"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A Constituição, a Justiça e a Previdência


 Marcio Sotelo Felipe

A Constituição promulgada em 1988 é como os mártires: sofre pelas suas virtudes e não por suas imperfeições.

Dela costuma-se dizer, por exemplo, que é muito grande, não é uma boa constituição sintética, como a inglesa, que nem escrita é, ou a norte-americana, que data do século XVIII e ainda vigora. É enciclopédica, trata de tudo, contra a boa técnica constitucional.

Não se sabe exatamente por que uma boa constituição deva ser sintética, a não ser que se considere a força da tradição um argumento por si só suficiente. Uma constituição reflete contingências históricas, um conjunto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais, um acordo entre forças sociais que deve orientar-se pela idéia de justiça. Uma constituição não é idealizada por homens iluminados que entram em profunda meditação sobre como aplicar a hipotética boa técnica constitucional e depois se reúnem para lapidar um texto.

As constituições são escritas freqüentemente com sangue. A norte-americana surge da Guerra de Independência, e seu texto reflete uma dura e cruenta revolução. A praxis constitucional inglesa foi forjada também em séculos de luta, passando pela não menos cruenta Revolução Gloriosa. Não são concepções teóricas.

A Constituição de 1988 também nasce de sangue. Não se esqueça que ela foi, de direito, o fim da ditadura militar instaurada 24 anos antes, regime que não sobreviveu tanto tempo distribuindo flores, como se sabe, e que custou morte, dor e sofrimento para milhares de brasileiros.

Assim, este ponto deve ser desde logo estabelecido: a Constituição de 1988 foi parida na luta pela democracia, refletindo um ponto de vista democrático e instaurando mecanismos que pretendem assegurar uma convivência democrática em uma sociedade conflituosa e marcada por brutais desigualdades.

Exatamente porque se dirige a uma sociedade desigual e injusta, ela não podia dizer pouco mesmo. Uma constituição somente tem uma razão de ser: o estabelecimento de um pacto que dê voz e vez a quem estava excluído. É dessa perspectiva que se entende como e por que, na origem do constitucionalismo, tais textos surgem sintéticos, concisos, declarando os direitos humanos de primeira geração e o modo de ser do Estado, ou seja, meramente coarctando um poder que se exercia de modo absoluto; assim foram por contingências históricas.

Hoje a constituição precisa dizer muito. Precisa estabelecer rigidamente direitos políticos e sociais. Precisa apontar metas cuja destinatária é uma massa formidável de excluídos, herdeiros de uma longa tradição de miséria e de penar social que jamais foi considerada de verdade nos textos magnos anteriores. Este é, portanto, um conceito básico para entender o constitucionalismo: uma constituição não favorece o poder. Ela é, por definição, estritamente, um documento que se estabelece contra o poder. Mas dois séculos se passaram, e falar em poder hoje é diferente do que era falar em poder na Revolução Francesa, quando designou, em termos gerais, o Absolutismo. Nesta quadra da luta social, poder designa interesses econômicos, designa privilégios gerados pela desigualdade própria do capitalismo, que devem ser objeto de metas igualitárias.

Deste modo, o mundo do ser social, o estado em que se encontram e se desenvolvem as relações sociais, a hegemonia econômica dada em nossa sociedade, são a "constituição" estabelecida pelos fatos. Quem está favorecido por tais fatos não precisa de uma constituição. Uma constituição é necessária para que, nesta pirâmide social, os "de cima" não esmaguem definitivamente os que estão "embaixo". É a constituição que põe em cena os excluídos da sociedade.

Nesta perspectiva, chega a ser engraçado esse esbravejar contra o "corporativismo" da Constituição. Na verdade ela atenua o "corporativismo" imanente à estrutura desigual da sociedade, vigente a favor dos que estão "em cima" na pirâmide. É razoável aceitar que a Carta em vigor tenha, por vezes, gerado distorções específicas e amparado algumas irracionalidades. Isto não pode, entretanto, ser amplificado para atingir injustamente as suas virtudes sociais. A Carta vigente preserva classicamente os direitos humanos de primeira geração, cria importantes instrumentos para eles e faz a opção em favor dos direitos sociais: proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, seguro desemprego, irredutibilidade do salário, participação nos lucros, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à remuneração da hora normal, licença à gestante de 120 dias, proteção do mercado de trabalho da mulher, etc. Questionar estes direitos em uma sociedade tão desigual como a brasileira é uma brutalidade social. São ainda insuficientes e às vezes não dotados de eficácia real na sociedade.

