Tércio Sampaio Ferraz Junior
O tema do modelo de Estado, no interior de uma discussão
constitucional, exige uma reflexão que conduza, por meio da rede normativa do
texto da Constituição, a uma percepção de sua realidade, tanto no sentido de
suas condicionantes históricas quanto do prognóstico normativo que ela
autoriza.
A experiência constitucional proporcionada pela Constituição
brasileira de 1988 nesses anos é bastante significativa, no que diz respeito à
instalação e à realização de um modelo de Estado. A proposta normativa,
constante do preâmbulo , fala em Estado Democrático. Induz, obviamente, a que
se pense, de um lado, nos tradicionais princípios do Estado de Direito
(exercício de direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, igualdade
etc.), mas, de outro, nas exigências das necessidades de democratização da
própria sociedade (que há de ser fraterna, pluralista, sem preconceitos,
fundada na harmonia social, etc.).
Este reconhecimento da necessidade de democratização da
própria sociedade, vista como um ente distinto do próprio Estado, mas ao mesmo
tempo integrado no Estado, aponta para uma complicada síntese entre o Estado de
Direito e o Estado Social ou Wellfare State. Na verdade, este reconhecimento
tem uma repercussão especial na forma constitucional do Estado. Deve-se ter em
conta, nesses termos, a passagem marcadamente peculiar, na vida constitucional
brasileira, de um Estado liberal burguês e sua expressão tradicional no Estado
de Direito, para o chamado Estado Social.
A propósito seria conveniente assinalar, no Estado de
Direito, para identificá-lo, a postura individualista abstrata, o primado da
liberdade no sentido negativo de não impedimento, a presença da segurança
formal e da propriedade privada. Portanto, um Estado concebido, como dizia Carl
Schmitt, como servo estritamente controlado da sociedade. Já no Estado Social,
dever-se-ia perceber uma espécie de extensão do catálogo dos direitos
individuais na direção dos chamados direitos de segunda geração, direitos
econômicos e sociais, portanto a consideração do homem concretamente situado, o
reconhecimento de um conteúdo positivo da liberdade como participação a que
corresponde uma complexidade de processos e técnicas de atuação do poder
público, o problema da intervenção do Estado no domínio econômico, donde uma
transformação conseqüente nos próprios sistemas de controle da
constitucionalidade e da legalidade. Sem qualquer intenção de definir modelos,
interessam estas considerações apenas na medida em que servem ao esclarecimento
de como, no Brasil, ocorre a passagem constitucional do Estado de Direito para
o Estado Social.
Pode-se dizer que o Brasil nasceu sob a égide de uma
constituição formal. Isto é, desde o início de sua existência independente, o
Estado brasileiro foi um Estado constitucional, cujo processo constituinte
surgiu como um desdobramento da Revolução Liberal de O Porto, de 1820 que, por
sua vez, era uma conseqüência da Revolução Francesa.
Quando se fala em Estado constitucional entenda-se um Estado
cujo poder é limitado e organizado por uma constituição escrita nos moldes do
constitucionalismo do final do século XVIII, enquanto um movimento de fundo
liberal, expressão dos movimentos políticos da sociedade burguesa de então.
Independente em 1822, Império constitucional em 1824, a relação entre Estado e
sociedade civil no Brasil foi, contudo, desde o princípio, uma relação sui
generis. Isso porque, ao contrário do que sucedeu no processo constitucionalista
na Europa, nos Estados Unidos da América e, até mesmo, num certo sentido, ao
contrário do que aconteceu nos demais países da América Latina, o Brasil teve
uma formação política diferente, em que o Estado, enquanto organização
administrativa, com competências e funções discriminadas e delimitadas,
enquanto, pois, aparelho burocrático, teve uma formação extremamente precoce.
Há uma observação de Alceu de Amoroso Lima, de que o Brasil teve Estado antes
de ter sociedade. Esta observação espelha com propriedade a realidade
brasileira que se procura explicitar. Praticamente 50 anos depois da
descoberta, o Brasil já tinha, nos rudimentos, um aparelho de Estado, uma
organização de governo, logo trazida e implantada pelos portugueses na nova
terra. Apesar dessa formação precoce de um aparelho de Estado, a capacidade de
mobilização política da sociedade desenvolveu-se de forma mais lenta e mais
restrita.
Ou seja, o Estado que nasce constitucionalmente em 1824 internalizou
e consolidou as estruturas monárquicas oriundas do proclamado Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves de 1815, favorecendo sua centralização precoce.
Assim, dotado de um aparato administrativo colonial relativamente complexo e
que se transmitiu de forma pacífica e intacto para o Estado imperial, a
unificação política brasileira e sua expressão constitucional ocorrem
rapidamente entre os anos de 1822 e 1825. Mas a mobilização política da
sociedade só ganhou intensidade e penetração um século depois.
