Por: Luis Felipe Miguel / Mar. 2013
No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2006), o cientista político e jornalista André Singer ocupou a função de
porta-voz da presidência da República.
No segundo mandato, de volta ao mundo
acadêmico, colocou-se na posição de intérprete do "lulismo", buscando
entender algo que, para ele, é mais do que a simples adesão a um líder
carismático: é um projeto político complexo, baseado no apoio da massa de
excluídos e voltado para a superação da miséria sem o enfrentamento dos
privilégios. Apresentado em artigos que causaram razoável polêmica, o argumento
está agora consolidado no livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto
conservador, que reúne os três textos antes publicados e acrescenta a eles uma
introdução e um capítulo inéditos. Como posfácio, o autor inclui uma versão
modificada do memorial que apresentou ao concurso para livre-docência na
Universidade de São Paulo, mas que - à parte desvelar sua relação afetiva com o
ideário original do Partido dos Trabalhadores - pouco soma ao livro.
Essa vinculação, no entanto, não é irrelevante. No início do
livro, Singer faz o elogio ritual da "objetividade científica",
garantindo que o trabalho não é contaminado por suas preferências e afetos
políticos. Evidentemente, não é assim - e não há nenhum demérito nisso.
Os
sentidos do lulismo tem a ambição de mostrar que, no PT de hoje, que abraça
Paulo Maluf e se entrega gostosamente às práticas da política tradicional
brasileira, ainda sobrevive o compromisso popular e mesmo socialista dos primeiros
anos.
Não se trata de negar as mudanças sofridas pelo partido, nem o caráter
conservador delas, mas de enquadrá-las numa narrativa em que aquilo que, à
primeira vista, parecia ser oportunismo ou capitulação se torna peça de um
projeto, muito moderado, é verdade, mas orientado decididamente na direção da
mudança do país.
A tese principal do livro é que o "reformismo
fraco" do lulismo não é o abandono, muito menos a traição, e sim a
"diluição" do "reformismo forte" do petismo de antes. O
reformismo diluído lulista evita a todo custo o confronto com a burguesia,
optando por políticas que, na aparência, não afetam quaisquer interesses
estabelecidos. Tal opção não se deve, ou não se deve principalmente, ao jeito
matreiro e ao pendor acomodatício do ex-presidente, como a imprensa gosta de
afirmar. É fruto, por um lado, da chantagem que os proprietários fizeram nas
campanhas presidenciais do pt, desde a ameaça aberta de desinvestimento em 1989
até a elevação exagerada do câmbio em 2002. Lula aprendeu que não deve mexer
com o capital.
Por outro lado, a diluição do reformismo reflete a compreensão
de que o maior contingente do eleitorado brasileiro - o
"subproletariado", segundo o conceito que o livro busca na obra de
Paul Singer - deseja um Estado ativo no combate à pobreza, mas que não ponha em
risco a manutenção da "ordem".
O subproletariado reúne aqueles que não conseguem vender sua
força de trabalho pelo valor necessário para sua própria reprodução e que
formariam cerca de metade da população economicamente ativa do Brasil. Singer
discute, com algum cuidado, a opção pelo conceito, em vez de falar em
"excluídos" ou mesmo na "ralé" dos livros de Jessé Souza.
É
o gancho para sua defesa de uma análise das disputas políticas focada nas
classes sociais, que parte da observação - correta - de que, ao deixar esse
eixo de lado, a ciência política se torna insensível a elementos centrais do
conflito de interesses na sociedade. A ambição é mostrar que as decisões
eleitorais acompanham as clivagens de classes. No entanto, o argumento é
enfraquecido pelo fato de que, em boa parte da análise, voto classista é
tratado como equivalente de voto econômico.
