Duas pessoas discutem sobre um tema espinhoso como o aborto
ou a liberação de drogas. Quando a temperatura da conversa aumenta, um dos
lados vai jogar, com grande certeza, o insulto de “nazista” ou “fascista” sobre
o adversário. A sombra de Hitler alonga-se no horizonte. O professor não
desmarcou a data da prova como pedido? −Nazistão − bradará o coro dos alunos
indignados. Um governo lança a ideia de controle da mídia? Tática fascista!
O nazismo funciona como um conceito portemanteau, expressão
francesa que usamos para falar em alças nas quais dependuramos tudo, como os
casacos em cabides. Citar sempre o nazismo como modelo de ditadura é um recurso
retórico eficaz quando se insulta adversários, pois algumas linhas gerais do
fascismo alemão são do conhecimento geral e Hitler encarna o mal em estado
absoluto para quase todas as pessoas.
Tente difamar um inimigo nas suas redes sociais dizendo que
o pensamento dele se parece com o de Rafael Trujillo, ditador por três décadas
da República Dominicana. O efeito será nulo. Lembrar-se de infames, como
Alfredo Stroessner, é só um sinal de idade. Hitler é um nome mais magnético e
eficaz, o tipo ideal de ditador. A memória nazista atravessa gerações. Todo
professor de história sabe que a análise da personalidade de Hitler provoca
atenção até em alunos. Ivan é “o terrível” para nós e “o grande” para russos”.
D. Maria I é a “louca no Brasil” e a “pia” em Portugal. Hitler é o malvado
favorito de todos.
Para aqueles que idealizaram o ditador nazista como um gênio
do mal, é preciso dizer que se o mal é bem empregado no caso, gênio é um
equívoco. Já ouvi muito: “Ele era um assassino, mas era brilhante”. As
biografias tradicionais de Hitler, como a de Joachim Fest e John Toland, já
tinham indicado que não se podia sustentar a tese da inteligência do cabo
austríaco. De forma ainda mais contundente e recente, Ian Kershaw derruba,
tijolo por tijolo, a imagem de estrategista poderoso ou brilhante. Era homem
medíocre, limitado em todos os sentidos, com uma visão de mundo na qual sua
tacanhice fazia par com seus ódios. Hitler é tão banal que fica o incômodo de
como alguém assim chegou ao ponto dos genocídios que perpetrou. Talvez o segredo
seja este: Hitler entendia o alemão comum por ser um homem comum. Como alguém
estúpido chega ao poder? Ó brasileiros, ó cidadãos da minha terra amada: vocês
tem certeza de que desejam me fazer este questionamento? Por que a Alemanha
seria diferente de nós?
A biografia de Goebbels, de Peter Longerich, também revela
dados curiosos. Como Goebbels era um doutor em Filosofia pela renomada
Universidade de Heidelberg, imaginávamos que o verdadeiro gênio do mal era ele
e não o seu chefe idolatrado. O livro destrói isso. Homem frágil, cheio de dor
e de limitações e devotado como um cão ao Führer. O ideólogo oficial do regime,
Alfred Rosenberg, não fugia a essa regra. Ele era filiado ao partido
nacional-socialista antes de Hitler. Ler a obra principal dele, O Mito do
Século 20, é quase constrangedor, ainda que tenha sido um ovo de serpente. A
forca do tribunal de Nuremberg não matou nenhum gênio. A banalidade do mal,
conceito de Hannah Arendt, serviria para mais gente além de Eichmann. Os
nazistas não eram apenas comuns, também eram medíocres.
Talvez esteja nessa mediocridade a vitalidade e a eficácia
do sistema fascista alemão. Explorar medos coletivos, dirigir violências contra
grupos em meio a histerias sociais, aproveitar-se de crises para assustar a
muitos com fantoches, usar propaganda sistemática e fazer da violência um
método exaltado é uma estratégia que, infelizmente, não se encerra com o fim do
regime nazista e nem precisa de brilhantismo. São recursos fáceis na maioria
dos momentos históricos, em especial os de crise.
A mediocridade é uma das molas da história e um esteio da
violência. Ao final da experiência totalitária nazista, seis milhões de judeus
tinham desaparecido. Ao lado do racismo antissemita, outras vítimas como
ciganos, testemunhas de Jeová, militantes comunistas, homossexuais e
deficientes físicos e mentais tinham encontrado a morte. A mediocridade não
pode ser considerada inofensiva.
Sempre me assusta que a democracia de massas compartilhe com
as ditaduras a necessidade do espetáculo. A produção de um acordo que
possibilite ao ditador ou mesmo a um democrata o exercício do poder, é algo
estranhamente essencial a um sistema ou outro. Convenções partidárias e
cenografia, guardados certos parâmetros, aproximam as apoteoses nazistas em
Nürnberg e os encontros dos partidos democrata e republicano nos EUA atuais. Da
mesma forma, a propaganda política que nos seduz/adestra/omite sobre os
candidatos às prefeituras e ao cargo de vereador são, muitas vezes, seguidoras
da ideia nazista de uma mentira repetida mil vezes.
Democracia é melhor do que ditadura. Na ditadura, o corpo da
liberdade e dos direitos fundamentais é assassinado. Na democracia, ele é
chicoteado e insultado, mas sobrevive. Na ditadura, a chama da liberdade é
apagada; na democracia, ela bruxuleia. Gostaria que os dois continentes, o da
liberdade e o do fascismo, fossem mais distantes. A sedução de um psicopata
imbecil como Hitler talvez indique que, além de muitas pontes, os dois mundos
têm fluxo migratório acima do desejado. Um bom domingo a todos vocês.
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