"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Foro por prerrogativa de função — na prática, a teoria é outra


Adilson Abreu Dallari

Na prática, a teoria é outra. Lamentavelmente, é isso que acontece, na verdade, com o chamado foro privilegiado, ou, tecnicamente, por prerrogativa de função. A designação técnica indica, com mais precisão, o que ele deveria ser (um tratamento especial em decorrência do exercício de uma função pública de maior relevância), mas a designação popular identifica melhor algo no que ele se converteu; um privilégio odioso, com consequências altamente danosas ao erário, ao interesse público e à cidadania em geral.

Para servir como referência, transcrevo parte da notícia dada por Eliane Cantanhede (O Estado de S. Paulo, 10/02/17, p. A6): “O STF marcou para 18 de abril deste ano (2017) o julgamento do deputado Paulo Maluf, acusado de desvio de dinheiro de São Paulo para contas no exterior, quando foi prefeito. Quando? De 1992 a 1996, há 21 anos!”. Note-se que, além do absurdo tempo decorrido, trata-se de ato que nada tem a ver com o exercício da “função” de prefeito. Ou seja, trata-se de algo completamente fora do exercício do conjunto de atribuições inerentes ao cargo, ou mandato, de prefeito municipal.

O foro por prerrogativa de função não é um mal em si mesmo. A administração pública tem um estigma: só aparece quando não funciona. Se alguém apertar o interruptor e a luz se acender, ninguém vai se lembrar que existe toda uma complexa estrutura de administração pública funcionando para que isso aconteça. Mas, qual seria a reação usual se a luz não acendesse, ou se da torneira não saísse água, ou se o ônibus (ou metrô) estiver atrasado, ou superlotado?

Algo correlato acontece com a autoridade pública. Atualmente, no âmbito federal, o governo está levando adiante o enxugamento da máquina pública, extinguindo um número considerável de “cabides de emprego”, na administração direta e indireta. Mas isso nem é notícia. O governo do Estado de São Paulo reformulou completamente o tratamento dado às licitações para a concessão de rodovias, de maneira a aumentar o número de participantes, ampliar a competitividade e acabar com o jogo de cartas marcadas, que caracterizaram a grandes licitações no Brasil, há uma década, propiciando a mais deslavada corrupção. Mas esse saneamento na gestão pública é notado apenas pelos mais diretamente ligados ao assunto.

No âmbito municipal paulistano fica evidente uma outra característica das decisões tomadas na gestão da coisa pública: a conflituosidade. Tome-se como exemplo o combate às pichações que emporcalhavam a cidade, mas que, para uma parcela da opinião pública, representavam a liberdade de expressão do pensamento e da criatividade artística. É de se esperar um batalha em torno das medidas visando disciplinar o uso de espaços públicos por moradores de rua, que uma certa corrente política qualifica como política “higienista”. Imagine-se o tumulto que fatalmente ocorrerá, as pesadíssimas acusações que lhe serão feitas, se o prefeito adotar (como é seu dever) medidas destinadas a acabar com o espetáculo vergonhosamente dantesco que ocorre na chamada “cracolândia”, onde as autoridades públicas, há muito tempo, estão apenas enxugando gelo!

Mais um exemplo da realidade atual na esfera governamental paulistana. O prefeito tem conseguido uma série considerável de doações, de bens e serviços (máquinas, equipamentos, veículos e até obras de arte, exames de imagem e laboratoriais) feitas por pessoas e empresas para o melhor desempenho de atividades municipais, como a limpeza da cidade e a fiscalização do trânsito, entre outras coisas. Merecem especial destaque as contribuições dadas pelo setor médico hospitalar para o inquestionavelmente melhor atendimento da população de menor nível econômico. Pois bem; até isso, que parece ser algo digno apenas de louvores, já é objeto de ações populares, movidas contra o prefeito por pessoas vinculadas a partidos políticos.

O que se pretende dizer é que autoridades públicas de elevado escalão estão expostas aos azares de ações judiciais, pelo simples exercício de seu elementar poder/dever de tomar decisões. Por experiência própria, como ex-secretário municipal, tive que tomar decisões, em questões controvertidas, onde existiam interesses conflitantes, das quais fatalmente resultariam problemas, pois a parte que se sentisse prejudicada certamente iria reagir, inclusive perante o Judiciário. Fui autoridade coatora em muitos mandados de segurança. Felizmente, nunca fui acusado de improbidade.

Mas o risco de ser réu em ação judicial envolvendo a dignidade e a honorabilidade pessoal sempre existe. Assim, diante da maior vulnerabilidade de quem exerce, legitimamente, o poder/dever de decidir, é compreensível a existência de uma proteção especial no tocante a decisões ou atitudes tomadas no exercício da função pública, ou, mais exatamente, à prática de atos de ofício. Portanto, não haveria violação ao princípio constitucional da igualdade se um número restrito de autoridades, da mais alta hierarquia, fosse contemplada com o foro especial por prerrogativa de função.

O grande problema, na prática, é a multiplicação vertiginosa do número de autoridades aquinhoadas com essa prerrogativa e, o que é imensamente pior, sua aplicação a qualquer ato, qualquer atitude de tais autoridades, ainda que totalmente desvinculadas do exercício da função inerente ao cargo ou mandato. Some-se a isso a especial morosidade dos tribunais para julgar ações decorrentes do uso da prerrogativa do foro privilegiado.

Atualmente, conforme comentários na imprensa, grande vítima direta dessa distorção é o Supremo Tribunal Federal, que emerge como um formidável valhacouto, um refúgio seguro para políticos corruptos de toda ordem, pela prática de ações totalmente desvinculadas dos atos de ofício inerentes a mandatos ou cargos públicos exercidos em algum lugar do passado. Ou seja: a especial proteção é dada à pessoa física, que se valeu do mandato ou cargo para auferir indevida vantagem pessoal. Tentando explicar melhor: a absurda proteção especial é dada ao deputado Fulano, ou ao ministro Beltrano, e não ao ato de ofício por ele praticado no regular exercício da função pública. Existe, portanto, atualmente, no Brasil, uma casta praticamente inimputável, o que é evidentemente incompatível com o princípio constitucional da igualdade.

Essa inimputabilidade de fato decorre da impossibilidade concreta de que o STF possa julgar o grande número de feitos que, no nosso entender, lhe foram indevidamente encaminhados, por não se referirem a atos de ofício, praticados no regular exercício da função pública. Em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo (04/03/17, p. A2) como expressivo título de O Supremo em xeque, Miguel Reale Júnior, analisando dados fornecidos pela pesquisa “O Supremo em Números, feita pela FGV Direito Rio, afirma, com justiça, que a culpa pela existência grande número de processos que tramitam há mais de dez anos, por outro expressivo número de feitos com a punibilidade extinta pela prescrição e por um índice de condenações inferior a 1%, não é apenas do
STF, mas também da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal, mas, destaca ele, que esse estado de coisas acaba sendo imputado ao Supremo, cuja credibilidade já é periclitante.

Quem pode por cobro a esse inegável privilégio da impunidade é exatamente o STF, já que não é de se esperar que o Executivo e, muito especialmente, o Legislativo adotem alguma providência de ordem legislativa. É forçoso, portanto, mudar a jurisprudência, dando às disposições normativas uma interpretação compatível com a eficácia plena dos princípios constitucionais, tão prezada pelo ministro Barroso, tanto em seus notáveis ensinamentos acadêmicos, quanto em decisões que tem proferido.

As maiores vítimas dessa inegável concreta impunidade (“data venia” do ministro Celso de Mello) são o erário, a coletividade e a cidadania. Os recursos desviados não são recuperados e a população sofre com a deficiência de serviços públicos que poderiam ser melhorados. O pior efeito negativo, entretanto, recai sobre a cidadania, gerando o desânimo e o descrédito nas instituições do estado democrático de direito.


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