Na verdade, a penetração ampla do Estado associada a fatores
como partidos políticos regionais e oligárquicos, forte clientelismo rural,
ausência de camadas médias organizadas politicamente acabaram por inviabilizar
a institucionalização de formas de participação política e social oriundas da sociedade
civil. Em conseqüência, enquanto nos países europeus em geral e nos Estados
Unidos da América, em particular, o Estado sempre foi visto como uma projeção
da sociedade civil - e isto fazia parte da ideologia liberal -, pois atuava
como uma espécie de árbitro nos confrontos da cidadania burguesa, no Brasil
sucedeu o inverso. Pode-se dizer até mesmo que, entre nós, a sociedade civil é
que foi uma projeção do Estado. Como diz Hélgio Trindade (Bases da Democracia
Brasileira: lógica liberal e práxis autoritária, in Como Renascem as
Democracias, 1985, p. 49) o Estado, que nasceu antes da sociedade, é que foi o
agente que propiciou a configuração e o aparecimento de elites sociais no País
e não ao contrário. Entende-se deste modo que , por esta formação diferente do
que sucedeu no restante da América, o Brasil tenha sido o único Estado que se
instaurou como uma monarquia.
Ora, a repercussão desse fato na elaboração constitucional
brasileira foi marcante. Como as elites sempre foram constituídas por meio do
Estado, não foram elas que constituíram o Estado, a sua formação ideológica se
deu às avessas. Ao invés dela vir da sociedade civil para a sociedade política,
ela veio desta para aquela. Daí aquilo que, no Brasil, costuma ser denominado
de importação de ideologias. Por exemplo, o movimento constitucionalista
brasileiro de 1823 ocorreu por emulação de um movimento português de 1820,
cujas idéias vinham do Iluminismo francês. Isto também aconteceu, é verdade,
com os Estados Unidos da América, mas de uma forma diferente.
Ali a
incorporação de idéias iluministas veio ao encontro de uma experiência
histórica vivida pelos imigrantes puritanos numa terra em que, não havendo
nenhum poder instituído, principiou-se a desenvolver uma organização baseada no
princípio da igualdade e do consenso mútuo, cujo instrumento escrito foi o
famoso Compact celebrado pelos líderes do navio Mayflower em 1620. Com base
nele, um típico instrumento social de estruturação da convivência, é que se
configuram, depois, as Fundamental Orders of Connecticut de 1639.
No Brasil, ao contrário, é preciso reconhecer que, o ideal
Constituinte se implantou como um movimento no interior do aparelho de Estado.
Se a Assembléia Constituinte convocada em 1823 não chegou a produzir uma
constituição, porque foi dissolvida, a Constituição que se produziu por força
de uma determinação de D. Pedro I, continha não obstante os sopros de todo o
constitucionalismo europeu. Daí a tendência que se consagrou depois, em meados
do século, para o parlamentarismo.
A Constituição do Império não era uma
Constituição parlamentarista, mas a vida política brasileira, por contingências
históricas próprias mas também por inspiração européia, foi se transformando
numa experiência parlamentarista, até o ato que na prática estabeleceu o
parlamentarismo no Brasil. Essa Constituição europeizada, que estabelecia
formalmente uma monarquia constitucional, concedia ao imperador, como se sabe,
por meio do chamado poder moderador, um dispositivo que lhe conferia um poder
de veto como de um árbitro de última instância para todas as questões que
pudessem surgir nas relações entre os demais poderes.
Esse poder moderador foi
inclusive o ponto de discórdia de D. Pedro I com os políticos da época e que o
conduziu afinal à abdicação. No Segundo Reinado (1841), com D. Pedro II, este
poder foi parcialmente atenuado, produzindo a divisão da elite política em dois
partidos (conservador e liberal) e viabilizando o funcionamento da monarquia
parlamentar, na qual o poder moderador era instrumento de arbitragem política.
Entre suas principais atribuições, conforme a Constituição imperial, estavam a
de nomear os senadores, escolhidos de um lista tríplice de nomes eleitos nas
províncias, a de sancionar leis, a de dissolver a Câmara dos Deputados e nomear
Ministros de Estado. Pelo lado da participação eleitoral no processo político,
as eleições eram indiretas para a escolha dos membros do Parlamento,
distinguindo a Constituição os votantes (que incluíam os analfabetos) dos
eleitores, reconhecendo como qualificados para votar os homens maiores de 25
anos (salvo se bacharéis ou oficiais, que podiam votar com idade inferior) e
dispondo renda líquida anual de 100 mil réis.
Para ser eleito os requisitos
eram os mesmos, salvo o da renda, que devia ser o dobro. Ao final do século, em
1881, a idade é diminuída para 21 anos e a eleição direta é adotada, embora
isso não chegasse a significar nenhum alargamento significativo do nível de
participação política.
Em síntese, pode-se dizer que a primeira experiência
constitucional brasileira, por meio da manutenção da monarquia pela elite
política, facilitou a obtenção de um consenso básico entre os governantes,
garantindo um nível razoável de legitimidade e estabilidade, importante para a
preservação da unidade territorial. Ou seja, quando, no Brasil, o sistema
político começa a se defrontar com as contradições mais complexas do
regionalismo (com alguma manifestação, na época do Império, no período da
Regência) as questões da unidade nacional e a construção de um aparelho de Estado
complexo e estável já tinham sido superadas.
