três exemplos, a sociedade não compreende como alguém, condenado a alta pena de prisão por homicídio, possa deixar o Tribunal do Júri caminhando em total liberdade, como um réu condenado a 7 anos de reclusão vai cumprir pena em regime semiaberto e, menos ainda, como presos possuem celulares dentro das celas, se isto é proibido.
A Polícia Judiciária reclama, inconformada com a legislação, que considera por demais benevolente com os acusados, que, salvo casos especiais, sequer podem ser algemados. Além disto, disputa com o Ministério Público o poder de investigar e reivindica tornar-se carreira de Estado, tal qual as demais profissões jurídicas.
Os advogados criticam a morosidade nos julgamentos, afirmam que as ações são intermináveis e as execuções das sentenças um martírio. Os mais velhos relutam em adaptar-se ao processo eletrônico. Os mais novos afirmam ser difícil introduzir-se no mercado de trabalho. Todos afirmam que o mercado está saturado. Muitos afirmam que seus processos são decididos por assessores.
Os magistrados insurgem-se contra o excesso de trabalho. Das pequenas comarcas ao Supremo Tribunal Federal o volume de processos é enorme, pouquíssimos conseguem conciliar qualidade e produtividade. Além disto, sentem-se injustiçados pelas críticas que vêm recebendo indistintamente, muitos perdendo, com isto, a motivação.
O Ministério Público reclama da morosidade judicial, postula o direito de investigar fatos criminosos e não se conforma com a legitimidade ativa dada à Defensoria Pública para propor ações civis públicas.
Professores de Direito reivindicam serem ouvidos com mais atenção, afirmando que os julgamentos vêm se baseando cada vez mais nos precedentes e cada vez menos na melhor doutrina. Nas universidades públicas, insurgem-se contra os vencimentos que recebem, afirmando que são inferiores às demais carreiras jurídicas.
O Conselho Nacional de Justiça critica os tribunais, não por palavras, mas sim por resoluções, como se lhe fosse possível administrar a Justiça de todo o país, com seus 91 Tribunais e quase 200 milhões de habitantes, ou por liminares que suspendem promoções ou concursos de ingresso na magistratura (v.g., por haver entrevistas com candidatos, apesar disto ser rotina na contratação de qualquer profissional na iniciativa privada).
O STF, mesmo com os limites impostos nos casos de repercussão geral, permanece com milhares de processos aguardando julgamento. O STJ armazena milhares de recursos, Habeas Corpus chegam a levar mais de 1 ano para serem julgados. Os TRFs e os TJs armazenam milhares de processos aguardando a decisão do STF em casos de repercussão geral. Juizados Especiais, nos grandes centros, abarrotados de processos, levam anos para decidir os litígios que lhe são submetidos.
A Justiça do Trabalho, que se tornou ágil pela criação de tribunais em 24 estados, representa um gasto orçamentário significativo. A Justiça Federal continua com apenas cinco Tribunais Regionais Federais, apesar de a primeira instância ter decuplicado os seus quadros. Os custos com o Poder Judiciário aumentaram, mas a eficiência continua ausente.
E assim vão se multiplicando as queixas. Ninguém está satisfeito. Todos se acusam e se culpam reciprocamente. Eu, desde 1964 envolvido nas atividades da Justiça, nas mais diversas posições, confesso que nunca vi algo parecido. Conseguimos a difícil unanimidade: todos estão insatisfeitos.
Bem, mas se é assim, é preciso mudar. E para que isto ocorra temos todos (eu também) que reconhecer que somos parte desse sistema que está em franco descrédito. Portanto, a primeira regra é não culparmos os outros, mas sim a nós mesmos. Por ação ou omissão estamos contribuindo para este estado de coisas.
Se conseguirmos reconhecer que temos responsabilidade pelas falhas do sistema, seja ela em grau mínimo (os que não detêm poder algum, exceto o de denunciar), médio (os que detêm poder de gestão judiciária) ou máximo (os que têm meios de alterar a Constituição e as leis), já podemos passar a um segundo passo. Este será procurar quem saiba gerir melhor seu sistema judicial. Quem sabe selecionamos dez países e deles sacamos as melhores experiências? Sem restrições ideológicas, Estados Unidos, China, Singapura, Cuba, França, Chile ou Suécia? O que vale são experiências de sucesso e que possam ser adaptadas ao Brasil.
Em um terceiro passo, todos devem assumir um pacto: no exame das propostas de alterações do sistema, devem abstrair o interesse pessoal ou corporativo. Só vale o que é bom para o Brasil. Aqui prevejo muitas dificuldades.
Mas se tudo isto for impossível, se não tivermos coragem de mudar, bem, então talvez seja o caso de aproveitar a proximidade do Natal e fazer um pedido ao Papai Noel. Quem sabe cessem ou diminuam as lamúrias.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
O Brasil, após 21 anos de ditadura e 2 anos de transição, editou a Constituição de 1988. Ela veio disposta a resolver todos os problemas do Brasil. Prometeu saúde, educação, moradia, lazer, segurança, cuidou até de proteger o Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, deixando-o na órbita federal (art. 242, § 2º).
Para fixar o foco apenas na esfera da Justiça, a Carta Magna criou tribunais, fortaleceu as prerrogativas da magistratura e do Ministério Público, desceu a minúcias como caber aos tribunais conceder férias aos seus servidores (art. 96, inc. I, f). Em 2004, a Emenda Constitucional 45 alterou diversos dispositivos através da chamada “Reforma do Judiciário”, criando o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle da gestão administrativa, financeira e disciplinar dos tribunais.
