Adilson Abreu Dallari
Na prática, a teoria é outra. Lamentavelmente, é isso que
acontece, na verdade, com o chamado foro privilegiado, ou, tecnicamente, por
prerrogativa de função. A designação técnica indica, com mais precisão, o que
ele deveria ser (um tratamento especial em decorrência do exercício de uma
função pública de maior relevância), mas a designação popular identifica melhor
algo no que ele se converteu; um privilégio odioso, com consequências altamente
danosas ao erário, ao interesse público e à cidadania em geral.
Para servir como referência, transcrevo parte da notícia
dada por Eliane Cantanhede (O Estado de S. Paulo, 10/02/17, p. A6): “O STF
marcou para 18 de abril deste ano (2017) o julgamento do deputado Paulo Maluf,
acusado de desvio de dinheiro de São Paulo para contas no exterior, quando foi
prefeito. Quando? De 1992 a 1996, há 21 anos!”. Note-se que, além do absurdo
tempo decorrido, trata-se de ato que nada tem a ver com o exercício da “função”
de prefeito. Ou seja, trata-se de algo completamente fora do exercício do
conjunto de atribuições inerentes ao cargo, ou mandato, de prefeito municipal.
O foro por prerrogativa de função não é um mal em si mesmo.
A administração pública tem um estigma: só aparece quando não funciona. Se
alguém apertar o interruptor e a luz se acender, ninguém vai se lembrar que
existe toda uma complexa estrutura de administração pública funcionando para
que isso aconteça. Mas, qual seria a reação usual se a luz não acendesse, ou se
da torneira não saísse água, ou se o ônibus (ou metrô) estiver atrasado, ou
superlotado?
Algo correlato acontece com a autoridade pública.
Atualmente, no âmbito federal, o governo está levando adiante o enxugamento da
máquina pública, extinguindo um número considerável de “cabides de emprego”, na
administração direta e indireta. Mas isso nem é notícia. O governo do Estado de
São Paulo reformulou completamente o tratamento dado às licitações para a
concessão de rodovias, de maneira a aumentar o número de participantes, ampliar
a competitividade e acabar com o jogo de cartas marcadas, que caracterizaram a
grandes licitações no Brasil, há uma década, propiciando a mais deslavada
corrupção. Mas esse saneamento na gestão pública é notado apenas pelos mais
diretamente ligados ao assunto.
No âmbito municipal paulistano fica evidente uma outra
característica das decisões tomadas na gestão da coisa pública: a
conflituosidade. Tome-se como exemplo o combate às pichações que emporcalhavam
a cidade, mas que, para uma parcela da opinião pública, representavam a
liberdade de expressão do pensamento e da criatividade artística. É de se
esperar um batalha em torno das medidas visando disciplinar o uso de espaços
públicos por moradores de rua, que uma certa corrente política qualifica como política
“higienista”. Imagine-se o tumulto que fatalmente ocorrerá, as pesadíssimas
acusações que lhe serão feitas, se o prefeito adotar (como é seu dever) medidas
destinadas a acabar com o espetáculo vergonhosamente dantesco que ocorre na
chamada “cracolândia”, onde as autoridades públicas, há muito tempo, estão
apenas enxugando gelo!
Mais um exemplo da realidade atual na esfera governamental
paulistana. O prefeito tem conseguido uma série considerável de doações, de
bens e serviços (máquinas, equipamentos, veículos e até obras de arte, exames
de imagem e laboratoriais) feitas por pessoas e empresas para o melhor
desempenho de atividades municipais, como a limpeza da cidade e a fiscalização
do trânsito, entre outras coisas. Merecem especial destaque as contribuições
dadas pelo setor médico hospitalar para o inquestionavelmente melhor
atendimento da população de menor nível econômico. Pois bem; até isso, que
parece ser algo digno apenas de louvores, já é objeto de ações populares,
movidas contra o prefeito por pessoas vinculadas a partidos políticos.
