Marcio Sotelo Felipe
A Constituição promulgada em 1988 é como os mártires: sofre
pelas suas virtudes e não por suas imperfeições.
Dela costuma-se dizer, por exemplo, que é muito grande, não
é uma boa constituição sintética, como a inglesa, que nem escrita é, ou a
norte-americana, que data do século XVIII e ainda vigora. É enciclopédica,
trata de tudo, contra a boa técnica constitucional.
Não se sabe exatamente por que uma boa constituição deva ser
sintética, a não ser que se considere a força da tradição um argumento por si
só suficiente. Uma constituição reflete contingências históricas, um conjunto
de circunstâncias políticas, econômicas e sociais, um acordo entre forças
sociais que deve orientar-se pela idéia de justiça. Uma constituição não é
idealizada por homens iluminados que entram em profunda meditação sobre como
aplicar a hipotética boa técnica constitucional e depois se reúnem para lapidar
um texto.
As constituições são escritas freqüentemente com sangue. A
norte-americana surge da Guerra de Independência, e seu texto reflete uma dura
e cruenta revolução. A praxis constitucional inglesa foi forjada também em
séculos de luta, passando pela não menos cruenta Revolução Gloriosa. Não são
concepções teóricas.
A Constituição de 1988 também nasce de sangue. Não se
esqueça que ela foi, de direito, o fim da ditadura militar instaurada 24 anos
antes, regime que não sobreviveu tanto tempo distribuindo flores, como se sabe,
e que custou morte, dor e sofrimento para milhares de brasileiros.
Assim, este ponto deve ser desde logo estabelecido: a
Constituição de 1988 foi parida na luta pela democracia, refletindo um ponto de
vista democrático e instaurando mecanismos que pretendem assegurar uma
convivência democrática em uma sociedade conflituosa e marcada por brutais
desigualdades.
Exatamente porque se dirige a uma sociedade desigual e
injusta, ela não podia dizer pouco mesmo. Uma constituição somente tem uma
razão de ser: o estabelecimento de um pacto que dê voz e vez a quem estava
excluído. É dessa perspectiva que se entende como e por que, na origem do
constitucionalismo, tais textos surgem sintéticos, concisos, declarando os
direitos humanos de primeira geração e o modo de ser do Estado, ou seja,
meramente coarctando um poder que se exercia de modo absoluto; assim foram por
contingências históricas.
Hoje a constituição precisa dizer muito. Precisa estabelecer
rigidamente direitos políticos e sociais. Precisa apontar metas cuja
destinatária é uma massa formidável de excluídos, herdeiros de uma longa
tradição de miséria e de penar social que jamais foi considerada de verdade nos
textos magnos anteriores. Este é, portanto, um conceito básico para entender o
constitucionalismo: uma constituição não favorece o poder. Ela é, por
definição, estritamente, um documento que se estabelece contra o poder. Mas
dois séculos se passaram, e falar em poder hoje é diferente do que era falar em
poder na Revolução Francesa, quando designou, em termos gerais, o Absolutismo.
Nesta quadra da luta social, poder designa interesses econômicos, designa
privilégios gerados pela desigualdade própria do capitalismo, que devem ser
objeto de metas igualitárias.
Deste modo, o mundo do ser social, o estado em que se
encontram e se desenvolvem as relações sociais, a hegemonia econômica dada em
nossa sociedade, são a "constituição" estabelecida pelos fatos. Quem
está favorecido por tais fatos não precisa de uma constituição. Uma
constituição é necessária para que, nesta pirâmide social, os "de
cima" não esmaguem definitivamente os que estão "embaixo". É a
constituição que põe em cena os excluídos da sociedade.
Nesta perspectiva, chega a ser engraçado esse esbravejar contra
o "corporativismo" da Constituição. Na verdade ela atenua o
"corporativismo" imanente à estrutura desigual da sociedade, vigente
a favor dos que estão "em cima" na pirâmide. É razoável aceitar que a
Carta em vigor tenha, por vezes, gerado distorções específicas e amparado
algumas irracionalidades. Isto não pode, entretanto, ser amplificado para
atingir injustamente as suas virtudes sociais. A Carta vigente preserva
classicamente os direitos humanos de primeira geração, cria importantes
instrumentos para eles e faz a opção em favor dos direitos sociais: proteção da
relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, seguro
desemprego, irredutibilidade do salário, participação nos lucros, remuneração
do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à remuneração da hora
normal, licença à gestante de 120 dias, proteção do mercado de trabalho da
mulher, etc. Questionar estes direitos em uma sociedade tão desigual como a
brasileira é uma brutalidade social. São ainda insuficientes e às vezes não
dotados de eficácia real na sociedade.