Ao final do século XIX tivemos a proclamação da República,
que, embora preservasse a dominação oligárquica preponderantemente rural,
acabaria beneficiando-se dos efeitos modernizadores decorrentes da abolição da
escravatura (1888) sobre a economia cafeeira, que se dinamiza com a introdução
do trabalho livre e de imigrantes europeus. O movimento republicano vinha
crescendo desde o Manifesto Republicano de 1870 e o aparecimento do jornal A
República. As idéias empolgaram sobretudo o exército e a República acabou
proclamada por Deodoro da Fonseca, ministro do Império, em 15 de novembro de
1889. Dezoito dias depois, em 3 de dezembro, um decreto nomeou uma comissão de
cinco membros para elaborar o projeto de Constituição. E, em 21 de dezembro,
convocou-se a Assembléia Constituinte.
Apareceram três anteprojetos, que foram transformados num
único, redigido por Rangel Pestana. Sua discussão foi rápida, iniciando-se em 4
de novembro de 1890 e limitando-se a alguns pontos principais: a organização
federativa, a discriminação de rendas, a unidade do direito, a dualidade da
magistratura, o sistema de eleição presidencial, a liberdade religiosa, a
organização dos Estados. A relativa facilidade com que foram obtidos os consensos
mostra, na composição da Assembléia, uma forte identidade ideológica que unia
republicanos a antigos ministros de Estado da monarquia. Na verdade, a
introdução do regime federativo veio ao encontro das oligarquias políticas
regionais, cujo poder se confirmou e se fortaleceu. Houve assim mais uma
coincidência de propósitos: importava-se um modelo externo, desta feita do
constitucionalismo norte-americano, para respaldo de uma situação local que,
por seu intermédio, se justificava. A República e as elites republicanas que
estiveram presentes à Constituinte de 1890 emergiram de dentro do aparelho de
Estado e ali se impuseram.
O novo regime presidencialista, sob o signo do
federalismo republicano, implantou um regime político descentralizado, sob
controle de partidos regionais, representativos de oligarquias estaduais
dominantes e coordenados nacionalmente pelo Presidente da República. Com o novo
regime constitucional extingue-se o sistema eleitoral censitário, com base em
renda mínima, mas os analfabetos, os praças de pré do exército nacional e os
religiosos de claustros ficavam excluídos. Com isso, a classe dirigente, mesmo
ampliando parcialmente o regime representativo, consegue manter a eficiência e
a legitimidade de sua posição perante a coletividade.
Tratava-se, na práxis
constitucional, de um republicanismo fortemente autoritário que iria sofrer as
primeiras pressões liberalizantes apenas na década de 20. Nesse sentido deve-se
reconhecer que o retardamento de demandas populares entre nós se explica por essa
revitalização da dominação oligárquica com a implantação do federalismo
republicano, que reforçou a hegemonia das elites regionais, bastante eficaz no
plano nacional. Acrescente-se a isto a reconversão das funções militares e
cívicas da antiga Guarda Nacional da época da Guerra do Paraguai em cargos
honoríficos de natureza política, os "coronéis", que serviram para
uma eficiente mediação entre o centro e a periferia e deram ensejo ao chamado
"coronelismo político".
A Revolução de 1930 não deixou de ser um movimento contra a
Constituição de 1891. Mas na sua esteira não vinha um projeto constituinte,
conseguido a cobro dos constitucionalistas paulistas da Revolução de 1932. A
Constituinte de 1934 desvencilhou-se, em parte, das orações brilhantes, entremeadas
de citações inglesas e norte-americanas do século XIX. Mas dentre os 214
deputados, eleitos por voto popular e os 40, eleitos por classes profissionais,
o choque do liberalismo autoritário anterior com os eflúvios do fascismo
italiano foram inevitáveis.
A Assembléia Nacional Constituinte foi convocada em
novembro de 1933 e passou oito meses discutindo o texto de um anteprojeto para
uma nova Constituição, elaborado previamente pela chamada Comissão do
Itamaraty, dirigida por Afranio de Melo Franco. As políticas regionalistas
estavam fortemente representadas por meio das bancadas dos grandes Estados. Mas
Getúlio Vargas neutralizava habilmente a sua importância por intermédio dos
deputados das classes profissionais. Mais uma vez de dentro do aparelho de Estado
era projetada uma vanguarda de elite política que teve por mérito, afinal, a
aprovação de uma Constituição avançada para o campo social, introduzindo-se os
direitos trabalhistas, dispositivos de caráter nacionalista, em que, não
obstante, a inspiração externa, de novo, se fazia presente.
Com a Revolução de 1930 o sufrágio se torna secreto e quase
universal, com a introdução do voto feminino, mantendo-se a exclusão dos
analfabetos. Porém, a radicalização político-ideológica entre 1934 e 1937,
provocada em grande parte pela mobilização de massa oriunda do Integralismo, e
da Aliança Nacional Libertadora, de 1935, sob controle do Partido Comunista,
solapou o consenso revolucionário de 1930, esvaziando-lhe o ideário liberal e
reforçando as tendências autoritárias. Legitimou-se, assim, o golpe militar e
frustraram-se as expectativas de alternância na sucessão de Getúlio Vargas em
1938.