II

No momento em que escrevo estão em curso reformas constitucionais. A de maior impacto social possivelmente seja a da previdência, particularmente o limite de idade para aposentadoria. A questão que me proponho a pesquisar aqui, em seus traços conceituais mais genéricos, é se tal modificação é justa, porque ainda estou arraigado a esse antigo hábito de entender que a única razão que justifica uma alteração normativa é o atributo de justiça que se possa reconhecer na novidade. É preciso então saber se os brasileiros estão sofrendo algo iníquo e injusto.

As mudanças são defendidas como necessárias para o melhor funcionamento do Estado, e portanto positivas, em termos gerais, para a sociedade, que receberá no futuro os benefícios correspondentes. Atenderiam, deste modo, aos interesses de todos, e nesta medida se deveria entendê-las como justas.

Opositores e defensores das reformas estão, na verdade, disputando a questão da Justiça. Haveria como saber qual das partes está utilizando os melhores e mais seguros critérios para que possamos concluir da efetiva justiça e moralidade de seus pontos de vista?

A partir da hegemonia do positivismo jurídico, a questão da Justiça passou a ser considerada velharia metafísica. Praticamente incorporou-se à cultura jurídica a idéia de que não há um critério básico, objetivo e, portanto, geral, para saber se uma norma é ou não justa. O opúsculo de Hans Kelsen, A Justiça e o Direito Natural, dedicou-se a demolir cuidadosamente a idéia de justiça, uma por uma todas as concepções que a Filosofia construiu em 25 séculos, concluindo que "do fato de que uma necessidade existe [indagar sobre a justiça absoluta] não pode concluir-se que tal necessidade pode ser satisfeita pela via do conhecimento racional - que o problema pode ser resolvido por esta via. 

Antes, a ciência pode mostrar que ele não pode ser resolvido desse modo, porque não há nem pode haver justiça absoluta para um conhecimento racional; que se trata de um problema insolúvel para o conhecimento humano – problema esse que, portanto, deve ser eliminado do domínio deste conhecimento. A tarefa do conhecimento científico não consiste apenas em responder às perguntas que lhe dirigimos, mas também em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido."1 Uma questão como a que foi posta aqui não deveria ter, portanto, resposta segura. Pertenceria a um plano subjetivo de opções, válidas em certas contingências, mas inválidas em outras. Uma escolha política, em síntese.

Este panorama começou a mudar a partir da publicação, em 1971, de A Theory of Justice, de John Rawls, que se propôs a demonstrar que homens racionais e éticos podem chegar a um acordo sobre a validade de determinados princípios de justiça. A publicação desta obra teve, entre outros, o grande mérito de repor na ordem do dia a discussão sobre a Justiça.

A idéia básica de Rawls é simples, embora sua demonstração seja complexa e venha suscitando infindáveis debates. Essencialmente, ele introduz a inovação da posição originária como o equivalente, em um grau maior de abstração, do contrato social tal como defendido por Rousseau, Locke e Kant.

Na posição originária, que é puramente hipotética, as partes estão sob um véu de ignorância que não lhes permite saber o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou o seu status social; não sabem a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força; não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade, a posição econômica e política, o grau de civilização e cultura que ela apresenta; não sabem a qual geração pertencem.2

A descrição da posição originária filia-se confessadamente ao postulado de Kant sobre a necessidade de serem os princípios morais objeto de uma escolha racional; uma legislação moral deve ser acatada em determinadas condições que caracterizam os homens como seres racionais, iguais e livres,3 vale dizer, no pleno exercício de suas autonomias. Em Kant lê-se que "todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão (...) não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente; que exatamente nesta pureza de sua origem reside a sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos; que cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico diminuímos em igual medida a sua pura influência e o valor ilimitado das ações";4 e ainda que "o imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade."5

Assim é que Rawls concebe uma posição originária (pressuposto do contrato social) em que os indivíduos se encontram privados do conhecimento de quaisquer dados empíricos, e em que "os princípios que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo heterônomo. Ora, o véu de ignorância priva as pessoas que ocupam a posição originária do conhecimento que as capacitaria a escolher princípios heterônomos." 6

Nesta posição originária sustenta Rawls que as partes chegariam a dois princípios que devem informar a construção de uma sociedade justa: (1) cada pessoa deve ter a maior liberdade política compatível com uma liberdade semelhante para todos; (2) as desigualdades de poder, riqueza e outros recursos não devem existir a não ser que resultem em benefícios para os menos favorecidos da sociedade.

