Por: André Rufino do Vale
Neste domingo, completam-se os cem anos da Constituição
mexicana.
Promulgada no dia 5 de fevereiro de 1917, a Constituição Política dos
Estados Unidos Mexicanos, plenamente vigente até os dias atuais, já se consagrou,
ao lado da Constituição dos Estados Unidos da América, como um dos documentos
constitucionais mais longevos do mundo.
O centenário é extremamente significativo para a história do
constitucionalismo social, não apenas no espaço geográfico da América Latina,
mas em todo o mundo. A Constituição mexicana de 1917 foi a primeira a incluir
um catálogo de direitos sociais. A positivação de uma série de reivindicações
sociais (condições de trabalho, educação, saúde etc.), as quais marcaram o
período histórico do início do século XX, tornou-se uma das principais
características desse importante documento constitucional, sem nenhuma dúvida a
sua mais relevante contribuição para o constitucionalismo em perspectiva
universal.
Assim como a Constituição de Weimar, de 1919 — porém
adiantada do ponto de vista histórico —, a Constituição mexicana de 1917 foi
pioneira ao destinar uma série de dispositivos normativos à definição dos
denominados direitos sociais, culturais e econômicos. Fruto da Revolução
Mexicana, o Congresso Constituinte instalado na cidade de Querétaro, em 1º de
dezembro de 1916, por Venustiano Carranza, chefe do Exército
Constitucionalista, teve como principal norte a construção de garantias de
caráter social, especialmente em relação à questão das terras e da proteção dos
trabalhadores. Como relata Héctor Fix-Zamudio, as sessões da Constituinte de
Querétaro foram polêmicas e permeadas por debates acalorados quanto aos temas
relacionados ao “constitucionalismo social”.
O resultado final, como ressalta o
constitucionalista mexicano, foi a primeira “Carta Social”, cujo conteúdo
“revolucionó también al derecho constitucional de la época, en cuanto dejó de
ser un documento meramente político, para transformarse también en uno de
caráter eminentemente social”.
A Constituição de Querétaro estabeleceu o modelo do
constitucionalismo social que acabou servindo de referência para outros
documentos constitucionais da época. A Constituição do Brasil de 1934 foi
fortemente influenciada pelos parâmetros fixados pela Carta mexicana em termos
de definição e garantia de direitos sociais.
Além do capítulo dos direitos e
garantias individuais, o constituinte de 1933-34 inseriu no texto
constitucional dois capítulos antes inexistentes na Carta de 1891, o da ordem econômica
e social, assim como o da família, educação e cultura, dando um sentido
“eminentemente social” à Constituição. “Pela primeira vez na história
constitucional brasileira, considerações sobre a ordem econômica e social
estiveram presentes”, ressaltou o professor Paulo Bonavides. Inaugurou-se,
naquele momento, o Estado social no Brasil.
Diversos são os tópicos da Constituição mexicana que
serviram, e ainda servem, de parâmetro para o Direito Constitucional Comparado
e, especialmente, para o Direito Constitucional brasileiro. A forma de governo
republicano, democrático e representativo, a organização do Estado na forma de
uma federação composta da União, de estados e um Distrito Federal, assim como a
divisão dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, fundamentam um
sistema constitucional muito semelhante ao existente no Brasil.
No tocante à
estruturação do Poder Judiciário na organização estatal federativa, as
identidades são ainda mais perceptíveis, sobretudo em relação à Suprema Corte
de Justicia de la Nación de México, a qual, assim como o Supremo Tribunal
Federal brasileiro, é composta de onze juízes, igualmente denominados
ministros, cujo presidente, eleito pelos pares, também é o presidente do
Consejo de la Judicatura Federal, cujas atribuições são semelhantes ao Conselho
Nacional de Justiça brasileiro.
A Suprema Corte mexicana é, igualmente, o órgão
de cúpula do Poder Judicial Federal, com competências de definição de temas
pela via dos recursos das instâncias inferiores (recursos de revisión en amparo
directo y indirecto) e, ao mesmo tempo, constitui genuína corte constitucional,
com competências de controle abstrato de constitucionalidade, por meio das
denominadas acciones abstractas de inconstitucionalidad.
Uma das influências mais significativas da Constituição de
Querétaro em relação ao Direito Constitucional brasileiro diz respeito à
instituição do mandado de segurança. Quando, sobretudo após a Emenda
Constitucional de 1926 (que restringiu o Habeas Corpus à proteção do direito à liberdade
de circulação), passou-se a trabalhar com a ideia de uma nova ação para a
garantia de outros direitos não assegurados pelo Habeas Corpus, o juicio de
amparo mexicano serviu como principal modelo de referência no Direito
Comparado.