O ponto é intrincado porque, na percepção de Singer, o
subproletariado tem como único projeto deixar de existir, isto é, transformar-se
em proletariado. Ele deseja ser incorporado ao mercado formal de trabalho,
receber salários que garantam um padrão mínimo de consumo e gozar das garantias
que o Estado concede a esses trabalhadores. O livro observa, com razão, que a
"nova classe média", tão badalada, é na verdade formada por
neoproletários, sejam eles operários tradicionais da indústria ou empregados
dos escalões inferiores do crescente setor de serviços. São setores
intermediários, sim, porque abaixo deles permanece o subproletariado, mas estão
longe de possuir as características associadas às classes médias propriamente
ditas.
No meio disso tudo, as classes, protagonistas da narrativa
do livro, não se caracterizam por quaisquer antagonismos - que é o que permite
a mágica do lulismo, de dar aos pobres sem tirar dos ricos. Como se fosse o
avesso da percepção de E. P. Thompson, de que as classes sociais se formam como
efeito das lutas que ocorrem no interior da sociedade, aqui a classe surge pela
identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de
um aglomerado de pessoas.
Essa visão explica porque Singer problematiza tão
pouco o apego à "ordem" por parte do subproletariado. A ojeriza à
desordem, que significa na verdade qualquer política de enfrentamento do
capital, explica por que o subproletariado foi historicamente a base eleitoral
da direita, por que ele se converteu ao lulismo ao longo do primeiro mandato de
Lula e por que tentativas de mobilizá-lo de outra forma, como a buscada pelo
MST, não obtiveram êxito mais do que parcial. Mas permanece, ela mesma,
inexplicada.
Seja como for, foi a sensibilidade de Lula para o programa
dessa camada (um Estado atuando em favor dos mais pobres, sem confrontar a
ordem) que permitiu o realinhamento eleitoral de 2006, quando o presidente
trocou parte do eleitorado petista tradicional, baseado nas classes médias
urbanas mais escolarizadas, pela massa de subproletários. A tese do
realinhamento é polêmica, como Singer mesmo indica no livro, mas os dados são
eloquentes quando mostram a mudança na base eleitoral dos candidatos
presidenciais do PT em 2006 e 2010, em comparação com as disputas anteriores.
A necessidade de manter a ação governamental dentro dos
limites da "ordem" tem consequências quanto ao ajuste do foco das
políticas. Singer observa, com razão, que o reformismo fraco tem como meta a
superação da pobreza, ao passo que o reformismo forte buscava a superação da
desigualdade - e que as duas coisas não confluem necessariamente. É essa
observação que permite colocar em suspeita a tese, central ao livro, da
continuidade do programa petista, apesar da diluição de seu componente
reformista. A diluição implicou a substituição do horizonte almejado, que deixa
de ser um país sem desigualdade para ser um país sem pobreza, como diz o slogan
do governo Dilma Rousseff.
Muito mais do que a convivência e o amálgama entre as duas
"almas" do pt, como diz Singer, a socialista aguerrida dos primórdios
e a moderada de agora, é possível ver a consolidação de uma hegemonia interna,
com a marginalização dos setores mais principistas do partido - por mais que,
como aponta o livro, muitas de suas teses permaneçam brilhando nas resoluções
dos congressos petistas. É uma mudança que se refere ao abandono do projeto não
só de transformação socialista das relações de produção, mas também de
renovação das práticas políticas, com o aprofundamento da democracia e a
revalorização da experiência popular. Quanto a esse quesito, o autor evoca a
realização das conferências nacionais de políticas públicas, embora se veja
constrangido a reconhecer que seus resultados práticos são
"discutíveis"1. Mas é indiscutível a adesão do PT ao "toma lá,
dá cá" que caracteriza o jogo político brasileiro.
O questionamento da tese da continuidade entre o petismo
inicial e o lulismo não significa que a obra de Singer não faça uma análise
competente da gestão do Estado brasileiro desde 2002. A redução da miséria e da
pobreza, fruto de uma ação política que a priorizou, por meio de medidas como
Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo e ampliação do crédito
consignado, além de programas que evitaram ativamente o desaquecimento da
economia, como o Minha Casa, Minha Vida, é um fato de enorme relevância
política e social, valioso por si só. Mas Os sentidos do lulismo não avança na
investigação sobre o impacto da diminuição da pobreza nos padrões de
distribuição da riqueza.