Em 10 de novembro de 1937, um golpe de Estado dissolveu o
Congresso e extinguiu a Constituição de 34. Foi preparada uma nova Carta, que
ficou conhecida como "Polaca", por sua inspiração: a Constituição da
ditadura polonesa. Elaborada por Francisco Campos, foi outorgada ao País por
Getúlio Vargas. Desta feita, não houve Constituinte. Com a Carta Constitucional
de 1937 ocorre um refluxo autoritário, sob o controle de uma estrutura de poder
centralizada, desmobilizadora de uma ação política partidária e basicamente
paternalista, com o que se estabeleceu a matriz burocrática e corporativista do
Estado. Com isso, o padrão brasileiro da interação Estado/Sociedade Civil
adquiriu dois componentes bloqueadores fundamentais: a expansão de mecanismos
estatais de controle tendendo a reduzir o espaço de estruturação autônoma da
sociedade civil e a atitude persistente das elites políticas, independentemente
dos regimes políticos, de dissuadir formas de participação de tipo
liberal-democrático (Trindade, p. 61).
Assim, embora a Constituição de 1937
reconhecesse uma Câmara dos Deputados, com representantes do povo, estes eram
eleitos por sufrágio indireto, cujos eleitores eram os vereadores municipais e
mais dez cidadãos por município, eleitos para compor o colégio eleitoral (art.
47). De outro lado, previa a Constituição uma segunda Câmara chamada Conselho
Federal, composto de um representante por Estado, escolhido pela respectiva
Assembléia Legislativa mas sujeito a veto do Governador. Contudo, toda a
matéria de administração econômica, aí incluídas as relações de trabalho, eram
submetidas a um Conselho de Economia Nacional, composto de representantes
sindicais e associações profissionais reconhecidos em lei, com paridade de
representação entre empregados e empregadores. Este Conselho era dividido em
seções e nelas havia três membros designados diretamente pelo Presidente da
República. Na verdade, porém, este, por meio de decreto-lei de sua exclusiva
competência, praticamente monopolizava o processo legislativo.
O fim do Estado Novo, instituído em 37, ocorreu em 45. O
ditador foi deposto pelas Forças Armadas e o Governo Provisório convocou uma
Assembléia Nacional Constituinte que, instalada em fevereiro de 1946, tomou a
Constituição de 34 como base de suas discussões. No impulso da queda do
nazi-fascismo em todo o mundo, o forte componente liberal da Constituinte de 46
deu-lhe a necessária base consensual. Apesar disso, o tipo de política
conciliadora, que acima de tudo manteve as estruturas do aparelho de Estado
herdados do Estado Novo da Constituição de 1937, acabou por fazer da
Constituição de 46 um corpo de enunciados programáticos em questões fundamentais.
O que permitiu que nem sempre fosse concretizada, ou por razões de
incompatibilidade com a realidade para a qual tinha sido feita, ou por força de
acomodações políticas. De fato, o influxo liberal da Constituição de 1946,
marcado por um presidencialismo forte e com tendências desenvolvimentistas cujo
equilíbrio era dado por um Congresso mais conservador, teve antes o sentido de
uma liberação da ordem fascista e de uma ordenação formal do poder nacional.
Lembrava mais um liberalismo à moda de Locke, deste modo menos propenso ao
liberalismo à moda francesa, considerado como ameaça à sociedade civil e
tendente à anarquia. Nessas condições, permanecia o reconhecimento da função do
Estado para exercer o papel de protetor da sociedade. Com isso, a experiência
constitucional de 1946 assinalava um persistente hibridismo ideológico e
institucional, combinando estruturas liberais com uma prática conservadora
senão autoritária. Isto culminava no que Jaguaribe chamou de "democracia
eleitoral" e que culminaria no que Schmitter, mais atrevidamente,
denominou "democratura".
Em 1964, nova revolução, politicamente manifestada no
desequilíbrio provocado pela possibilidade de um Congresso menos conservador
aliado a um presidencialismo reformista, e, em 67, uma outra Constituição. Não
houve convocação de Constituinte. Por meio de um ato institucional, o Poder
revolucionário outorgou competência ao Congresso Nacional devidamente expurgado
para elaborar o novo texto. Foi criada uma comissão para a apresentação de um
anteprojeto. A comissão, contudo, por incompatibilidade com o Poder revolucionário,
acabou por se dissolver. E o anteprojeto foi o produto da lavra de técnico
afinado com o novo regime.
A Constituição de 1967 não foi preservada de alterações
revolucionárias. Destinada a consagrar os ideais desenvolvimentistas mas
constitucionalmente balisados de 1964, ela teve curta duração, posto que em 13
de dezembro de 1968 reapareceu o Poder revolucionário, com a edição do
famigerado Ato Institucional Nº 5. Aquele Poder, transitório por definição,
havia esgotado sua missão com a edição do AI-4, que convocou o Congresso,
extraordinariamente, para discussão, votação e promulgação do projeto que viria
a ser a Constituição de 1967. Ao reaparecer, reabriu o processo revolucionário.
Apareceu, depois, a Emenda nº 1 de 1969, que, praticamente, reformulou a
Constituição de 1967 por inteiro, mantendo, ademais, no seu corpo, o AI-5 e os
poderes revolucionários que dele decorriam. Esta convivência de Constituição
com atos revolucionários persiste até 13 de outubro de 1978 quando, por força
das injunções políticas, o chamado processo de distensão iniciado pelo então
presidente Geisel conduz o Brasil à Emenda Constitucional nº 11, que revoga os
atos institucionais.