O que se pretende dizer é que autoridades públicas de
elevado escalão estão expostas aos azares de ações judiciais, pelo simples
exercício de seu elementar poder/dever de tomar decisões. Por experiência
própria, como ex-secretário municipal, tive que tomar decisões, em questões
controvertidas, onde existiam interesses conflitantes, das quais fatalmente
resultariam problemas, pois a parte que se sentisse prejudicada certamente iria
reagir, inclusive perante o Judiciário. Fui autoridade coatora em muitos
mandados de segurança. Felizmente, nunca fui acusado de improbidade.
Mas o risco de ser réu em ação judicial envolvendo a
dignidade e a honorabilidade pessoal sempre existe. Assim, diante da maior
vulnerabilidade de quem exerce, legitimamente, o poder/dever de decidir, é
compreensível a existência de uma proteção especial no tocante a decisões ou
atitudes tomadas no exercício da função pública, ou, mais exatamente, à prática
de atos de ofício. Portanto, não haveria violação ao princípio constitucional
da igualdade se um número restrito de autoridades, da mais alta hierarquia,
fosse contemplada com o foro especial por prerrogativa de função.
O grande problema, na prática, é a multiplicação vertiginosa
do número de autoridades aquinhoadas com essa prerrogativa e, o que é
imensamente pior, sua aplicação a qualquer ato, qualquer atitude de tais
autoridades, ainda que totalmente desvinculadas do exercício da função inerente
ao cargo ou mandato. Some-se a isso a especial morosidade dos tribunais para
julgar ações decorrentes do uso da prerrogativa do foro privilegiado.
Atualmente, conforme comentários na imprensa, grande vítima
direta dessa distorção é o Supremo Tribunal Federal, que emerge como um
formidável valhacouto, um refúgio seguro para políticos corruptos de toda
ordem, pela prática de ações totalmente desvinculadas dos atos de ofício
inerentes a mandatos ou cargos públicos exercidos em algum lugar do passado. Ou
seja: a especial proteção é dada à pessoa física, que se valeu do mandato ou
cargo para auferir indevida vantagem pessoal. Tentando explicar melhor: a
absurda proteção especial é dada ao deputado Fulano, ou ao ministro Beltrano, e
não ao ato de ofício por ele praticado no regular exercício da função pública.
Existe, portanto, atualmente, no Brasil, uma casta praticamente inimputável, o
que é evidentemente incompatível com o princípio constitucional da igualdade.
Essa inimputabilidade de fato decorre da impossibilidade
concreta de que o STF possa julgar o grande número de feitos que, no nosso
entender, lhe foram indevidamente encaminhados, por não se referirem a atos de
ofício, praticados no regular exercício da função pública. Em artigo publicado
no jornal O Estado de S.Paulo (04/03/17, p. A2) como expressivo título de O
Supremo em xeque, Miguel Reale Júnior, analisando dados fornecidos pela
pesquisa “O Supremo em Números, feita pela FGV Direito Rio, afirma, com
justiça, que a culpa pela existência grande número de processos que tramitam há
mais de dez anos, por outro expressivo número de feitos com a punibilidade
extinta pela prescrição e por um índice de condenações inferior a 1%, não é
apenas do
STF, mas também da Procuradoria-Geral da República e da
Polícia Federal, mas, destaca ele, que esse estado de coisas acaba sendo
imputado ao Supremo, cuja credibilidade já é periclitante.
Quem pode por cobro a esse inegável privilégio da impunidade
é exatamente o STF, já que não é de se esperar que o Executivo e, muito
especialmente, o Legislativo adotem alguma providência de ordem legislativa. É
forçoso, portanto, mudar a jurisprudência, dando às disposições normativas uma
interpretação compatível com a eficácia plena dos princípios constitucionais,
tão prezada pelo ministro Barroso, tanto em seus notáveis ensinamentos
acadêmicos, quanto em decisões que tem proferido.
As maiores vítimas dessa inegável concreta impunidade (“data
venia” do ministro Celso de Mello) são o erário, a coletividade e a cidadania.
Os recursos desviados não são recuperados e a população sofre com a deficiência
de serviços públicos que poderiam ser melhorados. O pior efeito negativo,
entretanto, recai sobre a cidadania, gerando o desânimo e o descrédito nas
instituições do estado democrático de direito.
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