De fato, os dados têm mostrado uma redução significativa da
desigualdade de renda no Brasil desde o início do governo Lula. Mas os números
dizem respeito apenas aos rendimentos do trabalho; dito de outra forma, as
disparidades salariais estão diminuindo, sobretudo pela redução do contingente
dos que são severamente sub-remunerados - o que já é uma vitória em si, já que
a discrepância entre maiores e menores salários, no Brasil, sempre foi obscena.
Para críticos das administrações petistas, entre os quais Francisco de
Oliveira, o dado esconde o fato de que, ao mesmo tempo, a parcela abocanhada
pelo capital, na riqueza nacional, estaria crescendo. Ou seja, os mais pobres
seriam beneficiados por políticas compensatórias, ao mesmo tempo que a
burguesia auferiria lucros recordes.
Singer cita brevemente dados que
contradizem essa interpretação e mostram que, na verdade, a participação do
trabalho na renda nacional estaria aumentando. Em nota de rodapé, admite que os
dados são controversos e que é possível que esteja ocorrendo o contrário. Uma
interpretação razoável, baseada nas contas nacionais, parece ficar no meio
termo: a repartição da renda entre capital e trabalho tem ficado estável desde
o início do século XXI, com o rendimento do capital correspondendo a cerca de
três quintos do total.
Se é mesmo assim, os limites da política lulista são bem
mais claros do que a narrativa de Singer acaba por indicar. Fato que ecoa uma
das ausências importantes do livro, que é a plataforma política do capital. O
subproletariado é, evidentemente, personagem importante, tendo encontrado quem
realize por ele seu programa. O proletariado seria beneficiado objetivamente
com a redução do exército industrial de reserva, o que lhe colocaria em
condições mais vantajosas nas disputas salariais.
E as classes médias aparecem
como as antagonistas, perdendo tanto o sentimento subjetivo de distinção
social, que a distância em relação aos mais pobres concedia, quanto as
vantagens objetivas advindas do acesso a uma multidão de pessoas dispostas ao
subemprego, uma realidade apreendida pela infeliz boutade do ex-ministro Delfim
Netto sobre a empregada doméstica como "animal em extinção". Pouco se
fala, porém, de como os interesses da burguesia se expressam. Seguramente
porque, no jogo político brasileiro de hoje, que o lulismo não questiona, os
interesses do capital são intocáveis.
As vantagens do operariado sob o lulismo também merecem uma
atenção maior. André Singer concentra toda a interpretação no efeito que a
redução do subemprego tem na correlação de forças dos embates por melhores
salários e condições de trabalho. Cita, como sustentação, a elevada proporção
de greves que têm obtido reajustes reais para suas categorias profissionais.
Mas não leva em conta o fato de que o perfil das categorias paradas mudou, com
uma concentração no setor público, bem como o alcance de suas reivindicações.
Embora a mudança do perfil da economia brasileira seja apontada, com o peso
crescente das commodities e decrescente da produção industrial, o reflexo desse
fato na ação política da classe operária não é discutido.
Ao tratar dos governos anteriores, é lembrado o esforço de
Fernando Henrique Cardoso para quebrar a espinha do sindicalismo, com sua
atuação na greve dos petroleiros de 1995, que seguiu a melhor cartilha
thatcherista. Mas o PT também trabalhou na direção do esvaziamento do movimento
sindical - e dos movimentos sociais em geral - com políticas de cooptação de
suas lideranças, engessamento de suas agendas e sufocamento de suas demandas.