Rawls, ao pretender, em acréscimo à concepção de Kant,7 que tais princípios de justiça devam aplicar-se à estrutura básica da sociedade, ressalta, portanto, que indivíduos racionais, dotados de senso ético, tendo que decidir como viverão em uma sociedade sem saber que lugar ela lhes reserva, sem saber mesmo que habilidades e dotes têm, chegariam a um acordo básico que asseguraria a liberdade, em primeiro lugar, e asseguraria que qualquer organização social somente seria justa tendo como destinatários os excluídos do poder e da riqueza. Na verdade, aqui Rawls acaba por introduzir um rigoroso critério de racionalidade e uma demonstração lógica em favor do que Platão já dizia na República: o Estado existe em função dos fracos.

Resulta, portanto, que uma sociedade será justa na medida em que isto for atingido; que uma sociedade justa não admite sacrifícios para os excluídos do poder e da riqueza, ainda que se lhes possa apontar um (hipotético) benefício futuro, quando tal sacrifício resultar em uma melhora de eficiência do Estado e da sociedade em geral em prol de todos.

Como se sabe, este último ponto costuma ser apresentado como a justificativa ética de determinadas diretrizes ou políticas públicas. A rigor, isto quer dizer um jogo em que os menos favorecidos é que colocam, do pouco que têm, algo na aposta para, supostamente, obter uma vantagem futura caso ela seja ganhadora. Não creio que se possa sustentar com lucidez que apostar seja um ato racional e moral, particularmente quando são os outros que colocam em risco o parco patrimônio de direitos e bens. É porque não apostam que os indivíduos, na posição originária, decidem racionalmente que a sociedade somente pode suportar a desigualdade se resultar em benefícios para os menos favorecidos.

Observo que não integra a teoria de Rawls qualquer noção de propriedade privada de meios de produção como um direito natural,8 mas ele a entende compatível com o regime de mercado ou com um regime liberal-socialista.

Não fico convencido de que uma economia de mercado possibilite, tendencialmente, que a desigualdade reverta em benefício dos menos favorecidos, podendo ser, como sistema, compatível com o segundo princípio de justiça. Mas, ainda assim, a noção que resulta do conceito de justiça de Rawls é adequada como idéia regulativa, a partir da qual se torna possível extrair critérios seguros de justiça para normas e procedimentos. Pode-se então perguntar: este ou aquele procedimento, esta ou aquela norma, estão dados em benefício dos que estão em pior situação na sociedade? O que é desigual se apresenta absolutamente em favor dos excluídos?

Com estes critérios, podemos retornar ao tema da reforma da previdência.

A proposta de idade mínima para a aposentadoria favorece apenas os que sempre tiveram melhores oportunidades de vida. Quem, forçado por circunstâncias sociais, é obrigado a iniciar sua vida profissional mais cedo, deve trabalhar mais e gerar renda previdenciária em favor dos que começam mais tarde. Por outro aspecto, é um fato incontestável que os menos favorecidos têm uma expectativa de vida inferior e tendencialmente terão menos oportunidades de usufruir da aposentadoria.

Portanto, o que se vê é estritamente a inversão do critério de justiça na proposta de reforma de previdência: ela está voltada contra os interesses dos menos favorecidos. Agrava a desigualdade e estabelece privilégios em benefício dos que já são privilegiados. Poucas vezes se terá visto uma injustiça tão clara, uma reforma constitucional tão odiosa, iníqua e irracional.

Esta e outras mudanças constitucionais devem passar pelo crivo da justiça para que sejam compatíveis com uma República democrática que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Uma constituição, repita-se, somente deveria ter um fim: atenuar as desigualdades e privilégios e incorporar à vida digna os que não têm acesso a ela. Se faz o contrário, pode ser qualquer coisa que se queira, menos constituição.

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