Daí para frente o País viveu um regime institucional
caracterizado por uma espécie de hibridismo constitucional, posto que a
Constituição que restou vigente, embora expurgada dos atos institucionais,
continuou a albergar dispositivos coerentes com o espírito autoritário do
regime de 1964, ao lado de outros, em que se podia entender uma vocação mais
democrática. Disto resultou um texto tecnicamente pouco sistemático em muitos
aspectos, impossível de receber um tratamento unitário em termos de princípios
básicos. De um lado, por exemplo, à iniciativa privada era garantida uma
preeminência; de outro, diversas normas permitiam uma intervenção do Estado no
domínio econômico sem os correspondentes freios. O mesmo acontecia com o regime
federativo, proclamado expressamente, mas emasculado por outros dispositivos
que, em matéria tributária, garantiam a supremacia da União sobre os Estados e
Municípios.
A Constituição brasileira do regime autoritário de 1964, em
termos da Emenda n. 1 de 1969, acabou por enfatizar ao extremo aquela
impotência política genérica da sociedade civil perante uma tecnocracia estatal
bem montada e estruturada. Nela ficava claro o menosprezo do voto como moeda
básica de barganha política ou o reconhecimento da superioridade dos técnicos
da racionalidade econômica sobre qualquer forma de representação popular - a
desproporção de forças entre Executivo e Legislativo era, nesse sentido,
ostensiva - ou a eficiência da repressão militar. Isto não impediu, é verdade,
um desprendimento de forças econômicas, capazes de assegurar auspiciosas taxas
de desenvolvimento na década de 70.
Contudo, esse modelo constitucional
desenvolvimentista do ponto de vista econômico, se, no começo, mostrava uma
predisposição para deixar a sociedade civil suficiente e aparentemente livre no
seu isolamento político, ao correr do tempo essa liberdade foi adquirindo sua
face real de concessão do Estado, em que a cidadania, como finalidade, era
antes um objetivo a realizar-se no futuro (desenvolvimento econômico como
condição de posterior desenvolvimento político). Pode-se, nesta linha de
observação, entender o sentido político adquirido pelo movimento que culminou
na Constituição de 1988. Ao contrário do que sucedera sempre no passado, o novo
processo constituinte não veio empolgado por nenhum princípio eminente, como a
independência, em 1822, a república, em 1889, a luta contra as oligarquias
regionais e as conquistas sociais na Europa da entre-guerra, em 1930/34, o
fascismo, em 1937, a restauração da democracia liberal, em 1945. Ele apenas se
postava contra o regime autoritário de 1964, mas não buscava explicitamente
nenhum modelo externo, embora, posteriormente, alguns traços da constituição
portuguesa viessem a ser percebidos.
Esta ausência de um modelo externo explícito marca uma
peculiaridade da Constituição vigente em face das anteriores. Talvez por isso
se possa, no caso dela, buscar na sua controvertida sistemática um elo próprio,
capaz de ligar tendências aparentemente divergentes que a fazem ora um
presidencialismo com traços parlamentaristas, ora uma social-democracia com
traços corporativistas, ora um neo-liberalismo com traços intervencionistas,
ora um capitalismo com traços estatistas, ora um desenvolvimentismo com traços
assistencialistas etc.
Esta sistemática controvertida não foi, ademais, fruto
de uma tendência consciente e de uma proposta explícita, mas resultou do
próprio processo constituinte de 1987, que não partiu de nenhum projeto, mas
distribuiu as diferentes temáticas por inúmeras comissões, cujos resultados
foram encaminhados depois a uma comissão central, onde se deu então a
convergência formalmente dispersiva das várias pressões sociais. Nesta
convergência e à luz de seu passado constitucional é que se torna significativo
o modelo de estado proposto como Estado Democrático de Direito.
O que se propôs na Constituinte de 87 foi um processo de
transformação do Estado. E com essa noção não se exprime apenas a sujeição do
Estado a processos jurídicos e a realização não importa de que idéia de
direito, mas a sua subordinação a critérios materiais que o transcendem,
principalmente a interação de dois princípios substantivos. O princípio da
soberania do povo e dos direitos fundamentais, que está no Artigo 1º. parágrafo
único, incisos I, II e III, é conjugado com o da realização da chamada
democracia econômica, social e cultural como objetivo da democracia política,
que está também no Artigo 1º, nos incisos IV e V, e no Artigo 3º, incisos I,
II, III e IV.
O que vem sendo percebido, no entanto, na experiência
recente da Constituição brasileira vigente, é que uma compatibilização do
Estado de Direito com o Estado Social traz algumas dificuldades significativas.
Seria preciso, de um lado, garantir em cada caso uma situação de compromisso
entre os grupos sociais que assegurasse um mínimo de critérios comuns de
valores que fossem admitidos por todos. De outro lado, um quadro constitucional
rigoroso sem o qual a atuação do Estado, inevitavelmente sujeito a grupos de
pressão e a interesses estamentais e corporativistas da burocracia, pode se
tornar facilmente uma espécie de exercício de arbitrariedade camuflado por
supostos ditames de princípios públicos relevantes.