Face a tais mudanças, 24 anos depois, era de esperar-se que a situação fosse de otimismo e satisfação. Paradoxalmente, o que se vê é exatamente o oposto. O sistema nacional de distribuição da Justiça alcançou unanimidade, só que negativa: todos estão insatisfeitos.
A começar pela sociedade, que não entende bem o que se passa, mas vê com total ceticismo o sistema judicial. Poucos nele acreditam. Muitos acham que tudo é demorado — e o que é pior — acreditam, equivocadamente, que a corrupção é rotina.
Para citar apenas três exemplos, a sociedade não compreende como alguém, condenado a alta pena de prisão por homicídio, possa deixar o Tribunal do Júri caminhando em total liberdade, como um réu condenado a 7 anos de reclusão vai cumprir pena em regime semiaberto e, menos ainda, como presos possuem celulares dentro das celas, se isto é proibido.
A Polícia Judiciária reclama, inconformada com a legislação, que considera por demais benevolente com os acusados, que, salvo casos especiais, sequer podem ser algemados. Além disto, disputa com o Ministério Público o poder de investigar e reivindica tornar-se carreira de Estado, tal qual as demais profissões jurídicas.
Os advogados criticam a morosidade nos julgamentos, afirmam que as ações são intermináveis e as execuções das sentenças um martírio. Os mais velhos relutam em adaptar-se ao processo eletrônico. Os mais novos afirmam ser difícil introduzir-se no mercado de trabalho. Todos afirmam que o mercado está saturado. Muitos afirmam que seus processos são decididos por assessores.
Os magistrados insurgem-se contra o excesso de trabalho. Das pequenas comarcas ao Supremo Tribunal Federal o volume de processos é enorme, pouquíssimos conseguem conciliar qualidade e produtividade. Além disto, sentem-se injustiçados pelas críticas que vêm recebendo indistintamente, muitos perdendo, com isto, a motivação.
O Ministério Público reclama da morosidade judicial, postula o direito de investigar fatos criminosos e não se conforma com a legitimidade ativa dada à Defensoria Pública para propor ações civis públicas.
Professores de Direito reivindicam serem ouvidos com mais atenção, afirmando que os julgamentos vêm se baseando cada vez mais nos precedentes e cada vez menos na melhor doutrina. Nas universidades públicas, insurgem-se contra os vencimentos que recebem, afirmando que são inferiores às demais carreiras jurídicas.
O Conselho Nacional de Justiça critica os tribunais, não por palavras, mas sim por resoluções, como se lhe fosse possível administrar a Justiça de todo o país, com seus 91 Tribunais e quase 200 milhões de habitantes, ou por liminares que suspendem promoções ou concursos de ingresso na magistratura (v.g., por haver entrevistas com candidatos, apesar disto ser rotina na contratação de qualquer profissional na iniciativa privada).
O STF, mesmo com os limites impostos nos casos de repercussão geral, permanece com milhares de processos aguardando julgamento. O STJ armazena milhares de recursos, Habeas Corpus chegam a levar mais de 1 ano para serem julgados. Os TRFs e os TJs armazenam milhares de processos aguardando a decisão do STF em casos de repercussão geral. Juizados Especiais, nos grandes centros, abarrotados de processos, levam anos para decidir os litígios que lhe são submetidos.
A Justiça do Trabalho, que se tornou ágil pela criação de tribunais em 24 estados, representa um gasto orçamentário significativo. A Justiça Federal continua com apenas cinco Tribunais Regionais Federais, apesar de a primeira instância ter decuplicado os seus quadros. Os custos com o Poder Judiciário aumentaram, mas a eficiência continua ausente.
E assim vão se multiplicando as queixas. Ninguém está satisfeito. Todos se acusam e se culpam reciprocamente. Eu, desde 1964 envolvido nas atividades da Justiça, nas mais diversas posições, confesso que nunca vi algo parecido. Conseguimos a difícil unanimidade: todos estão insatisfeitos.
Bem, mas se é assim, é preciso mudar. E para que isto ocorra temos todos (eu também) que reconhecer que somos parte desse sistema que está em franco descrédito. Portanto, a primeira regra é não culparmos os outros, mas sim a nós mesmos. Por ação ou omissão estamos contribuindo para este estado de coisas.
Se conseguirmos reconhecer que temos responsabilidade pelas falhas do sistema, seja ela em grau mínimo (os que não detêm poder algum, exceto o de denunciar), médio (os que detêm poder de gestão judiciária) ou máximo (os que têm meios de alterar a Constituição e as leis), já podemos passar a um segundo passo. Este será procurar quem saiba gerir melhor seu sistema judicial. Quem sabe selecionamos dez países e deles sacamos as melhores experiências? Sem restrições ideológicas, Estados Unidos, China, Singapura, Cuba, França, Chile ou Suécia? O que vale são experiências de sucesso e que possam ser adaptadas ao Brasil.
Em um terceiro passo, todos devem assumir um pacto: no exame das propostas de alterações do sistema, devem abstrair o interesse pessoal ou corporativo. Só vale o que é bom para o Brasil. Aqui prevejo muitas dificuldades.
Mas se tudo isto for impossível, se não tivermos coragem de mudar, bem, então talvez seja o caso de aproveitar a proximidade do Natal e fazer um pedido ao Papai Noel. Quem sabe cessem ou diminuam as lamúrias.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
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