Como informa José Afonso da Silva, uma proposta sustentada em
Congresso Jurídico de 1922, por Edmundo Muniz Barreto, lançou a ideia da
instituição no Brasil de uma ação semelhante à existente no México, com a
denominação de ação ou recurso de amparo. Assim, quando se instalou a
Constituinte de 1933-34, todas as noções em torno dessa ação já estavam
bastante maduras e levaram à criação do instituto do mandado de segurança.
A
partir da Constituição de 1946, a expressão “amparo” de direitos passou a fazer
parte das disposições constitucionais definidoras do mandado de segurança, tal
como a atual redação do artigo 5º, LXIX, da Constituição de 1988
(“conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não
amparado por habeas corpus ou habeas data”). Não se pode deixar de considerar,
portanto, a importância do estudo do juicio de amparo para, na perspectiva do
Direito Comparado, compreender a fundo o mandado de segurança brasileiro. Essa
foi a lição de Celso Agrícola Barbi, quando deixou consignado o seguinte:
“Nos primeiros ensaios de criação de um instituto capaz de
proteger o indivíduo contra os atos do Poder Público, foi sempre mencionado
entre nós o ‘amparo’ mexicano, como digno de ser imitado. Apesar de, após a
criação do mandado de segurança, ter havido pouco aproveitamento da lição do
direito daquele país, é grande a importância do seu estudo, porque a
experiência de mais de um século de aplicação daquele remédio judicial pode
ministrar aos nossos juristas noções de grande utilidade”.
A longevidade de uma Constituição depende do potencial de
seu texto para se submeter a constantes (re)interpretações, sem perder a sua
força normativa no decorrer das sucessivas mutações constitucionais, e da
previsão de mecanismos para sua própria reforma, cuja engenharia deve ser bem
articulada para definir processos legislativos qualificados que, ao
possibilitar a mudança, igualmente preservem a rigidez constitucional.
O
centenário da Constituição de Querétaro também se deve, em grande parte, à
previsão (artigo 135) dos requisitos para sua própria reforma, o que tornou
possível as centenas de reformas ao longo do último século, e a série de casos
de mutação constitucional, os quais mantêm viva a sua normatividade. Apesar da
compreensível crítica e da crescente preocupação em relação ao excesso de
reformas, sobretudo nas últimas décadas, é também recorrente a constatação,
entre os constitucionalistas mexicanos, que foram exatamente as reformas que
permitiram a atualização constante do texto constitucional. Ao defender que as
reformas constitucionais, em geral, têm sido proveitosas para o país, Héctor
Fix-Zamudio ressalta a sua importância para a garantia da força normativa da
Constituição de 1917, com as seguintes palavras:
“La Constitución ha sido en México un texto fundamental en
el sentido más pleno de la palavra. Su carga histórica es tan grande, que en la
Constitución los mexicanos recrean la herencia ideológica de nuestros
sacudimientos sociales, los avances que logró el movimento revolucionário de
este siglo y los princípios que rigen a la sociedade civil en el presente. A
diferencia de otros países, en el nuestro la Constitución ha sido símbolo de
estabilidad política y de unidad nacional, en torno a cual partidos, grupos
políticos, y los propios ciudadanos, han desenvuelto las atividades que les son
propias. Sentimiento constitucional tan acendrado es difícil de cultivar en los
pueblos, por eso hay que mantenerlo y acrecentarlo, tanto porque enraíza en la
historia viva, como por su inflencia determinante para nuestro destino común”.
A data comemorativa deste 5 de fevereiro de 2017 tem sido
considerada um marco histórico fundamental para os mexicanos. Os representantes
dos Poderes da União dos Estados Unidos Mexicanos (Executivo, Legislativo e
Judiciário) firmaram um acordo para a criação de um Comitê para a Comemoração
do Centenário de sua Constituição, que nos últimos anos estabeleceu uma série
de atividades, eventos, homenagens e outras ações que serão desenvolvidas ao
longo deste ano de 2017, oficialmente declarado como “Ano do Centenário da
Promulgação da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos”.
Os
materiais produzidos e levantados (documentos históricos, informações
relevantes, atividades acadêmicas, artigos, notícias etc.) estão à disposição
da comunidade no site constitucion1917.gob.mx.
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