II
No momento em que escrevo estão em curso reformas
constitucionais. A de maior impacto social possivelmente seja a da previdência,
particularmente o limite de idade para aposentadoria. A questão que me proponho
a pesquisar aqui, em seus traços conceituais mais genéricos, é se tal
modificação é justa, porque ainda estou arraigado a esse antigo hábito de
entender que a única razão que justifica uma alteração normativa é o atributo
de justiça que se possa reconhecer na novidade. É preciso então saber se os
brasileiros estão sofrendo algo iníquo e injusto.
As mudanças são defendidas como necessárias para o melhor
funcionamento do Estado, e portanto positivas, em termos gerais, para a
sociedade, que receberá no futuro os benefícios correspondentes. Atenderiam,
deste modo, aos interesses de todos, e nesta medida se deveria entendê-las como
justas.
Opositores e defensores das reformas estão, na verdade,
disputando a questão da Justiça. Haveria como saber qual das partes está
utilizando os melhores e mais seguros critérios para que possamos concluir da
efetiva justiça e moralidade de seus pontos de vista?
A partir da hegemonia do positivismo jurídico, a questão da
Justiça passou a ser considerada velharia metafísica. Praticamente
incorporou-se à cultura jurídica a idéia de que não há um critério básico,
objetivo e, portanto, geral, para saber se uma norma é ou não justa. O opúsculo
de Hans Kelsen, A Justiça e o Direito Natural, dedicou-se a demolir cuidadosamente
a idéia de justiça, uma por uma todas as concepções que a Filosofia construiu
em 25 séculos, concluindo que "do fato de que uma necessidade existe
[indagar sobre a justiça absoluta] não pode concluir-se que tal necessidade
pode ser satisfeita pela via do conhecimento racional - que o problema pode ser
resolvido por esta via.
Antes, a ciência pode mostrar que ele não pode ser
resolvido desse modo, porque não há nem pode haver justiça absoluta para um
conhecimento racional; que se trata de um problema insolúvel para o
conhecimento humano – problema esse que, portanto, deve ser eliminado do
domínio deste conhecimento. A tarefa do conhecimento científico não consiste
apenas em responder às perguntas que lhe dirigimos, mas também em ensinar-nos
quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido."1 Uma questão como
a que foi posta aqui não deveria ter, portanto, resposta segura. Pertenceria a
um plano subjetivo de opções, válidas em certas contingências, mas inválidas em
outras. Uma escolha política, em síntese.
Este panorama começou a mudar a partir da publicação, em
1971, de A Theory of Justice, de John Rawls, que se propôs a demonstrar que
homens racionais e éticos podem chegar a um acordo sobre a validade de
determinados princípios de justiça. A publicação desta obra teve, entre outros,
o grande mérito de repor na ordem do dia a discussão sobre a Justiça.
A idéia básica de Rawls é simples, embora sua demonstração
seja complexa e venha suscitando infindáveis debates. Essencialmente, ele
introduz a inovação da posição originária como o equivalente, em um grau maior
de abstração, do contrato social tal como defendido por Rousseau, Locke e Kant.
Na posição originária, que é puramente hipotética, as partes
estão sob um véu de ignorância que não lhes permite saber o seu lugar na
sociedade, a sua posição de classe ou o seu status social; não sabem a sua
sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e
força; não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade, a
posição econômica e política, o grau de civilização e cultura que ela
apresenta; não sabem a qual geração pertencem.2
A descrição da posição originária filia-se confessadamente
ao postulado de Kant sobre a necessidade de serem os princípios morais objeto
de uma escolha racional; uma legislação moral deve ser acatada em determinadas
condições que caracterizam os homens como seres racionais, iguais e livres,3
vale dizer, no pleno exercício de suas autonomias. Em Kant lê-se que
"todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori
na razão (...) não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por
conseguinte puramente contingente; que exatamente nesta pureza de sua origem
reside a sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos; que
cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico diminuímos em igual
medida a sua pura influência e o valor ilimitado das ações";4 e ainda que
"o imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como
objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra
finalidade."5
Assim é que Rawls concebe uma posição originária
(pressuposto do contrato social) em que os indivíduos se encontram privados do
conhecimento de quaisquer dados empíricos, e em que "os princípios que
norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus
dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou
das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é
agir de modo heterônomo. Ora, o véu de ignorância priva as pessoas que ocupam a
posição originária do conhecimento que as capacitaria a escolher princípios
heterônomos." 6
Nesta posição originária sustenta Rawls que as partes
chegariam a dois princípios que devem informar a construção de uma sociedade
justa: (1) cada pessoa deve ter a maior liberdade política compatível com uma
liberdade semelhante para todos; (2) as desigualdades de poder, riqueza e
outros recursos não devem existir a não ser que resultem em benefícios para os
menos favorecidos da sociedade.
