"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 25 de setembro de 2016

Os medíocres fascistas e democratas


  LEANDRO KARNAL

Duas pessoas discutem sobre um tema espinhoso como o aborto ou a liberação de drogas. Quando a temperatura da conversa aumenta, um dos lados vai jogar, com grande certeza, o insulto de “nazista” ou “fascista” sobre o adversário. A sombra de Hitler alonga-se no horizonte. O professor não desmarcou a data da prova como pedido? −Nazistão − bradará o coro dos alunos indignados. Um governo lança a ideia de controle da mídia? Tática fascista!


O nazismo funciona como um conceito portemanteau, expressão francesa que usamos para falar em alças nas quais dependuramos tudo, como os casacos em cabides. Citar sempre o nazismo como modelo de ditadura é um recurso retórico eficaz quando se insulta adversários, pois algumas linhas gerais do fascismo alemão são do conhecimento geral e Hitler encarna o mal em estado absoluto para quase todas as pessoas.

Tente difamar um inimigo nas suas redes sociais dizendo que o pensamento dele se parece com o de Rafael Trujillo, ditador por três décadas da República Dominicana. O efeito será nulo. Lembrar-se de infames, como Alfredo Stroessner, é só um sinal de idade. Hitler é um nome mais magnético e eficaz, o tipo ideal de ditador. A memória nazista atravessa gerações. Todo professor de história sabe que a análise da personalidade de Hitler provoca atenção até em alunos. Ivan é “o terrível” para nós e “o grande” para russos”. D. Maria I é a “louca no Brasil” e a “pia” em Portugal. Hitler é o malvado favorito de todos.

Para aqueles que idealizaram o ditador nazista como um gênio do mal, é preciso dizer que se o mal é bem empregado no caso, gênio é um equívoco. Já ouvi muito: “Ele era um assassino, mas era brilhante”. As biografias tradicionais de Hitler, como a de Joachim Fest e John Toland, já tinham indicado que não se podia sustentar a tese da inteligência do cabo austríaco. De forma ainda mais contundente e recente, Ian Kershaw derruba, tijolo por tijolo, a imagem de estrategista poderoso ou brilhante. Era homem medíocre, limitado em todos os sentidos, com uma visão de mundo na qual sua tacanhice fazia par com seus ódios. Hitler é tão banal que fica o incômodo de como alguém assim chegou ao ponto dos genocídios que perpetrou. Talvez o segredo seja este: Hitler entendia o alemão comum por ser um homem comum. Como alguém estúpido chega ao poder? Ó brasileiros, ó cidadãos da minha terra amada: vocês tem certeza de que desejam me fazer este questionamento? Por que a Alemanha seria diferente de nós?

A biografia de Goebbels, de Peter Longerich, também revela dados curiosos. Como Goebbels era um doutor em Filosofia pela renomada Universidade de Heidelberg, imaginávamos que o verdadeiro gênio do mal era ele e não o seu chefe idolatrado. O livro destrói isso. Homem frágil, cheio de dor e de limitações e devotado como um cão ao Führer. O ideólogo oficial do regime, Alfred Rosenberg, não fugia a essa regra. Ele era filiado ao partido nacional-socialista antes de Hitler. Ler a obra principal dele, O Mito do Século 20, é quase constrangedor, ainda que tenha sido um ovo de serpente. A forca do tribunal de Nuremberg não matou nenhum gênio. A banalidade do mal, conceito de Hannah Arendt, serviria para mais gente além de Eichmann. Os nazistas não eram apenas comuns, também eram medíocres.

Talvez esteja nessa mediocridade a vitalidade e a eficácia do sistema fascista alemão. Explorar medos coletivos, dirigir violências contra grupos em meio a histerias sociais, aproveitar-se de crises para assustar a muitos com fantoches, usar propaganda sistemática e fazer da violência um método exaltado é uma estratégia que, infelizmente, não se encerra com o fim do regime nazista e nem precisa de brilhantismo. São recursos fáceis na maioria dos momentos históricos, em especial os de crise.

A mediocridade é uma das molas da história e um esteio da violência. Ao final da experiência totalitária nazista, seis milhões de judeus tinham desaparecido. Ao lado do racismo antissemita, outras vítimas como ciganos, testemunhas de Jeová, militantes comunistas, homossexuais e deficientes físicos e mentais tinham encontrado a morte. A mediocridade não pode ser considerada inofensiva.

Sempre me assusta que a democracia de massas compartilhe com as ditaduras a necessidade do espetáculo. A produção de um acordo que possibilite ao ditador ou mesmo a um democrata o exercício do poder, é algo estranhamente essencial a um sistema ou outro. Convenções partidárias e cenografia, guardados certos parâmetros, aproximam as apoteoses nazistas em Nürnberg e os encontros dos partidos democrata e republicano nos EUA atuais. Da mesma forma, a propaganda política que nos seduz/adestra/omite sobre os candidatos às prefeituras e ao cargo de vereador são, muitas vezes, seguidoras da ideia nazista de uma mentira repetida mil vezes.


Democracia é melhor do que ditadura. Na ditadura, o corpo da liberdade e dos direitos fundamentais é assassinado. Na democracia, ele é chicoteado e insultado, mas sobrevive. Na ditadura, a chama da liberdade é apagada; na democracia, ela bruxuleia. Gostaria que os dois continentes, o da liberdade e o do fascismo, fossem mais distantes. A sedução de um psicopata imbecil como Hitler talvez indique que, além de muitas pontes, os dois mundos têm fluxo migratório acima do desejado. Um bom domingo a todos vocês.

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