As dificuldades dessa compatibilização, em face das
exigências mencionadas, repousam afinal no inevitável reconhecimento de que
elas têm caráter distinto. A exigência de um compromisso é um problema
tipicamente político nos seus meios e nos seus fins, enquanto a exigência de um
quadro constitucional rigoroso é um problema tipicamente jurídico formal.
Essa dualidade de caráter vem sendo percebida, na verdade,
no fato de que o Estado de Direito é um conceito formalmente jurídico, jurídico
formal, o mesmo não sucedendo com o conceito de Estado Social (Ernst Forsthoff:
Rechtsstaats im Wandel, 1976, p.89). As garantias proporcionadas pelo contorno
constitucional do Estado de Direito são assim acima de tudo delimitações com
sentido eminentemente técnico normativo. Pressupõem portanto um modelo de
Estado que em relação à liberdade dos cidadãos deixa valer o status quo. Já as
garantias exigidas do Estado Social pressupõem um Estado politicamente ativo que
desempenha funções distributivas, que em última análise desconhece o dualismo
entre Estado e sociedade.
Em conseqüência, enquanto para o Estado de Direito o
fenômeno do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu contorno
constitucional, o Estado Social extravasa essas limitações porque nele as
possibilidades de extensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir
intensidades sutis e num certo sentido até fora de controle do ponto de vista
do Estado de Direito. Afinal, se ao indivíduo para sobreviver não basta mais,
como acontecia, no Brasil, desde o século XIX, um relacionamento direto e
concreto com as fontes naturais, na medida, pois, em que a grande massa está
urbanizada e metida nas malhas da envolvente industrialização, isso tudo exige
providências organizacionais que nenhuma corporação isolada pode fornecer.
Então esse indivíduo se percebe não mais como alguém que vive num Estado, nem
como alguém que depende do Estado, mas como uma espécie de ativista político
potencial. Nos últimos anos, pode-se dizer que, de certo modo, o impeachment do
Presidente, aliado a uma expressiva falência do assistencialismo social herdado
do corporativismo fascista de 1937, cria novas bases para a compreensão da
relação Estado/sociedade. E é esse processo de transformação que agora com a
Constituição de 88 nos atinge talvez de uma forma mais aguda como nunca em
nossa História pregressa.
O fato de que a nossa estrutura institucional das leis
básicas, enquanto constitutivas do Estado de Direito, provém de uma experiência
marcada pelo hibridismo liberalismo conservador/ práxis autoritária se aplica a
uma realidade que não mais permite ater-nos a certas fórmulas de rigor
formalista sem que nos obriguemos a abrir inúmeras exceções, acabou mudando o
caráter geral dessas normas. Este contraste se espelha, hoje, no detalhismo da
Constituição, capaz de albergar exigências ora tendentes a reclamar os
benefícios de uma democracia social extensiva ora pedindo as cautelas próprias
de um industrialismo neoliberal emergente. Mesmo as normas que consagram os
direitos fundamentais não fogem a essa característica e isso obviamente afeta a
lógica interna do Estado de Direito, e deve ser considerado como um dado
relevante quando se discute o modelo constitucional de Estado brasileiro.
Para compreender essas transformações teremos que partir do
caráter positivado das normas das constituições modernas. A positivação foi uma
das idéias que corporificam o movimento constitucionalista a partir do século
XIX principalmente. E um dos traços centrais do Estado de Direito foi assim a
fixação de uma ordem estatal livre na forma de normas positivas, sujeitas às
formalidades garantidoras da certeza e da segurança. Dessa forma protegia-se a
liberdade conforme a lei e as declarações expressas de direitos individuais,
antes presentes de uma forma difusa na teoria do direito natural racional, são
um exemplo típico.
Isso exigiu uma espécie de formalidade constitucional que,
no Brasil, foi se alimentando e se desenvolvendo desde o século XIX. Essa
formalidade conferia à Constituição uma transparência e uma estabilidade
indispensáveis. Graças a essa formalidade, as constituições então puderam
submeter-se às chamadas regras usuais de interpretação. Por seu intermédio, no
entanto, conseguimos chegar ao sentido e ao controle da eficácia da
constituição, que acabavam por minimizar a práxis constitucional
correspondente. A sua estabilidade decorria do formalismo, não obstante as
práticas autoritárias da realidade política e social.
Para efeito de um modelo constitucional para o Estado de
Direito concebido como um Estado mínimo, reduzido em suas funções, essa
formalidade tinha uma orientação específica que eu chamaria de orientação de
bloqueio ou função de bloqueio, conforme o princípio da legalidade e da
constitucionalidade que formalmente limitava a atuação do Estado. Isto
funcionou bem, no Brasil, até 1930. Não podemos desconhecer nesse passo que as
normas constitucionais, seja na Constituição imperial seja na Constituição
republicana de 1891, continham obviamente elementos jurídicos que a
diferenciavam das demais normas, do que um normativismo ideologicamente
formalista, supostamente neutro e acrítico, chegava a dar conta.