Rawls, ao pretender, em acréscimo à concepção de Kant,7 que
tais princípios de justiça devam aplicar-se à estrutura básica da sociedade,
ressalta, portanto, que indivíduos racionais, dotados de senso ético, tendo que
decidir como viverão em uma sociedade sem saber que lugar ela lhes reserva, sem
saber mesmo que habilidades e dotes têm, chegariam a um acordo básico que
asseguraria a liberdade, em primeiro lugar, e asseguraria que qualquer
organização social somente seria justa tendo como destinatários os excluídos do
poder e da riqueza. Na verdade, aqui Rawls acaba por introduzir um rigoroso
critério de racionalidade e uma demonstração lógica em favor do que Platão já
dizia na República: o Estado existe em função dos fracos.
Resulta, portanto, que uma sociedade será justa na medida em
que isto for atingido; que uma sociedade justa não admite sacrifícios para os
excluídos do poder e da riqueza, ainda que se lhes possa apontar um
(hipotético) benefício futuro, quando tal sacrifício resultar em uma melhora de
eficiência do Estado e da sociedade em geral em prol de todos.
Como se sabe, este último ponto costuma ser apresentado como
a justificativa ética de determinadas diretrizes ou políticas públicas. A
rigor, isto quer dizer um jogo em que os menos favorecidos é que colocam, do
pouco que têm, algo na aposta para, supostamente, obter uma vantagem futura
caso ela seja ganhadora. Não creio que se possa sustentar com lucidez que
apostar seja um ato racional e moral, particularmente quando são os outros que
colocam em risco o parco patrimônio de direitos e bens. É porque não apostam
que os indivíduos, na posição originária, decidem racionalmente que a sociedade
somente pode suportar a desigualdade se resultar em benefícios para os menos
favorecidos.
Observo que não integra a teoria de Rawls qualquer noção de
propriedade privada de meios de produção como um direito natural,8 mas ele a
entende compatível com o regime de mercado ou com um regime liberal-socialista.
Não fico convencido de que uma economia de mercado possibilite,
tendencialmente, que a desigualdade reverta em benefício dos menos favorecidos,
podendo ser, como sistema, compatível com o segundo princípio de justiça. Mas,
ainda assim, a noção que resulta do conceito de justiça de Rawls é adequada
como idéia regulativa, a partir da qual se torna possível extrair critérios
seguros de justiça para normas e procedimentos. Pode-se então perguntar: este
ou aquele procedimento, esta ou aquela norma, estão dados em benefício dos que
estão em pior situação na sociedade? O que é desigual se apresenta
absolutamente em favor dos excluídos?
Com estes critérios, podemos retornar ao tema da reforma da
previdência.
A proposta de idade mínima para a aposentadoria favorece
apenas os que sempre tiveram melhores oportunidades de vida. Quem, forçado por
circunstâncias sociais, é obrigado a iniciar sua vida profissional mais cedo,
deve trabalhar mais e gerar renda previdenciária em favor dos que começam mais
tarde. Por outro aspecto, é um fato incontestável que os menos favorecidos têm
uma expectativa de vida inferior e tendencialmente terão menos oportunidades de
usufruir da aposentadoria.
Portanto, o que se vê é estritamente a inversão do critério
de justiça na proposta de reforma de previdência: ela está voltada contra os
interesses dos menos favorecidos. Agrava a desigualdade e estabelece
privilégios em benefício dos que já são privilegiados. Poucas vezes se terá
visto uma injustiça tão clara, uma reforma constitucional tão odiosa, iníqua e
irracional.
Esta e outras mudanças constitucionais devem passar pelo
crivo da justiça para que sejam compatíveis com uma República democrática que
tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Uma constituição,
repita-se, somente deveria ter um fim: atenuar as desigualdades e privilégios e
incorporar à vida digna os que não têm acesso a ela. Se faz o contrário, pode
ser qualquer coisa que se queira, menos constituição.
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