Conforme o célebre conselho de François Andrieux a Napoleão, "on ne
s'appuie que sur ce qui résiste": só nos apoiamos sobre o que resiste. Ao
dobrar a resistência dos movimentos sociais no Brasil, o PT enfraqueceu sua
própria base de apoio. Sua atual incapacidade de mobilização ficou patente no
recente julgamento do chamado "mensalão".
Mas não se trata de um
efeito colateral ou inesperado. O enfraquecimento dos movimentos sociais que
alimentaram a experiência do PT em sua fase heroica representou a garantia dada
ao capital de que a inflexão moderada, pragmática ou conservadora, expressa em
documentos como a "Carta aos brasileiros" da campanha de Lula em 2002,
não seria letra morta. Minando a possibilidade de ação efetiva dos setores que
sustentariam um projeto de transformação mais radical, garantiu-se a
credibilidade das promessas feitas de manutenção das linhas gerais do modelo de
acumulação vigente. Por isso, a afirmação de que o lulismo é vantajoso para a
classe operária precisa ser matizada com outros elementos.
Da mesma forma, o entendimento de que os programas de
inclusão social do período lulista se tornaram um componente inarredável do
consenso político no Brasil parece ter muito de wishful thinking. É verdade que
o lulismo avançou sobre as bases eleitorais tradicionais dos partidos de
direita e os obriga a uma reorganização do próprio discurso. Nem por isso é
preciso aceitar ao pé da letra as afirmações - anódinas e inconvincentes - dos
candidatos do psdb, de que vão ampliar os benefícios do Programa Bolsa Família.
A verdade efetiva por trás delas só será verificada quando retornarem ao poder.
É mais significativa sua guinada para um discurso moralista, que, quando
voltado para as classes médias urbanas, ganha um matiz udenista e foco na
probidade administrativa, e, quando voltado para os mais pobres, assume a forma
do fundamentalismo cristão, voltando-se contra os direitos das mulheres e dos
homossexuais. As campanhas de José Serra em 2010 e 2012 são exemplos
eloquentes.
A mobilização eleitoral desse tipo de discurso ainda não
rendeu os frutos esperados e restam dúvidas sobre o êxito da
"americanização" da disputa política no Brasil. Mas é um elemento
importante para entender os processos em curso, na redefinição das posições dos
principais partidos. Da forma que Singer coloca, o lulismo também teria
promovido uma elevação do patamar do consenso político, incluindo o compromisso
com a superação da pobreza, o que de alguma maneira até poderia compensar a
perda da promessa de uma nova forma de fazer política, que o PT representava.
Levando em conta a guinada reacionária no discurso do psdb, os termos da
equação se alteram. E nada disso é incompatível com uma proposta de fazer a
análise dando centralidade à clivagem de classes: a disputa ideológica faz
parte da luta de classes, que não se resume ao aspecto econômico.
Ao final do livro, o leitor não fica inteiramente convencido
de que o lulismo é um projeto, realmente, e não a expressão apenas de
sensibilidade política e senso de oportunidade. A noção de cesarismo ou
bonapartismo, que Singer mobiliza mais de uma vez ao longo da obra, encontra
dificuldades para se adaptar a uma democracia eleitoral moderna, mas apresenta
vias de interpretação interessantes, sobretudo se lembramos que são soluções
conservadoras para impasses na reprodução da dominação.
Escrito com clareza - e justamente por isso se abrindo de
maneira franca ao debate -, Os sentidos do lulismo é uma contribuição valiosa
para o entendimento da política atual no Brasil. Trata-se de um processo
complexo, eivado de ambiguidades e ainda em curso. André Singer ajuda a
pensá-lo para além das oposições esquemáticas e dicotomias grosseiras que se
apresentam em muitas das análises mais correntes. Entre ganhos sociais que não
podem ser negados e o abandono, também inegável, de ideais mais exigentes de
sociedade, permanece em aberto o saldo do experimento lulista.
LUIS FELIPE MIGUEL é professor titular de ciência política
na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia
e Desigualdades (Demodê)
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