A partir de 1930, contudo, entrou em cena uma ordem política
global do Estado constitucional que obrigou a certas correções e
especificações. No limiar dessas transformações que caracterizariam a
complicada convivência do Estado de Direito com o Estado do Bem-Estar Social ou
Estado Social, Ruy Barbosa fazia observar o seguinte: "A concepção
individualista dos direitos humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos
sucessos deste século, para uma noção incomensurável nas noções jurídicas do
individualismo restringidas agora por uma extensão cada vez maior dos direitos
sociais. Já não se vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de
unidades individuais acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma
unidade orgânica em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis de
todos os lados a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à
associação, o egoísmo à solidariedade humana". Isso foi dito no começo
deste século (A Questão Social e Política no Brasil in Revista do Brasil,
abril, 1919, p.39/s.).
Essas palavras de Rui, se nós as entendemos bem, apontavam
já para uma espécie de desformalização da constituição e da interpretação da
constituição, o que ele certamente não encampava nestes termos, em toda a sua
extensão. Mas mostravam uma preocupação que iria se tornar aguda nos dias de
hoje. Mais ou menos na mesma época, Max Weber (Wirtschaft und Gesellschaft,
1976, p. 505 ss.) já apontava para tendências que iriam, como dizia ele,
favorecer uma dissolução desse formalismo jurídico que nasceu junto com o
modelo do Estado de Direito. Ele previa uma certa disparidade entre as
legalidades lógicas próprias do pensamento formal jurídico e os efeitos
econômicos visados, bem como as respectivas expectativas em relação a esses
efeitos. Surgiam, dizia ele, exigências materiais dos modernos problemas de
classes, de um lado, acompanhadas, de outro, de propostas de ideologias
jurídicas que se guiavam por critérios valorativos contidos na expressão social
do direito. Estas mudanças, que se tornaram expressivas na Europa desde os anos
20, não foram capazes, porém, no Brasil, de quebrar o hibridismo da práxis
constitucional que o acompanhou até agora.
Portanto o que está ocorrendo na experiência constitucional
brasileira atual, certamente já vivenciada na Europa desde os anos 20, talvez
pudesse ser assinalado em termos de uma tomada de consciência social e política
da distinção entre um modelo constitucional de Estado com a função de bloqueio,
que cabe para as Constituições de 1824 e 1891, e um modelo constitucional de Estado
com a função de legitimação das aspirações sociais, que foi, formalmente,
próprio das Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69. Esse segundo
significaria que certas aspirações se tornariam metas privilegiadas, no caso da
Constituição fascista de 1937 e da autoritária de 1967/69, até mesmo acima ou
além de uma conformidade constitucional estritamente formal. Elas fariam parte
por assim dizer de uma pretensão inerente a própria Constituição. Isso
quebraria o Estado de Direito como ele foi pensado no passado, isto é, com a
exclusiva função de bloqueio.
Na verdade, a idéia subjacente ao modelo de Estado com
função de legitimação, em que constituições instauram uma pretensão de se verem
atendidas expectativas de realização e concreção, traz para a nossa experiência
constitucional uma consideração de ordem valorativa que a experiência alemã
percebera na década de 20. Ou seja, pressupondo-se que uma constituição
apresente no seu corpo normativo um sistema de valores, o modelo de Estado que
ela institui se torna uma realização de valores e exige essa realização. Na
verdade, ela não estabelece um Estado, mas propõe a realização de um Estado.
Não está se falando da oposição entre uma concepção
formalista e uma práxis autoritária, nem ignorando que o Estado Constitucional
com função de bloqueio também pudesse buscar uma "ratio" imanente por
meio dos tradicionais métodos teleológicos, sociológicos, axiológicos que
ressaltassem, por exemplo, o valor da liberdade individual. O problema ao qual
se refere aqui é outro. Quando se opõe um modelo de Estado com a função de
bloqueio ao Estado com função de legitimação de aspirações sociais, o que entra
em pauta é o problema de como captar o sentido das constituições no momento em
que, concebidas estas como sistemas de valores, o modelo de Estado que elas
instituem se transforma num instrumento de realização política, com base na
qual a atividade legislativa e judicial será forçada, pela pressão social, a
concretizar princípios e programas implicitamente agasalhados no texto
constitucional. Ou seja, a questão deixa de ser um problema de correto
delineamento do Estado com a sua carga lógica, histórica, sistemática,
teleológica e até valorativa, para tornar-se um problema de conformação
política dos fatos ao modelo, isto é, de sua transformação conforme um projeto
social ideológico.
Essa mudança corresponde, no Brasil de hoje, a uma
transformação do Estado constitucional enquanto Estado de Direito formal, que,
no Império e na Primeira República, ostensivamente, e nas demais, até 1988, de
forma ideologicamente encoberta, pressupunha uma distinção entre Estado e
Sociedade como entidades autônomas. Na Constituição de 1988, as tarefas que são
postas ao Estado, o que não só leva à multiplicação das normas, mas também à
sua modificação estrutural, põem a descoberto as suas limitações. Exige-se do
Estado a responsabilidade pela transformação social adequada da sociedade, ou
seja, colocam-se para ele outras funções que não se casam plenamente com a
função de bloqueio dos velhos modelos constitucionais. Mas o resultado é, no
momento, um sentimento de impotência do Estado que, na verdade, põe em cheque a
distinção entre Estado e Sociedade e a arraigada concepção do Estado como
protetor da sociedade civil.
A estrutura constitucional do Estado protetor, no Brasil,
sempre foi condicional e retrospectiva. Os fins só interessam na medida em que
as condições sociais eram dadas e obedecidas. Se os meios não fossem dados,
esses fins deveriam ser apenas formalmente considerados e, na prática, ignorados.
