Marcelo Casseb Continentino
Nosso artigo é dedicado à história. À história de
Pernambuco. À história constitucional do Brasil. E à nossa Constituição Federal
de 1988, cuja história parece caminhara para a beira do precipício. É fruto,
portanto, de um delicado esforço de diálogo entre a história do direito e o
direito constitucional.
É que falar do passado pressupõe uma ambiência do presente,
que condiciona nosso olhar para trás. Toda história (do passado) é uma história
do presente. Embora os fatos ocorridos no passado sejam imodificáveis, sua
interpretação e o modo de escrever fazem-nos mutáveis. Destarte, novas
perspectivas históricas em termos de presente e de futuro surgem.
Ao falarmos da Revolução Republicana de Pernambuco em 1817,
que, neste ano, completa seu Bicentenário, também enfrentamos as mesmas
intersecções temporais através das possibilidades diversas que a predisposição
ao diálogo com nossas gerações passadas oportuniza. Precisamos definir o fio
condutor que nos conectará aos revolucionários republicanos do século XIX: o
que eles pretendiam com a emancipação do Reino de Portugal? Por que, em 1817,
era tão necessária uma Constituição? E, por fim, qual aprendizado podemos
extrair dessa pródiga experiência política?
Não temos como responder satisfatoriamente tais questões, o
que, entretanto, não nos impede de oferecer algumas impressões sobre os pontos
suscitados, a partir de destaques da história da Revolução de 1817 e de suas
possíveis leituras.
1817 tem ampla significação política e marca profundamente a
história do Brasil, em face de diversos motivos: foi, no dizer de Evaldo Cabral
de Mello, a primeira independência do Brasil com a introdução de inédita e
efetiva experiência de governo republicano; estabeleceu um regime em que todos
seriam iguais, no qual já se acenava para a abolição (“lenta, regular e legal”)
da escravidão; gestou a primeira “Constituição” em vigor neste país. Não se
trata apenas de mera precedência temporal, mas da intensidade da experiência
que marcou tais acontecimentos.
Eclodida em 6 de março de 1817, no célebre episódio em que o
oficial brasileiro João de Barros Lima (conhecido como “Leão Coroado”)
insurgiu-se contra a ordem de prisão de seu superior hierárquico, o brigadeiro
português Manoel Joaquim Barbosa, atravessando-lhe o corpo com sua espada, a
qual integra o acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano (IAHGP).
A motivá-la, causas mais diretas podem ser apontadas: carga
tributária excessiva a que era submetida, por ser a Capitania de Pernambuco uma
das mais rentáveis do Reino; a grande seca de 1816, que afetou a produção de
alimentos de subsistência, aumentando o custo de vida; o declínio da exportação
do açúcar e do algodão; a longeva hostilidade entre portugueses e brasileiros
(ou portugueses americanos), extremada em razão de os portugueses serem
designados para altos cargos administrativos e de serem credores dos grandes
proprietários rurais exportadores (nativos), devido à existência de regras
comerciais leoninas.
Ainda, o impacto nas relações políticas e sociais, oriundo
da “interiorização” da Metrópole. Com a chegada de D. João VI e da família real
para a Colônia Brasil, elevada à categoria de Reino Unido a Portugal em 1815,
assistiu-se à gradual transformação na condução político-administrativa das
Capitanias, o que afetou sensivelmente os diferentes graus de autonomia
existente. No caso especial de Pernambuco, que enfrentara a guerra de expulsão
contra os holandeses, sedimentara-se a identidade pernambucana alicerçada sobre
o ideário da autossuficiência e da relativa independência da Capitania.
Segundo a Professora Maria de Lourdes Viana Lyra, a vinda da
família real modificou a lógica administrativa, ocorrendo maior centralização
administrativa e fiscalização das atividades comerciais desenvolvidas nas
Capitanias, além do próprio aumento das despesas para manutenção da corte e de
suas regalias. Dada sua relativa autonomia, a Capitania de Pernambuco sentiu
mais fortemente o peso da mão direta do monarca em seus negócios.
O sentimento de injustiça, de tirania e de opressão
enraizou, cenário que foi muito bem traduzido na síntese de Evaldo Cabral de
Mello: “Lisboa já não estava em Lisboa, mas no Rio”.
A rejeição à coroa alastrou-se rapidamente, porque
circulavam e se discutiam, naquela Capitania, muitas ideias novas, que, desde o
início do século XIX, começaram a reverberar em diversas regiões do país. A
atividade comercial intensa no Porto da Vila do Recife, que facilitava o acesso
a pessoas, ideias e livros da Europa e da América (cuja comercialização era
proibida), bem como a existência de lojas maçônicas, dentre as quais convém
destacar o Areópago de Itambé, fundado por Arruda da Câmara, e do Seminário de
Olinda, fundado por Azeredo Coutinho, fizeram com que a linguagem dos direitos
individuais, perfilhada nas luzes europeias e americanas, tivesse boa acolhida
entre os pernambucanos.
Autores como Condorcert, Voltaire, Rousseau, Sieyès, Mably,
Montesquieu eram bem conhecidos àquele tempo na Capitania de Pernambuco. E, a
partir deles, é que os revolucionários de 1817 tentaram constituir sua
linguagem própria e fazerem atuar suas pretensões políticas bem como formular o
projeto constitucional para Pernambuco, para as Capitanias do Norte e, enfim,
para o Brasil.
Nesse contexto, é editada a Lei Orgânica de 1817, que
segundo, o monsenhor Francisco Muniz Tavares, tinha por objetivo viabilizar uma
mínima estruturação orgânico-política de Governo Provisório, legitimando-o. À
Lei Orgânica, seguiria uma Declaração de Direitos.