Quando, porém, a pressão social crescia e a relação de poder se sentia abalada,
a relação meio-fim se invertia na forma de uma ruptura constitucional. Assim,
os diversos discursos revolucionários, no Brasil, sempre pressupunham que os
fins pusessem uma tal exigência que, se as condições não existissem, deveriam
ser encontradas por meio de uma ruptura.
Uma vez alterada a Constituição,
porém, voltava a função de bloqueio que pressupunha que os preceitos
constitucionais estatuem princípios e finalidades fundamentais, em relações aos
quais o intérprete no entanto não pode articular sentidos e objetivos, senão
aqueles que já estejam reconhecidos desde então, "ex tunc", na
própria estrutura de poder. O regulador político das rupturas constitucionais
brasileiras era, assim, uma espécie de princípio de proibição de excessos, isto
é, proibição de articulação de interesses da própria sociedade salvo se
protegidos , sob a alegação de favorecer-lhes o exercício. Daí a imagem oficial
do homem cordial brasileiro apesar das crueldades de fato que viessem a
ocorrer.
A questão muda de figura no momento atual, em face de uma
experiência constitucional que parece desafiar as velhas formas de pensar as
exigências postas ao Estado Social. A estrutura programaticamente exigida pela
realidade social cria uma tensão entre o Legislativo e o Executivo a qual, por
conta de uma função de legitimação atribuída ao texto constitucional, pressupõe
que o intérprete esteja autorizado a articular e a qualificar o interesse
público, o interesse público coletivo, o interesse individual posto como um
objetivo pelo preceito constitucional. Esta exigência se reflete, hoje, num
sentimento de discricionariedade hermenêutica na relação entre os três poderes
constitucionais, o que conduz, de um lado, a uma exacerbação no uso de medidas
provisórias por parte do Executivo em face do Legislativo e a cobrança de uma
verdadeira politização das decisões judiciais.
A experiência constitucional
atual parece pressupor então que os preceitos constitucionais estão submetidos
a certas finalidades que exigem realização não na forma de um Estado protetor,
mas de uma sociedade que deseja prescindir da tutela estatal. Algumas dessas
finalidades são de ordem normativa estrutural. Assim, os preceitos dirigidos à
participação e prestação positiva do Estado Social são leis imperfeitas,
"leges imperfectae", isto é, não são imediatamente realizáveis sem
uma atuação do próprio Estado, mas que, por sua vez, não se esgotam nessa
atuação. Daí a exigência de que a própria sociedade deve então prover uma
identificação dos meios sociais a fim de que a norma possa ser efetiva. Na
recente eleição brasileira esta questão foi ostensivamente posta na forma de um
debate até mesmo sobre eventuais mudanças reclamadas pelo texto constitucional
não para alterar-lhe o sentido social, mas para viabilizá-lo como estrutura
social.
Outras condições são de ordem jurídico-funcionais. Como se
supõe que a fixação constitucional de objetivos traduz valores, que no entanto
por si sós não permitem a percepção de diretrizes vinculantes, exige-se do
intérprete institucional que ele se direcione para a configuração da ordem
social desejada, a partir da qual se terá o controle da constitucionalidade. Os
reguladores dogmáticos desta função, no entanto, criam uma espécie de
insegurança formal, mormente na atuação do poder judiciário, pois parecem
perigosamente abertos, flexíveis. Os fins articulados e qualificados devem
estar na dependência dos meios disponíveis e identificáveis, mas cabe ao
intérprete considerá-los sob o ponto de vista da sua viabilidade.
O grande momento vivido pela experiência constitucional
brasileira atual na instauração do Estado Democrático de Direito está, assim,
no modo como as exigências do Estado Social se jurisfaçam, no sentido formal da
palavra, nos contornos do Estado de Direito, quebrando, porém, o velho
hibridismo da lógica liberal conjugada com uma práxis autoritária. Parece-me
que o princípio legitimador, ainda que muito abstrato e genérico, dessa
compatibilização deveria ser impedir que as chamadas funções sociais do Estado
se transformem em funções de dominação. Esse é o risco. Seria preciso portanto
ver no reconhecimento do Estado Democrático de Direito uma espécie de repúdio à
utilização desvirtuada das necessárias funções sociais como instrumento de
poder, porque isso destruiria o Estado de Direito e com isso se perverteria a
base do Estado Social que estaria então desnaturado. Em conseqüência, o Estado
Democrático de Direito perderia o seu contorno constitucional.
Mas a recíproca também é verdadeira. Também não se pode
levar à interpretação da constituição todos aqueles formalismos típicos da
interpretação da lei. A lei constitucional chama-se lei apenas por metáfora,
ela não é lei igual às outras leis. A constituição tem que ser entendida como a
instauração do Estado e da comunidade. Então ela não deve se submeter àquele
puro formalismo sob a pena de fazermos o inverso, isto é, tiranizarmos um grupo
contra outro e impedirmos a realização do Estado Social. O difícil é fazer essa
composição sem apelar para as rupturas que se pervertem no seu próprio curso. E
esta dificuldade é, afinal, o grande desafio que vive, hoje, a experiência
constitucional brasileira.
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