A constituição de uma sociedade, onde imperassem a justiça
social e a igualdade, foi sonhada pelos revolucionários de 1817 e se
expressaria na “Declaração dos Direitos Naturais, Civis e Políticos do Homem”,
que, não obstante enviada para publicação na Officina Typographica da Republica
de Pernambuco, não se publicou nem circulou por força da repressão reinol.
Conforme explicou a Professora Margarida Cantarelli no
“Seminário Revolução Pernambucana de 1817”, realizado nos dias 5 e 6 de abril
de 2017, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Lei Orgânica
configurou, por essência, uma verdadeira “Constituição”, ao se enquadrar no
novo significado (moderno) de “Constituição”, definido no curso do processo
revolucionário francês e norte-americano, que foi positivado na Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em que se lê:
“Art. 16. Qualquer sociedade, na qual uma norma não tenha
estabelecido a garantia dos direitos nem a separação dos poderes, não tem
Constituição.”
A Lei Orgânica de 1817 tratou da estrutura dos poderes
políticos, adotando a separação tripartite dos poderes ao cuidar do Poder
Legislativo (arts. 4º e 5º), Executivo (arts. 8º a 12) e Judiciário (arts. 13 a
20), bem como avançou em temas de direitos individuais, tais como liberdade de
imprensa (art. 25) e tolerância religiosa (art. 23). Sob esse prisma,
parece-nos adequado caracterizá-la como “Constituição”, pois garantiu direitos
e a separação dos poderes.
Podemos reconhecer em acréscimo, na esteira do Professor
Nilzardo Carneiro Leão, que, na Lei Orgânica, foram antecipadas garantias hoje
presentes na própria Constituição Federal de 1988.
Qual o significado dessas permanências? É justamente aqui, e
já encerrando nosso breve diálogo intertemporal, o momento em que entra a
Constituição de 1988.
No Brasil, desde a Revolução de 1817, várias Constituições
foram editadas, democrática ou antidemocraticamente. Apesar das distintas
ideologias que as envolveram em cada momento específico, é inegável que garantias
constitucionais presentes na Lei Orgânica de 1817 atravessaram anos e décadas e
continuam presentes no texto da Constituição de 1988. Princípios fundamentais
(liberdade, igualdade, legalidade e propriedade), lastreados no
constitucionalismo francês, inglês e norte-americano, foram proclamados em 1817
e, dentro do horizonte constitucional de cada tempo em que aos mesmos
princípios novas dimensões são atribuídas, foram sendo acolhidos nos diversos
textos constitucionais brasileiros.
E onde reside o problema presente?
Deixa-se transparecer de nossa incapacidade de aplicar e
concretizar, factual e socialmente, os mesmos princípios que constituem nossa
identidade cultural e constitucional. Eis a permanência que nos caracteriza: a
histórica e renitente inefetividade de promover os princípios da identidade
constitucional brasileira.
Não por outra razão, Glauco Salomão Leite, fazendo uso de
uma peculiar semântica do conceito de “revolução”, defendeu o argumento de que,
no Brasil de hoje, necessita-se de uma “jurisdição constitucional
revolucionária”, que, em outras palavras, demandaria interpretação judicial na
qual prevalecesse a textualidade normativa. Ser revolucionário, portanto,
significa ser um fiel aplicador da Constituição e das leis do país.
Destarte, os revolucionários de 1817 nos fazem ver – através
dessa conversa protraída no tempo – que, não obstante estejamos há mais de 200
anos na luta pela efetivação de direitos comuns às duas gerações (passado e
presente), ainda enfrentamos dificuldades similares. E que essas dificuldades
estão longe de serem solucionadas, não por faltar um texto de Constituição
adequado às peculiaridades brasileiras ou à sua governabilidade, mas porque,
isso sim, falta-nos uma cultura jurídica de levar a Constituição a sério.
Defender-se, pois, que a solução das mazelas políticas e
constitucionais do País residiria na convocação de uma Constituinte exclusiva
para elaborar uma nova Constituição, parece-nos, para dizer o menos, fruto de
uma ingenuidade histórica e jurídica. Porém, embora a história não seja a
mestra da vida, concede-nos importante canal de interlocução a mostrar que,
acima de novas leis, que pouco alterarão a atual moldura formal e textual da
Constituição de 1988, o que nós precisamos mesmo é implementar esses princípios
que configuram o núcleo central de todas as Constituições que o Brasil conheceu
nesses últimos 200 anos.
Lembremos: foram várias Constituições (1824, 1891, 1934,
1937, 1945, 1967/1969 e 1988), com o detalhe de que a vigente Constituição foi
a que mais se beneficiou da participação popular.
Reiteremos: o dilema consiste em efetivar nosso projeto
constitucional cuja essência assenta-se numa identidade cultural e
constitucional, formada há mais de dois séculos, da qual Constituição alguma
poderá afastar-se, sob pena de já nascer eivada de ilegitimidade.
Celebrar o Bicentenário da Revolução Pernambucana é,
portanto, reconhecer nossa tradição constitucional mais que bicentenária, que,
lamentavelmente, ainda está distante de se concretizar e cuja solução passa ao
largo da elaboração de mais um novo texto constitucional. A memória
revolucionária de 1817, em que foram apropriados diversos conceitos como
constitucionalismo, patriotismo, republicanismo, federalismo, nesse difícil
diálogo intergeracional, está a nos exigir, isso sim, atitudes efetivas
voltadas à realização das promessas constitucionais de ontem e de hoje. E que –
Oh, patriotas brasileiros! – sejamos patriotas constitucionais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário